Revista do Arquivo: Daniela, desde quando você vem pesquisar no arquivo? Você lembra qual foi a primeira vez?
Daniela Uga: O meu primeiro contato com o Arquivo aconteceu em 2015. Eu tinha começado a investigar os prontuários clínicos do Manicômio Judiciário quando o material ainda estava armazenado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Prof. André Teixeira Lima. No final de 2011, os prontuários foram transferidos para o Arquivo Público do Estado e eu enviei um e-mail para confirmar se poderia ter acesso ao material. A resposta foi positiva. Fiquei muito feliz e vim para cá. Desde então tenho vindo ao Arquivo com frequência para trabalhar no meu projeto de Doutorado.
RA: O que motivou a sua pesquisa aqui no Arquivo?
Daniela: O meu projeto de Doutorado. Em 2014 comecei o meu Doutorado no Instituto de Psicologia da USP com orientação da Profa. Maria Luísa Sandoval Schmidt e o tema do meu trabalho propunha uma investigação sobre loucura e periculosidade. Como eu já havia trabalhado com os prontuários antes e tinha muita vontade de continuar mapeando os documentos, estruturei o meu projeto de pesquisa a partir deste recorte. O Arquivo Público tem 2649 registros clínicos de pacientes que estiveram internados no Juquery e Manicômio Judiciário entre 1897 e 1952. Anteriormente, eu juntamente com uma outra professora e 2 alunas de iniciação científica já havíamos feito a leitura de todos os prontuários até 1920. Em meu trabalho de doutorado, passei a ler os documentos de 1920 em diante.
RA: Fale um pouco da sua pesquisa acadêmica, tema, recortes, orientação, o que lhe levou a optar por esse tema etc.
Daniela: Minha pesquisa acadêmica trata sobre loucura e periculosidade. Se ser louco já é um problema, ser louco e criminoso é um problema ainda maior. Quando eu soube da existência dos prontuários clínicos do Manicômio Judiciário tive certeza absoluta de que esta história deveria ser resgatada, analisada e contada. Basicamente a minha intenção foi realizar uma análise longitudinal e histórica da determinação da periculosidade de 1920 a 1952. Quem era o chamado louco-criminoso? Por quais razões foi internado no Manicômio Judiciário? Quais eram as terapêuticas utilizadas durante este período? Como o laudo atestou que se tratava de alguém que tinha enlouquecido, cometido um crime e era perigoso? Todas estas questões orientaram a minha prática de pesquisa. E esse tema já era do meu interesse principalmente porque sempre foi trabalhado nas aulas de Psicopatologia.
RA: Me parece que não são muitos os pesquisadores da área da psicologia a se debruçarem sobre os documentos de arquivo. Fale da sua experiência do contato com documentos de arquivos e o reflexo disso nos resultados de sua pesquisa.
Daniela: De fato, durante a formação em Psicologia não somos preparados para trabalhar com pesquisa documental. Quando peguei um prontuário clínico pela primeira vez, não sabia por onde começar. Os documentos são extensos, alguns com mais de 100 folhas e nem sempre estão organizados de forma cronológica. É um caos [risos]. Uma espécie de desordem convidativa que pede para ser decifrada. O cheiro, a cor, a textura, o pó, a caligrafia, enfim, tudo é um desafio. E eu estranhava também o silêncio, sabe? Essa troca silenciosa que o pesquisador faz com o documento foi algo difícil para mim no começo. Até então minha experiência com pesquisa tinha sido prioritariamente experimental e quantitativa. Sair desse modelo, desconstruir essa referência foi complicado para mim. No início eu não sabia se lia, anotava ou fotografava para ler depois. Tudo parecia extraordinariamente relevante. Com o tempo aprendi a trabalhar com fontes primárias, criei um diário de bordo e passei a fazer um registro sistemático da minha experiência a cada visita. Além disso, me concentrei especialmente em reconhecer a estrutura dos prontuários e o modo como os registros sobre a “loucura-criminosa” foi organizado.
RA: Fale um pouco dos prontuários por você analisados.
Daniela: Em meu projeto de Doutorado, priorizei a leitura dos prontuários clínicos de 1920 em diante. Como são muitos documentos disponíveis, cerca de 2649, me propus a ler cerca de 5 ou 6 de cada ano. Parte desses prontuários pertenceu ao Juquery, quando ainda não havia um Manicômio Judiciário no Estado de São Paulo e parte pertenceu ao Manicômio Judiciário, após sua inauguração na década de 30. No início do século XX, o número de estrangeiros internados no Juquery era expressivo. Em muitos casos, o crime praticado tinha relação com a experiência de trabalho e muitas vezes com a exploração estabelecida aos imigrantes. Os homens representam a maioria dos internados e o homicídio aparece como o crime mais frequente. A internação de mulheres é relativamente pequena durante todo esse período. Em muitos prontuários, especialmente até a década de 30, os laudos de avaliação da periculosidade são mais esparsos. A partir da inauguração do Manicômio Judiciário, a prática da avaliação por 2 psiquiatras é instituída no ato de entrada e aí sim em quase todos os documentos se encontra um detalhamento médico legal das razões que justificavam a interdição judicial e internação manicomial.
Foto/Daniela Uga

RA: Você orienta e estimula os seus alunos a seguirem seu caminho de pesquisadora em fontes primárias?
Daniela: Sem dúvida. O meu contato com os documentos contribuiu muito para minha prática docente, especialmente em relação a este ponto que você comentou agora. Sou professora de Psicopatologia e sempre falo aos meus alunos sobre a importância de compreender a loucura numa dimensão histórica e relacional. Quando você lê um prontuário clínico do início do século passado, por exemplo, tem a possibilidade de observar isto na prática. A cultura produz critérios de saúde e doença e também produz formas de sofrimento próprias a cada época. Nas aulas eu geralmente comento sobre o caso de uma mulher da década de 20 internada no Juquery com o diagnóstico de Loucura Moral. Ela era agredida frequentemente pelo marido e um dia resolveu se defender. O fato de ser mulher e ousar se posicionar desta forma trouxe consequências e, por conta disso, ela foi diagnosticada como louca e encaminhada ao Hospital. Passou um longo tempo internada. Veja, saber disso só é possível se a história é resgatada.
RA: Você é professora e coordenadora de área de uma grande faculdade. Fale um pouco dessa sua experiência em docência em nível superior e como você alia essa atividade com as suas pesquisas.
Daniela: Eu me tornei professora universitária aos 25 anos ministrando aulas de Psicopatologia, minha grande paixão. Em 2012 assumi a Coordenação do Curso de Psicologia. O curso é bem grande e tem aproximadamente 6 mil alunos em processo de formação. Atualmente eu divido minhas atividades entre a coordenação, docência, consultório e o doutorado. O meu trabalho aqui no Arquivo rendeu frutos interessantes e teve ressonância na vida acadêmica dos alunos, especialmente nas turmas que cursam Psicopatologia comigo. No semestre passado fui convidada por vocês a organizar um Seminário sobre Saúde Mental. O evento foi muito importante porque propôs que pensássemos a história da loucura pelo recorte dos arquivos pesquisados. Muitos alunos do curso vieram prestigiar, conheceram o espaço e ficaram encantados com a possibilidade de estudar os arquivos. O projeto de trazer alunos para a prática de pesquisa com fontes primárias já está em andamento. Muito em breve um grupo deverá frequentar o Arquivo para continuar o mapeamento dos prontuários entre 1920 e 1930. Acho que esse é um exemplo dos desdobramentos que minha pesquisa tem provocado no meio acadêmico.
RA: Como foi o impacto ao se deparar com massas documentais desorganizadas e em risco? Pensou em desistir naquele momento?
Daniela: Como eu disse, o meu contato com os prontuários clínicos aconteceu em 2010, quando o material ainda estava guardado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Prof. André Teixeira Lima. Na época, um grupo engajado de funcionários que trabalhava na unidade - Angela, Rosana, Dr. Garcia e Karine – empenhou-se para salvar os documentos que estavam armazenados num velho galpão da ala de pacientes crônicos. Sem dúvida, sem essa iniciativa deles, muito teria sido perdido. Quando eu vi aquela enorme quantidade de documentos armazenados no galpão fiquei fascinada. Nunca pensei em desistir. Ao contrário, fiquei desafiada a contribuir com o trabalho propondo uma pesquisa acadêmica. Nesta época, por volta de 2010, eu e uma colega professora, juntamente com mais 2 alunas de Iniciação Científica íamos até o Hospital regularmente trabalhar com os documentos. Foram lidos todos os prontuários até 1920 e uma planilha base com informações fundamentais foi estruturada.
Foto/Daniela Uga

RA: Como foi a sua experiência no APESP, sentiu dificuldades no atendimento e na pesquisa no salão de consultas?
Daniela: Minha experiência no APESP foi surpreendente. Acho que esta palavra define o que tenho vivido na minha prática de pesquisa. Antes de chegar aqui pela primeira vez eu imaginava um lugar burocrático e cheio de obstáculos, mas foi tudo tão acessível, viável e generoso que fiquei impressionada com a seriedade do trabalho realizado. Fiquei contente em saber que os registros da nossa história estão sendo cuidados de forma tão competente. Aqui consegui fazer trocas, conhecer outros pesquisadores; saber da acessibilidade a outros documentos que sequer eu imaginava. Participar da organização do Seminário também foi muito importante.
RA: Na sua palestra no seminário realizado no APESP em maio deste ano, você tratou (de forma exuberante, aliás) sobre um tema sensível: tratamento destinado a pessoas condenadas pela justiça e consideradas loucas. Faça uma breve reflexão sobre essa abordagem à luz do conceito de direitos humanos.
Daniela: A relação entre loucura e violação dos direitos humanos é histórica e pode ser confirmada por diversos exemplos até os dias de hoje. No caso específico do louco-criminoso este processo de violação é ainda mais patente até porque estamos falando sobre alguém que reúne 2 atributos que socialmente tem forte rejeição: a loucura e a criminalidade. Boa parte das pessoas acredita que se uma pessoa é louca e cometeu um crime deve ficar trancafiada pelo resto da vida num manicômio porque representa um perigo social. A própria Psiquiatria corroborou para a produção dessa associação entre loucura e periculosidade e isso fica muito evidente quando se lê os exames médicos legais de pessoas internadas no Manicômio Judiciário. Embora a Reforma Psiquiátrica tenha promovido avanços e conquistas importantes como a aprovação da Lei 10216 e a desinternação progressiva, no caso dos Manicômios Judiciários estamos em passos muito lentos. Em 2015 o Conselho Federal de Psicologia realizou uma inspeção em 17 manicômios brasileiros e 7 deles funcionavam em instalações absolutamente precárias e apresentavam um índice de superlotação que variava de 110% a 410% da capacidade total.
RA: Alguns dados indicam que as chamadas doenças psíquicas são a enfermidade do século. Como você vê isso? Essa nossa “evoluída” sociedade contemporânea é geradora de distúrbios em grandes proporções?
Daniela: Essa pergunta é bem interessante. Na verdade, o sofrimento mental sempre existiu, mas a sua forma de expressão, mudou com o tempo. No final do século XIX, início do século XX, as mulheres sofriam com as paralisias do corpo. O sintoma histérico foi um enigma para a Psiquiatria. Como explicar que uma parte do corpo permanecesse paralisada ainda que continuasse sensível à estimulação? Freud foi brilhante ao associar a produção de sintoma histérico ao modo como viviam as mulheres na época. Ele conseguiu dizer que a forte repressão sexual especialmente dirigida às mulheres, provocava consequências e adoecimento. Veja, atualmente depressão e ansiedade são os sintomas da contemporaneidade e isso não é aleatório. Como eu disse antes, a nossa cultura produz formas de sofrimentos e sintomas que estão arranjados com as nossas configurações de vida.
RA: Que recado você deixaria para estudantes e novos pesquisadores da sua área em relação à pesquisa histórica nos arquivos?
Daniela: Primeiro sugeriria que viessem conhecer o Arquivo Público do Estado. Existe um mundo de possibilidades e fontes interessantíssimas para diversas linhas de pesquisa. Embora a pesquisa histórica seja na maioria das vezes associada às Humanas, os documentos que existem aqui podem servir como fonte de investigação primária para várias áreas. Uma outra sugestão é também participar das diversas atividades e seminários que são promovidos pelo Arquivo.