Minhas amigas, meus amigos que estão na mesa, meus amigos, minhas amigas que estão no auditório, eu me sinto em uma reunião familiar, portanto, tenho que ser antiprotocolar, anti- convencional, para, em primeiro lugar, dizer, da minha imensa satisfação com esta providência tomada pelo Arquivo Estadual, de incorporar ao seu patrimônio, os papéis, os documentos, relatórios, de uma comissão que foi muito importante em um determinado momento da vida brasileira.
Acho que, o que fica depois de uma experiência como esta, é a lembrança, que como é decisivo, você nas situações difíceis, consideradas impossíveis e sem saídas, você teimar de que, como formiguinha, é possível traçar um rumo oposto àquele que vigora, que de certa maneira contamina quase todas as pessoas. Acho que foi esse o grande legado da Comissão Teotônio Vilela.
Como já tinha sido uma comissão criada anos antes, mas, que de certa maneira, não é a mãe da Comissão Teotônio Vilela, mas sem dúvida é uma inspiradora. A Comissão Justiça e Paz, que tinha sido criada em São Paulo, por uma pessoa cujo nome eu digo com muito respeito, que realmente foi uma figura dessas que a gente hoje diz, pelo menos o meu neto, de 20 anos, diz, que é um ponto fora da curva: Dom Paulo Evaristo Arns.
Eu acho que, mirada no exemplo da Comissão Justiça e Paz, que era exatamente um grito, pró direitos humanos, em uma época de arbítrio, em uma época de ditadura, em uma época que os militares praticamente faziam e desfaziam sem que a imprensa, os tribunais, nenhum setor da sociedade praticamente dizia: “êpa, não é este o caminho”. De repente, em torno de Dom Paulo, se reúne uma meia dúzia de pessoas de boa vontade e resolvem dizer “não, vamos tentar protestar, vamos tentar proteger, vamos tentar mostrar que o caminho não é esse.”
Isso acabou dando certo, acabou dando consequências. E, mirado neste exemplo, eu acho que a democracia ainda era uma coisa muito distante no Brasil, muito difícil de conseguir, mas necessário que a gente começasse a falar mesmo, começasse a explicar que fora dela não há salvação e que o regime antidemocrático não iria levar o Brasil para bons caminhos.
Dentro deste clima, um dia eu recebo um telefonema, de um grande amigo meu, que é dessas pessoas que não gastam o telefone, que naquele tempo não tinha celular, era aquele telefone preto pesado, mas que nunca falhava e nem precisava colocar na bateria. Era usado permanentemente. Toca o telefone e é a voz inconfundível de Paulo Sérgio Pinheiro dizendo: “Olha, está tendo denúncias muito sérias, no Manicômio Judiciário.”
O Manicômio Judiciário, como se sabe, recebe aquelas pessoas que, do ponto de vista do direito penal, não podem ser responsabilizadas, mas em compensação, uma vez no Manicômio Judiciário, jamais sairão de lá. E, chegam denúncias muito sólidas, muito confiáveis, de que é uma zona de ninguém. Não há critério científico para tentar curá-las. Há abusos, há subversão a todos os valores dos direitos humanos. Vamos fazer alguma coisa no sentido de melhorar o que existe lá. E eu estou constituindo uma comissão de pessoas de boa vontade, já falei com Severo Gomes, já falei com a Margarida Genevois.
Enfim, ele já tinha falado com aquela meia dúzia de pessoas de boa vontade, que já tinham dado mostras concretas de que não se conformavam com a ditadura militar. Dar todas as cartas e pautar todas as regras, vigentes no país. E assim foi criada pelo esforço, pela inspiração, pelo tenor do Paulo Sérgio Pinheiro, que está aqui nesta mesa e, depois, naturalmente, dará seu testemunho; foi criada a Comissão Teotônio Vilela.
Agora, nesse primeiro telefonema, eu disse ao Paulo e o Paulo aceitou na mesma hora, porque na época estava muito em moda uma coisa que eu gostaria que voltasse. O Brasil está precisando disso. Estava na moda o ecumenismo, isto quer dizer, o esforço dos que não têm pensamento igual, que não tem visão política coincidente um com o outro, mas que, cada um tem a sua visão, mas que sejam capazes de se unir em um ou dois pontos.
Realmente, aquela cruzada por aqueles que estavam em manicômios judiciários ou em instituições que isolavam as pessoas do contato humano, que precisava alguém olhar por elas. Se houver uma solidariedade básica, isto deve ser o cimento que os unirá e, seja qual seja a visão política ou ideológica que a pessoa tem, ela pode fazer parte da Comissão Teotônio Vilela.
Paulo Sérgio aceitou, eu acho que foi uma das características do êxito, eficácia da Comissão Teotônio Vilela. Ela era uma comissão não só de pessoas de boa vontade, mas também de filiações, de visões partidárias, ideológicas diferentes. Mesmo o nome de batismo da comissão era de um bom coronel, das Alagoas, homem formado na velha escola do fazendeiro, do dono de terras. Um homem que tinha achado, por razões respeitáveis, que o movimento militar no Brasil se justificava e que, de repente, pouco a pouco, por experiência própria, convivendo com o regime vitorioso, foi vendo que havia uma imensa lacuna na questão dos direitos humanos e começou, de pouco em pouco, a fazer críticas, a cobrar um outro caminho e, a pouco a pouco, foi se chegando para o campo dos direitos humanos.
Foi indispensável, como relator de vários projetos que reabriam a questão dos direitos humanos no Brasil, e virou Teotônio Vilela. Isto mostra, portanto, que o Brasil não é só a terra da jabuticaba, mas é a terra onde as coisas não são obrigatoriamente definitivas. Por isso é que a luta tem que ser permanente, e gente não pode ser ortodoxo, no sentido de descriminar pessoas, por eventuais posições que elas tenham em determinada fase.
Eu sei que a Comissão Teotônio Vilela, na época, tinha gente de esquerda, tinha gente de meia-esquerda, tinha gente de centro. Não tinha gente de direita por razões óbvias, porque os militares as tinham monopolizadas por completo. Mas as visões não eram coincidentes. Mas como dizia uma das pessoas mais respeitáveis, mais suaves que eu conheci na vida, que está nesta mesa, Genevois, no tempo da Comissão Justiça e Paz, cada um tem sua ideia política, cada um tem sua ideologia, mas a gente quando vem para a reunião da Comissão Justiça e Paz, deixa estas ideias na esquina. Tem um pipoqueiro lá na esquina, a gente entrega para este pipoqueiro e ele fica guardando estas ideias, porque, realmente na Comissão Justiça e Paz, a gente precisa encontrar o mínimo múltiplo comum que nos faz, que nos motiva, e foi o que aconteceu com a Comissão Teotônio Vilela.
Ela não existiria se não fosse, quero ser absolutamente justo, uma casa que, de certa maneira, hoje, é responsável pela história de São Paulo e, sendo pela história de São Paulo, em grande parte será pela história do Brasil, que não haveria Comissão Teotônio Vilela se não fosse o dinamismo, a crença, a ideia de utopia possível do Paulo Sérgio Pinheiro, mas se não fosse também o fato de seus integrantes, vindos de caminhos diferentes, percorrendo rios que nem sempre uns eram afluentes dos outros, compreenderam que a nossa missão era trabalhar exatamente por aqueles que estavam internados, condições totalmente esquecidas.
Nossa primeira visita histórica foi ao Manicômio Judiciário, para conseguir, não foi fácil, mas eu sei que depois desta visita, pela repercussão que a imprensa, que ainda não era livre, mas tinha devotados guerrilheiros dentro das redações, fez uma boa cobertura da nossa visita. Assim, a gente começou. Não esperamos manifestos, não esperamos a realização de muitas reuniões, alguns telefonemas, marcou-se a data, “vamos lá na porta, vamos ver o que acontece.” E aconteceu a Comissão Teotônio Vilela.
Hoje, a Comissão Teotônio Vilela, se não é pretencioso o que vou dizer, é exato. Entra na possibilidade de ser história, porque é incorporada a um arquivo, aqueles que quiserem estudar, quiserem saber o que foi a Comissão Teotônio Vilela, o que ela fez, está aqui guardado, muito bem guardado, pela gerência deste valor novo, que apareceu nos quadros administrativos de São Paulo, que é o Padula e sua equipe.
Quer dizer, a sensação que eu tenho, não sei se dos meus colegas, a Comissão Teotônio Vilela começa a ter uma outra vida. Teve a vida real e agora terá a vida contada, que eu sei que os pesquisadores têm muita curiosidade de saber como é que foram esses anos de ditadura e sabem que a Comissão Teotônio Vilela exerceu um papel importante. A luta continua, vou concluir, porque não acho que, em matéria de direitos humanos, exista a última conquista. Sempre a penúltima, sempre a penúltima. Quando você acha que resolveu tal problema, surgem mais dois. Você vai atrás dos dois, resolve os dois, vê que existe mais quatro.
Eu acho que, o Brasil atual, tendo esta crise que não acaba, e que também não mostra com clareza para onde nós vamos, precisa recordar o que foi feito em momentos parecidos, que realmente a gente achava que não tinha saída, estava sem mapa, que nos levasse a uma situação melhor. Mas foi a decisão de um pequeno grupo, do ponto de vista artesanal, do ponto de vista de dizer: “O importante é começar”, que colaborou para que mais tarde voltasse a democracia, nós tivéssemos uma constituição, e o Brasil afastasse a onda de ditadura militar que dominou, por mais de 20 anos, todos os aspectos, sociais, econômicos, culturais do Brasil.
Eu acho que essa crise brasileira tem que ter uma saída, sobretudo, por uma decisão de um grupo de jovens, que tem a decisão que nós, modéstia à parte, tivemos, há anos e anos atrás. De fazer alguma coisa, difícil, impossível, mas, desde o momento que decidimos fazer era necessário que isto resultasse algum benefício. Eu acho que sem dúvidas, sem querer exagerar as coisas, mas acho que a Comissão Teotônio Vilela cumpriu um papel e o fato de hoje ela poder ser estudada, pela documentação que fica aqui guardada, é uma prova disto.
Termino dizendo que na idade em que estou, preciso começar ensaiando que tipo de discurso eu vou ter quando for indagado, inquerido, sobre a minha documentação, no plano eterno. Lá no São Pedro perguntavam: “bom, além do cartão de crédito, o que o senhor trouxe?” Eu, cada vez me convenço que tenho menos coisas para apresentar. Mas uma das coisas que vou dizer, porque acho lá também tem um bom arquivo, tão fidedigno quanto este, do Estado de São Paulo, vou dizer, olha, eu fiz o que pude na Comissão Justiça e Paz e na Comissão Teotônio Vilela. Vamos esperar a decisão, se for aprobatória, eu darei um jeito de mandar o recado para vocês.
Muito obrigado.
Sobre José Gregori e a luta por direitos humanos, consultar:
http:// cpdoc.fgv.br/ acervo/ arquivospessoais