In Memoriam

Maria Lúcia de Barros Mott

Defensora e difusora dos acervos históricos da saúde

Ao pesquisarmos sobre a história da saúde pública brasileira, é incontornável a lembrança da historiadora e pesquisadora Maria Lúcia Mott. Os editores da Revista do Arquivo publicam essa singela homenagem a ela por meio das inspiradas e certeiras palavras do nosso colaborador desta edição.

Foto: Arquivo Familiar


Maria Lúcia de Barros Mott

Por André Mota [*]

Quando a historiadora Maria Lúcia de Barros Mott (1948-2011) faleceu, houve uma série de efemérides, das mais diversas formas: dedicatórias em livros, homenagens em eventos públicos e textos vindos do movimento feminista e da área acadêmica. Eu mesmo fui convidado a dizer algumas palavras, quando o Instituto Butantan, onde Maria Lúcia foi pesquisadora, organizou um evento em sua homenagem. Todos diziam de sua postura crítica, da relevância de seus estudos e de uma contribuição ao mundo intelectual e político que faria falta a todos nós. E realmente fez.

Quando fui convidado pela Revista do Arquivo a escrever sobre ela, encontrei o desafio de não repetir o que já se havia dito e escrito. Com essa intenção, pensei que poderia comentar sua inestimável contribuição para a salvaguarda e a difusão de arquivos históricos da medicina e da saúde pública em nosso país. São apenas algumas lembranças, mas que valem para iluminar sua trajetória profissional.


É sabido entre nós que foi nas décadas de 1970 e 1980 que a ciência histórica começou a dar mais atenção a temas envolvendo a Saúde Pública e as práticas médicas em São Paulo, conformando alguns nomes, entre eles, o de Maria Lúcia. Transcorridos os anos e as décadas, multiplicaram-se os pesquisadores e certos temas ensejaram novas metodologias analíticas, revelando um campo com vitalidade e em movimento. Contudo, manifestou-se um problema antigo e peculiar a São Paulo: era perceptível que havia muito a fazer para aproximar esses pesquisadores, criando um meio de conhecer e se fazer conhecer, abrindo espaço para trocar experiências coletivamente e, porque não dizer?, tratar de dificuldades institucionais, limites e avanços, estabelecendo com a comunidade interessada o diálogo possível.

Foi nesse contexto que conheci Maria Lúcia em 2003, quando ela trabalhava no Instituto de Saúde de São Paulo e estava, junto à também historiadora Yara Monteiro, à frente do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, então atrelado ao Instituto. Sua presença criou um momento de esforço adicional para salvaguardar e difundir o precioso acervo, o que ela conseguiu em certa parte, mesmo sem desistir dessa posição. Anos depois, entre 2007 e 2008, formamos um grupo inter-institucional chamado Rede Interdisciplinar de Pesquisa em História da Medicina e Saúde em São Paulo (Rede HISS), de que Maria Lúcia foi uma das fundadoras.

A partir dessa ação conjunta, a Rede Hiss dedicou-se à reunião, à congregação e à troca de conhecimentos com um olhar mais atento para esse grupo de pesquisadores, a fim de perceber os processos de constituição de área não apenas pelas pesquisas desenvolvidas, mas sobretudo pelas contradições que se foram ou não equacionando no espaço acadêmico e de pesquisa, bem como pela dificuldade de acesso a acervos documentais. Isso implicou uma dispersão tão evidente, um desacerto acadêmico tão gritante, que pensamos, em tempos mais atuais, que seria essa a oportunidade dada a um grupo de trabalho: tentar reunir o máximo possível daqueles que estavam dispersos e atribuir novos significados a toda essa produção.

Foi nesse contexto que desenvolvemos com mais argúcia a capacidade de acolher as dezenas de pesquisadores que foram chegando com projetos excelentes, mais ainda com suas leituras incompletas, seus arquivos ainda não devidamente conhecidos, enfim, jovens pesquisadores em busca de espaço para apresentar o caminho que gostariam de trilhar. Talvez aqui tenhamos um grande ganho ao trocar nossas experiências, abrindo espaço ao diálogo e nos relacionando em rede, como deve ser, já que, com hierarquias mais fluidas, conquistamos mais espaço para o conhecimento. A participação de Maria Lúcia foi importantíssima nessa história, pois, por onde a Rede foi se movendo, lá estava ela sugerindo seminários, apontando sempre ricos acervos documentais e possibilidades de pesquisa, colaborando ativamente na organização dos encontros estaduais e, via Rede, trabalhando pela proteção do patrimônio documental que se encontrava sob ameaça no Museu de Saúde Pública Emílio Ribas.

Em sua obra Parto e parteiras no século XIX: Mme. Durocher e sua época (1998) e no artigo “Revendo a história da enfermagem em São Paulo” (1999), Maria Lúcia desfez uma série de mitos que envolviam a profissionalização da enfermagem. Primeiramente, demonstrando que houve diversos cursos formadores de enfermeiros e enfermeiras em hospitais paulistas anteriores à Escola Ana Nery, denotando como a institucionalização da medicina em São Paulo se nutriu desses profissionais para se constituir e especializar. Nesse meio tempo, entre as pesquisas em arquivos públicos que fazia amiúde sobre a história das parteiras e da enfermagem, Maria Lúcia se deparou no Arquivo Público do Estado de São Paulo com um precioso acervo relativo à Universidade Livre de São Paulo, instituição que funcionou entre 1911 e 1917. Conversamos muito sobre essa documentação, já que eu havia estudado parte dela nos arquivos do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP. No entanto, o acervo que estava no Arquivo do Estado era literalmente toda a vida institucional da Universidade Livre, inclusive uma tentativa de um curso de enfermagem pelo qual ela se interessou em estudar. No I Encontro Estadual da REDE HISS, em 2009, Maria Lúcia apresentou generosamente seu achado e as potencialidades que se abriam à pesquisa histórica e, com seu grupo de pesquisa, logo publicou na Revista de História da Ciência, do Instituto Butantan, um artigo intitulado 'Montando um quebra-cabeça: a coleção 'Universidade de São Paulo' do Arquivo Público do Estado de São Paulo”, apontando o caminho das pedras para acioná-lo a partir de temas e tipos documentais que havia no Fundo.

Em 2007, Maria Lúcia recebeu um convite de pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz para integrar um projeto sobre patrimônio cultural e arquitetônico da saúde no Brasil, cujos resultados estão num artigo de Gisele Sanglard e Renato Gama-Rosa Costa: “Patrimônio cultural da saúde: uma década de reflexão e atuação sobre o campo (2019). Sob sua liderança, formou-se um grupo para fazer o levantamento de instituições médicas e de saúde pública em São Paulo, seu último trabalho, que realizou até 2011, redundando na obra que organizou ao lado de Gisele Sanglard, História da saúde em São Paulo: instituições e patrimônio arquitetônico 1808-1958 (2011).

É importante mencionar esse trabalho, porque ele sintetiza seus incansáveis esforços, mais uma vez, de proteção e divulgação patrimonial. Finalmente, toda a documentação que ela angariou durante esses anos de trabalho nesse projeto foram doados ao acervo do Museu Histórico da FMUSP, onde pudemos formar um fundo documental com seu nome, composto de documentação relativa a sua trajetória profissional, bem como de toda a pesquisa, além de levantamentos sobre a história hospitalar em São Paulo, material de relevância ímpar, que evidencia seus esforços e ratifica sua presença no campo historiográfico médico e da saúde. E, é claro, sem deixar de nos fazer pensar, toda vez que acionamos esse material: que saudade de Maria Lúcia Mott!

Referências