Apresentação Dossiê
Medicina, Saúde Pública e Arquivo

Entre os espaços de memória e de história

André Mota[*]

Foto: Equipe de Editoria/APESP

André Mota

Prof. Dr. André Mota

Recentemente, temas relativos à memória se tornaram objeto de reflexão historiográfica, em particular a partir dos anos 1970, quando os historiadores da Nova História começaram a trabalhar com essa temática, aproximando-se de estudos já avançados no campo da filosofia, da sociologia, da antropologia e, principalmente, da psicanálise. É essa história que se empenha em sua cientificidade, ganhando a memória um lugar de importância decisiva. A partir de um problema em torno da contemporaneidade, uma iniciativa retrospectiva e a renúncia a uma temporalidade linear em favor de tempos múltiplos, a relação de enraizamento do individual no social e no coletivo ganha a atenção desses analistas, fermentando pesquisas em torno de lugares da memória coletiva. Para Jacques Le Goff (1996, p. 473), esse seriam:

[...] lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais e as autobiografias, mas não podendo esquecer os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou gerações, levando a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória.

Se a identificação da memória está entre os próprios alicerces da história, muitas vezes se confundindo com o documento, com o monumento ou com a oralidade, é essencial ao ofício do historiador a relação estabelecida com memórias, sejam elas de que natureza forem, exigindo, ao mesmo tempo, cuidados que devem incluir uma clara conceituação entre história e memória, evitando considerar as memórias como um discurso mais verdadeiro, mais próximo do que teria sido o que se poderia chamar de uma “verdadeira história”. O historiador também se deve preocupar em definir em torno das memórias uma clara exposição de métodos, tanto no que tange à coleta dessas memórias como em seu emprego posterior no interior de um discurso historiográfico. Esses cuidados buscam dirimir tensões que existem entre os conceitos de memória e de história, que, longe de serem sinônimos, têm entre si um jogo sobretudo de oposição.

Sempre carregada de grupos vivos, a memória estaria aberta à dialética das lembranças e dos esquecimentos, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações, enquanto a história seria a reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não mais existe:

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente, enquanto a história é uma representação do passado, porque é uma operação intelectual e laicizante, demandando análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica (NORA, 1993, p. 9).

Nesse sentido, a memória trata dos outros, mas para falar do indivíduo, numa relação consigo mesma e, por isso, construtora de identidade, presa a grupos, à visão de grupo ou grupos que é expressão, envolvendo em seu discurso uma maior ou menor distância em torno da polaridade memória individual-coletiva, envolvendo tríplice atribuição: “a si, aos próximos, aos outros, afinal, não existe um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos?” (RICOEUR, 2007, p. 141-142).

É nesse campo problemático envolvendo memória, identidade e construção de discursos que a história se elabora na externalidade com o acontecido. É uma interpretação a posteriori do fato, trabalhando com as experiências de inúmeros grupos e indivíduos, querendo conhecê-los e, consequentemente, interpretá-los, numa relação com a alteridade, numa relação com a identidade que é a de localizá-la para descobri-la em suas diferenças.

Quando as questões médicas e de saúde pública ganharam compreensão historiográfica, era esse um de seus maiores dilemas: como construir um discurso histórico em torno de uma memória já tão alicerçada em alguns cânones considerados pétreos e como capturar um novo discurso considerando as preocupações que a própria história colocava em seu campo de trabalho, diferenciando o que é a memória e o que é a história, apontando novas possibilidades interpretativas e temáticas?

A proposta de um dossiê

Entre os anos 1960-70, quando a Medicina Social abriu o debate acadêmico e social sobre os processos saúde-doença e as formas de organização das práticas sanitárias em sua visão interdisciplinar, identificou na História e em sua dimensão crítica um campo de saber fundamental. Apresentando a primeira coletânea brasileira sobre aspectos teóricos e históricos da Medicina Social, Cecília Donnangelo (1983, p. 10) recomenda a seus estudiosos e defensores uma atenção particular à dimensão histórica de sua constituição e de seus dilemas, “apreendido[s] e reconstruído[s] também através da análise histórica”.

Esse empreendimento intelectual se distanciou da História da Medicina que vinha sendo difundida desde o século XIX sob balizas positivistas do conhecimento, quase sempre escrita por médicos, que:

[...] ordenavam fatos à luz de esquemas evolutivos que combinavam os marcos cronológicos da história política e administrativa brasileira com a marcha ascendente dos conhecimentos rumo a uma história científica, eficaz, por obra, quase sempre, de vultos de importância nacional e local (BENCHIMOL, 2003, p. 108).

Entre os clássicos dessa produção no Brasil, estão História da Medicina no Brasil (1947), de Lycurgo de Castro Santos Filho, e História da Medicina no Brasil (1948-49), de Pedro Nava.

Assim, no âmbito da saúde e das práticas médicas, a medicina social procurava compreender mais amplamente a história da produção e difusão desses conhecimentos e dessas práticas não mais se restringindo à investigação fechada na ideia de um “irretocável” patrimônio científico e técnico, mas percebendo-os num contexto em que circulam e se articulam inúmeros fatores, inseparáveis das condições econômicas, sociais, políticas e culturais. Em particular, entre os historiadores, o impacto da tradição da Escola dos Annales entre os anos 1970-80 alargou todo um repertório de objetos, abordagens, ferramentas conceituais e fontes, originando temas, metodologias, problemas e alternativas requalificadas por metodologias específicas da ciência histórica e de sua lógica.

Nesses termos, o território da geração da Medicina Social, como George Rosen, Henry Sigerist e Entralgo, viveu incorporações e discussões importantes em torno da perspectiva historiográfica:

Questões pertinentes à raça e ao gênero, uma visão mais refinada de classes e categorias sociais, a atenção aos atores e particularismos locais passaram a informar os estudos sobre políticas, instituições e profissões de saúde. A história da medicina deixou de ser apenas a história dos médicos para se tornar também a dos doentes, e a história das doenças experimentou um verdadeiro boom historiográfico. O corpo, a infância, as sensibilidades, o meio-ambiente e outros objetos atenuaram as fronteiras entre a ciência da história e outras ciências humanas e naturais (BENCHIMOL, 2003, p. 109).

Eis a motivação maior para a construção deste dossiê, reunindo um conjunto de estudos nacionais e internacionais sobre temas médicos e de saúde pública, mas afinados com o lugar da documentação, de sua guarda, conservação e disponibilização para a pesquisa histórica. Isso porque há todo um esforço dos pesquisadores frente à dificuldade de acesso a arquivos que tratam de medicina e saúde pública advinda do próprio campo arquivístico, envolvendo o lugar da memória documental e sua relevância na explicação do passado e na formação de um pensamento presente:

[...]as instituições arquivísticas públicas brasileiras apresentam aspectos comuns no que se refere às suas características fundamentais. Trata-se de organizações voltadas quase exclusivamente para a guarda e acesso de documentos considerados, sem parâmetros científicos, como de valor histórico, ignorando a gestão de documentos correntes e intermediários na administração que os produziu (JARDIM, 1995, p. 7).

Num plano específico, por outro lado, devem-se notar particularidades advindas no campo médico e de saúde pública que tangem ao esforço dos centros arquivísticos para transformar documentos, quase sempre de natureza privada ou institucional, em documentos de valor histórico e público, tendo que acolhê-los, conservá-los e disponibilizá-los a pesquisadores em todo um percurso difícil, fazendo com que parte dessa documentação seja descartada antes de chegar aos arquivos:

Os arquivos privados classificados como de interesse público, apesar de continuarem a ser bens privados, integram o patrimônio cultural da nação. Essa contradição, aparentemente de difícil solução, tem que ser pensada a partir da ideia do interesse público que, por ser comum a toda sociedade, se sobrepõe aos interesses individuais. No caso da propriedade privada, o exercício desse direito possui limite igualmente previsto no texto constitucional brasileiro, qual seja, sua função social ou sua utilidade pública (COSTA, 1998, p. 197).

É nessa dinâmica, que vai da identificação de acervos e da possibilidade de acolhê-los até a escolha do que deve ou não ser preservado e de sua disponibilização para a pesquisa, que o Arquivo Público do Estado de São Paulo vem há anos se preocupando em resgatar parte dessa memória, traduzida por uma intensa experiência acumulada de projetos, atividades e apresentação de temas que variam entre ações educacionais, de pesquisa e divulgação, permitindo:

[...]a integração de diferentes conhecimentos, de diferentes áreas, de diferentes profissionais. Envolve pesquisa, comunicação, ação pedagógica e uso da tecnologia, o que justifica o envolvimento não apenas de historiadores e arquivistas (os profissionais típicos dos arquivos permanentes), mas jornalistas, publicitários, designers, professores, revisores (BARBOSA; SILVA, 2012, p. 8).

É essa ampla e abrangente dimensão arquivística que permite ampliar métodos e, sobretudo, divulgar suas fontes, trazendo como documentos históricos pistas e rastros possíveis que levem a compreensões capazes de repercutir neste dossiê as práticas dos médicos e de seus pacientes, bem como seus espaços institucionais de ensino, pesquisa e trabalho, mas, com a mesma força, as práticas e representações do homem comum, os espaços de associações profissionais, sociedades científicas e periódicas, sem perder de vista o universo popular, suas formas de organização e sua leitura do mundo que o cerca. Assim:

[...]além da legitimidade da memória no fazer histórico, o que se quer perceber são os contrastes de sua facção pela experiência vivida, sempre conduzida pela preocupação da história de apresentar um determinado tempo passado, com seus homens e suas mulheres, revelando por isso o tempo presente, também com seus homens e suas mulheres, mas estes carregados de projeções de um futuro incerto (MOTA, 2018, p. 81).
Referências