Artigo
O acervo histórico do Instituto Oscar Freire: coleções e documentos da medicina legal paulista
João Denardi Machado[*]

Resumo:

O artigo apresenta o acervo do Instituto Oscar Freire da Faculdade de Medicina da USP, contextualizando sua montagem no bojo do processo de institucionalização da medicina legal positivista em São Paulo, na primeira metade do século XX. Três coleções são apresentadas no detalhe, na tentativa de reconstituir parte dos roteiros e das narrativas que serviam de plataforma didática ao ensino de diferentes disciplinas da medicina legal – da criminologia a infortunística. Para finalizar, parte de uma coleção secundária do acervo, composta de textos jornalísticos da década de 1940, de autoria do catedrático de medicina legal, Flamínio Fávero, é submetida a leitura do método indiciário, visando trazer a tona questões históricas relativas ao estudo do crime pelo médico legista, e simultaneamente demonstrar potencialidades para pesquisas historiográficas que subjazem ao acervo.

Palavras-chave: História da Medicina Legal; Acervo do Instituto Oscar Freire; Acervos e coleções universitários.

Abstract:

The Institute’s Oscar Freire historical acquis: collections and documents of São Paulo legal medicine

This article presents the acquis of Institute Oscar Freire, contextualizing it’s assembly in the middle of the institutionalization of legal medicine in São Paulo, Brazil, during the fist half of 20th century. Three collections are presented in detail, in an attempt to reconstitute the narratives that serve as didactic platforms for teaching different subjects of legal medicine and criminology. To finish, journalistic texts by Professor Flamínio Fávero are submitted to indicial reading, aiming to bring historical issues relative to study of crime by the professor, and simultaneously demonstrate some of the research potential of the acquis.

Keywords: History of Legal Medicine; Acquis of Institute Oscar Freire; Universities acquis and collections.

Introdução: A história da medicina legal paulista e o acervo do Instituto Oscar Freire

Trabalhos historiográficos contemporâneos demonstram que a consolidação institucional da medicina experimental e laboratorial no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, é parte integrada de um processo de ativação de mecanismos de modernização conservadora do Estado e da sociedade após o colapso do sistema escravista, e indica um novo alinhamento entre as instituições estatais, uma elite social remodelada e os projetos biodeterministas da profilaxia, do sanitarismo, do higienismo, da eugenia e do racismo científico. (MACHADO et al., 1978. SCHWARCZ, 2000. CANCELLI, 2001. MOTA, 2003, 2005. SCHRAIBER; MOTA, 2012).

No meandro desse alinhamento, constituiu-se a medicina legal – um campo médico estrategicamente situada entre o direito penal e o conhecimento médico técnico-científico –, que trouxe ao bojo das instituições estatais o poder do olhar do perito, treinado para reconhecer desvios patológicos no grande organismo que é a sociedade (CORRÊA, 1998. FERLA, 2009). Criminologia, antropometria, sexologia, tanatologia, e antropologia criminal são exemplos de disciplinas da medicina legal que se introduziram no funcionamento de diversas instituições sociais no Brasil após a proclamação da República, e progressivamente se consolidaram como influentes propagadoras de verdades jurídicas e científicas nos tribunais, delegacias e universidades. (ALVAREZ, 2003. ALVAREZ; FERLA, 2012).

De 1890 a 1940, a Medicina Legal praticada e ensinada no Brasil pendulou gradualmente do status de ciência em construção para o de ciência pronta, em um processo de estabelecimento que incluiu tanto as discussões metodológicas e os enunciados técnico-científicos, quanto as negociações e a rede de interesses individuais e coletivos no processo. Da miscelânea de temas reivindicados em 1890, pouco a pouco a Medicina Legal brasileira formalizou seus limites e assegurou seu espaço dentre as demais especialidades médicas em ascensão, investida de novo significado e prestígio com a montagem das cátedras da disciplina nas Faculdades de Medicina da Bahia, do Rio de Janeiro, e finalmente de São Paulo (FERLA, 2009. MARINHO; SALLA, 2015).

Marco da institucionalização do ensino médico no estado, a fundação da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo[1], em 1912, catalisou forças em torno do projeto médico paulista personificado por Arnaldo Vieira de Carvalho, e a subsequente montagem da cadeira de Medicina Legal, em 1917, consolidou um núcleo institucional que abriu novas possibilidades de atuação aos médicos legistas na cidade (MARINHO; SALLA, 2015). Sociedades médicas, revistas, periódicos, e boletins científicos associados à cadeira de Medicina Legal passaram a repercutir um projeto de sociedade ancorado no biodeterminismo e nos limites da liberdade. A vinda do pupilo pródigo de Raimundo Nina Rodrigues, Oscar Freire de Carvalho, para o cargo de professor catedrático da recém-formada cadeira universitária, estabeleceu as premissas para o surgimento de um complexo mito fundador da medicina legal paulista, balizado na imagem dos patriarcas da medicina legal brasileira, nos símbolos de sua missão civilizatória, e na grandiosidade prenunciada da “medicina bandeirante” (CORRÊA, 1998. MOTA, 2005. CARRARA, 2016).

No centro dessa rede de legitimação, esteve um acervo de peças vasto e pouco mencionado pela historiografia acadêmica: trata-se do acervo do museu da Cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, concebido por Oscar Freire como parte integrada de um instituto médico-legal educativo e científico, aparelhado a serviço da Faculdade de Medicina e da sociedade paulista[2]. Tanto o instituto médico-legal (que receberia o nome de Instituto Oscar Freire após a morte do patriarca), quanto o museu, idealizados por Oscar Freire em sua cátedra (1918-1923), foram concretizados durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, em importante episódio do processo de consolidação da medicina legal paulista, ainda pouco abordado pela historiografia.

Figura 1: “Término da construção do edifício do Instituto Oscar Freire (4)”

“Término da construção do edifício do Instituto Oscar Freire (4)”

Fonte: Álbum 1, Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1931.

Figura 2: “Prof. Hilário e Dna. Ophelia no Museu”

“Prof. Hilário e Dna. Ophelia no Museu”

Fonte: Álbum 1, Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, s/d.

O acervo contemporâneo do Instituto Oscar Freire preserva parcela das peças do museu original, e suas coleções históricas representam depósitos relevantes de documentos e monumentos acerca da consolidação da medicina legal no estado de São Paulo. Trata-se de um acervo multidisciplinar, de perfil bibliográfico, hemerográfico, museológico e arquivístico, com características de arquivo e centro de memória, e finalidade pedagógica no âmbito da formação e especialização de médicos. Em 2016, o acervo foi posto sob a custódia do Laboratório Didático do Instituto Oscar Freire, e as coleções encontram-se armazenadas no segundo andar do prédio do Instituto Oscar Freire, Avenida Teodoro Sampaio 115, São Paulo – SP, na sala Estácio de Lima, que compreende 72 metros quadrados. A isso se somam mais 20,1 metros quadrados do mezanino da sala do Laboratório de Ciências Forenses, onde uma reserva de peças foi improvisada.

Focado em tal acervo, o presente artigo possui dois propósitos: em primeiro lugar, apresentar algumas peças que articulam narrativas pedagógicas no interior de diferentes coleções, para que o leitor obtenha uma visão panorâmica do propósito educativo e do conteúdo comum de diferentes gêneros de peças, de forma a expor a relação indissociável entre documentos textuais e objetos do acervo; em segundo, exemplificar o potencial do acervo para pesquisas historiográficas focadas na primeira metade do século XX, através de breve análise de textos pertencentes à subcoleção de artigos de jornal, escritos por Flamínio Fávero, que tematizam a profilaxia do crime, tema fulcral para os campos da medicina legal e da criminologia, também referido em outras peças do acervo.

Com esse trajeto, é possível evidenciar algumas articulações entre distintas coleções do acervo e, posteriormente, enfocar documentos pontuais para suscitar indagações sobre a história da medicina legal paulista, e evidenciar o potencial de pesquisa e a valia das coleções.

O acervo do Instituto Oscar Freire: coleções e o ensino de medicina legal

O atual acervo do Instituto Oscar Freire é composto por quatorze coleções de peças, a saber: 1-Coleção de laudos de perícias médico-legais; 2-Coleção de esculturas de cera.; 3-Coleção de equipamentos militares; 4-Coleção de diapositivos em vidro; 5-Coleção de peças orgânicas; 6-Coleção de necroscopias; 7-Coleção de registros museais; 8-Coleção de publicações; 9-Coleção de fotografias e álbuns fotográficos; 10-Coleção de pinturas, retratos e desenhos; 11-Coleção de experiências médico-legais; 12-Coleção de equipamentos médicos; 13-Coleção de objetos pessoais e biográficos; 14-Coleção de mobiliário original.[3]

Para imergir no acervo, de forma a reconhecer os objetos dentro de sua rede de significados e exibir o propósito pedagógico pelo qual foram conservados, três coleções devem ser brevemente apresentadas, devido à posição mediadora na interface narrativa entre as diversas coleções do acervo: trata-se da coleção de laudos médico-legais, da coleção de esculturas de cera, e da coleção de peças orgânicas.

A conexão entre as coleções do acervo é operada pela coleção de laudos médico-legais, já que esculturas de cera, desenhos, preparações de órgãos e ossadas para exposição e outras peças do acervo foram conservadas ou mesmo produzidas para ilustrar processos de peritagem descritos em laudos oficiais assinados pelos legistas do Instituto Oscar Freire, e em conjunto definem roteiros didáticos para o ensino de tanatologia, criminologia, balística, infortunística, traumatologia, sexologia e outros setores da Medicina Legal. Esses roteiros, que durante as décadas de 1940 e 1950 estavam estabelecidos com clareza nas exposições, segundo sugerem indícios como a fotografia reproduzida a seguir, encontram-se esparsamente conectados no acervo atual do IOF, consistindo um dos propósitos da pesquisa histórica desenvolvida na FM-USP reconstituir as conexões que articulam as distintas coleções do acervo.

Figura 3: “Peças orgânicas do Museu do Departamento”

“Peças orgânicas do Museu do Departamento”

Fonte: Álbum 1, Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, s/d.

Exemplares da coleção de laudos periciais – polos conceituais das narrativas do acervo – encontram-se preservados em dois formatos: como súmulas de laudos, pequenos cartões que circulavam pelo meio jurídico e penal e resumiam as informações do perito às autoridades do processo; e nas versões integrais, que reproduz a discussão médico-legal do processo, e encontram-se transcritas nos livros de laudos do acervo.[4]

Figura 4: “Súmula do Laudo n°5”, perícia de Oscar Freire e Flamínio Fávero

“Súmula do Laudo n°5”, perícia de Oscar Freire e Flamínio Fávero

Fonte: Arquivo n°1. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo. 1921.

Em relação aos livros, são 54 tomos de livros de laudos de pareceres e exames médico-legais, e 13 livros de laudos de necroscopias, que totalizam cerca de 17 mil laudos na íntegra. Quanto às súmulas, tratam-se de 6743 exemplares contabilizados, porém existem gavetas inteiras de arquivos no IOF ainda não catalogadas, e são estimados ao menos 8 mil volumes.[5]

Os laudos preservados abrangem o período de 1920 a 1967 e foram assinados por onze diferentes médicos legistas[6]; grosso modo, o formato dos laudos se manteve durante todo período, em média com quatro páginas de extensão, compostos por seis partes: em primeiro lugar, consta a apresentação dos médicos peritos, do juiz que os nomeou, do tipo do exame, e do paciente a ser examinado; em segundo, são enumeradas as questões judiciais que devem ser respondidas pelo exame do perito; em terceiro, faz-se um breve histórico do fato que culminou no processo judicial e na requisição do exame pelo juiz; em quarto, sucede-se o exame propriamente dito, que incluía apalpação, antropometria e devia definir o estado geral de saúde do paciente; segue-se a isso uma seção de discussão médico-legal e de encaminhamento das conclusões do exame; e, por fim, o perito informa sucintamente as respostas às perguntas judiciais.

Nas diferentes partes dos discursos dos laudos periciais, residem possibilidades para ampla gama de estudos sócio históricos, sendo que a historiografia já demonstrou o potencial que subjaz nas documentações do universo judicial e criminal para análises da história do cotidiano, das mentalidades e das instituições em contextos determinados. (CHALHOUB, 2001. ROSEMBERG, 2006. MANTOVANNI, 2016.)

Variadas peças do acervo são explicitamente referidas a coleção de laudos periciais: exemplo dessa referência, a escultura de cera número 21 retrata o caso de lesão por punhal de Nelson S., descrito pelo laudo 5.378, de 1946. Nessa escultura, visava-se tanto alegorizar um tipo específico de lesão, a perfuro cortante, quanto referenciar quase que artisticamente a explicação do caso judicial e da peritagem pelo médico Flamínio Fávero, comprovando a validade de seu diagnóstico. O que se almejava, assim, era transmitir aos alunos, através das esculturas, as técnicas que orientavam o olhar do perito diante de seu objeto científico, mas também enfatizar que esse olhar precisava expor-se como arte e ofício, mirando a correção científica, o funcionamento eficaz das instituições penais e, em última instância, a garantia da ordem (CORRÊA, 1998. CARRETA, 2016).

Figura 5: “Escultura de Cera n°21 – Lesão por Punhal Nelson S.”

“Escultura de Cera n°21 – Lesão por Punhal Nelson S.”

Fonte: Armário 2. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1946.

A descrição das investigações e da feitura dos relatórios períciais, sobretudo os criminais, consiste até hoje numa das principais estratégias de ensino das disciplinas da medicina legal para formação de médicos e de especialistas, e concorrem, ademais, para demonstração da utilidade pública do serviço do médico legista ao sistema judicial (HARRIS, 1993. FRANÇA, 2001. FERLA, 2009). Desse modo, em conjunto com os laudos, as esculturas de cera do artesão Augusto Esteves compuseram importante matriz de ensino médico legal durante o século XX: peças trabalhadas com minúcia, os 137 objetos preservados foram produzidos durante as décadas de 1930 e 1960 pelo ceroplasta, visando majoritariamente o ensino de traumatologia, sexologia e infortunística, que remetem sobretudo a casos observados pelos docentes da Faculdade de Medicina Flamínio Fávero e João de Aguiar Puppo.

Figura 6: “Escultura de Cera n°68 – Tipos de Hímen. Observação do professor Oscar Freire.”

“Escultura de Cera n°68 – Tipos de Hímen. Observação do professor Oscar Freire.”

Fonte: Armário 2. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1946.

Figura 7: “Escultura de Cera n°13 – Acidente de Trabalho, perda dos dedos mínimo e anular”

“Escultura de Cera n°13 – Acidente de Trabalho, perda dos dedos mínimo e anular”

Fonte: Armário 2. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1945.

As imagens das esculturas acima, reveladoras do detalhismo das peças ceroplásticas, tematizam dois eixos centrais da avaliação do perito médico sobre o corpo: a primeira refere-se a sexologia, disciplina ministrada no curso regular de Medicina Legal desde a fundação da cadeira, cujo principal foco está na determinação da ocorrência ou não de relação sexual, no esquadro penal dos crimes de defloramento e estupro, mormente para averiguação da virgindade para estudo de viabilidade de matrimônio, sempre através da observação do hímen – que era catalogado em diferentes tipos segundo sua morfologia, como consta na figura 6. A segunda imagem (figura 7), por sua vez, tematiza o campo da medicina do trabalho, especificamente o estudo da infortunística – voltada a mensuração dos riscos, doenças e lesões que o indivíduo está sujeito em seu trabalho – área que demandou o maior número de periciais pelos legistas do IOF durante a primeira metade do século, segundo constam os registros quantitativos.

Tal como as esculturas de cera, os órgãos conservados em formol e as ossadas que compõem a coleção de peças orgânicas, também se referem diretamente aos laudos periciais, como os exemplares apresentados a seguir: a peça orgânica número 71 (figura 8) consiste na região mamária esquerda do indivíduo que cometeu suicídio peritado pelo laudo 12.466; e a peça orgânica 217 (figura 9), por sua vez, consiste em parte do cérebro de indivíduo necropsiado após acidente com arma de fogo (tiro pela culatra) descrito na necroscopia 681.

Figura 8: “Peça Orgânica n°71 – Ferimento Pérfuro-incisos”

“Peça Orgânica n°71 – Ferimento Pérfuro-incisos”

Fonte: Armário 1. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1946.

As 192 peças orgânicas da coleção abrangem o estudo das diferentes formas de lesão física intencional ou acidental: a análise balística de projéteis de calibres distintos; os efeitos relativos aos tecidos e órgãos; isso sem mencionar as dezenas de fetos e embriões abortados por diferentes meios e as várias ossadas conservadas para exemplificação dos tipos de traumas ósseos fatais e não fatais.

Figura 9: “Peça Orgânica n 217 – Acidente: tiro pela culatra”

“Peça Orgânica n 217 – Acidente: tiro pela culatra”

Fonte: Armário 1. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1951.

As peças orgânicas e as esculturas de cera, produzidas e conservadas pelos legistas paulistas durante o século XX, mantêm com os laudos periciais uma relação orgânica como documentos de arquivo que compartilham origem, procedência e conteúdo conceitual. Nesse sentido, o vínculo inerente entre documentos textuais e objetos, como as peças orgânicas e ceroplásticas, permitiu aos legistas do IOF estruturar e comunicar identidade de escola científica, fundamentada no olhar do perito e na missão civilizatória de defesa da sociedade; complementarmente, as narrativas veiculadas pelas peças em conjunto facilitaram a apropriação de objetos de intervenção no meio social pelos legistas, no universo do trabalho, do sexo e da morte dos indivíduos, num contexto de medicalização da sociedade e disputa de prerrogativas pelos médicos das diferentes especialidades. O arquivista Bruno Delmas, ao refletir sobre as funções sociais de arquivos históricos, informa justamente que:

“Os arquivos servem para provar, lembrar-se, compreender e identificar-se. Provar seus direitos é uma utilidade jurídica e judiciária. Lembrar-se se é uma utilidade de gestão. Compreender é uma utilidade científica de conhecimento. Identificar-se pela transmissão da memória é uma utilidade social.” (DELMAS, 2010, p. 21).

Ainda que a relação entre as peças expostas e os laudos periciais seja o nexo central, referida explicita ou implicitamente em praticamente todas as coleções do acervo, e os benefícios à comunidade científica da organização e conservação adequada dos objetos que a compõem sejam incontestes, existem outros setores do acervo, secundários ao ensino da medicina legal e menos visibilizados no espaço expositivo, que possuem equivalente potencial para análise historiográfica. Tratam-se sobretudo de documentos não oficiais, cartas, escritos jornalísticos, diários de aulas, registros informais de reuniões e de perícias, fotos e diapositivos engavetados. Para o historiador indiciário, que busca no elemento negligenciável o dado empírico impermeável ao olhar generalizante ou abstrato (GINZBURG, 2003), esses fundos secundários são patrimônios científicos de valor imensurável, cujo potencial acadêmico permanece inexplorado.

Doravante, teceremos breves comentários em relação a setores secundários do acervo para estudo mais detido, valendo-se para tanto de leitura atenta aos indícios e às condições de produção do documento, segundo os apontamentos do método indiciário de Carlos Ginzburg. Entendido como um paradigma de reconhecimento de detalhes discursivos e semióticos secundários que possuem a involuntariedade dos sintomas, o olhar indiciário é adequado para trazer à tona a complexa teia de sentidos e concepções que atravessava o campo da medicina legal no contexto paulista da primeira metade do século XX, de forma a evidenciar a amplitude do escopo científico reivindicado e as dissonâncias de vozes na conformação do campo (GINZBURG, 2003, 2012. FERLA, 2009. MACHADO, 2018).

Potencial de pesquisa historiográfica: os artigos jornalísticos de Flamínio Fávero, uma análise pontual

Camuflado no meio de centenas de outros tomos de encadernação verde, o observador atento encontrará, no armário 3 do Laboratório Didático do IOF, a coletânea de 160 artigos jornalísticos escritos por Flamínio Fávero ao jornal Folha da Manhã, publicados entre os anos de 1945 e 1949. Tratam-se de quatro livros de artigos datilografados, que versam sobre grande variedade de temas ligados a medicina legal, de forma acessível e popular: “A morte de Hitler e a Medicina”, “O dever da cortesia”, “O Curanderismo”, “Animais limpos e animais imundos para os israelitas” – são alguns dos títulos dos textos publicados.

O jornal “Folha da Manhã”, parte dos veículos de comunicação do grupo “Folha de São Paulo” – de fato, o nome do grupo empresarial atualmente ainda é Empresa Folha da Manhã S.A –, foi publicado a partir de 1921, na capital paulista, visando contrapor-se à hegemonia do grupo Mesquita na comunicação jornalística, já que voltava-se às classes médias da cidade, usualmente através de textos opinativos, na tentativa de se distinguir da cobertura mormente factual do “Estado de São Paulo” e do eixo conservador que orientava o espectro discursivo deste (CAPELATO, 1988). De tiragem diária, a Folha da Manhã trazia em suas edições textos de líderes civis de diferentes setores, personalidades comumente tidas como progressistas, tais como Emiliano Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato e Flamínio Fávero.

Em meados da década de 1940, o médico Flamínio Fávero era professor catedrático de medicina legal da Faculdade de Medicina da USP, ex-diretor da mesma Faculdade e diretor do Instituto Oscar Freire; ademais, presidente do sindicato dos médicos de São Paulo, diretor-geral do Departamento de Presídios do Estado, detentor de mais de “vinte títulos de honorificência científica, nacionais e estrangeiros”, dentre eles Presidente da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo e sócio titular da Academia de Ciências e Letras de São Paulo, ocupando a cadeira “Arnaldo Vieira de Carvalho”; antes de 1945, já tinha publicado 129 trabalhos bibliográficos, e era correspondente regular de três periódicos, dentre eles a Folha da Manhã[7].

Pastor presbiteriano, reconhecido líder da corporação médica paulista e perito internacionalmente renomado, Fávero escreveu ao jornal Folha da Manhã textos indicativos de seu lugar de fala, voltados ao público leigo, que não raramente mesclavam sermões religiosos com enunciados científicos da medicina legal positivista. A passagem do texto “Endocrinologia e Pecado” é indicativa dessa ordem de argumentação:

“No terreno médico, cada um de nós tem sua constituição especial, mioprágica e até mórbida; também na esfera teológica podemos falar rigorosamente numa constituição pecaminosa, estado de alma. Parece certo que a origem de tôdas essas constituições, as sômato-psíquicas e a pecaminosas vamos encontrá-la no mesmo ponto comum: o pecado de nossos primeiros pais lá no Éden. Foi tal o cataclismo sofrido por êles nessa primeira falta, que sua personalidade sômato-psíquica recebeu impressão indelével e, o que é pior, transmissível pelas leis da herança.(…) Se Adão permanecesse na obediência determinada por Deus, na prova a que foi submetido, todos teríamos higidez plena, do corpo e da alma e, pois, a vida perfeita e eterna, mantidas nêle. Como assim não foi, a solidariedade racial nos faz participar dos danos que o primeiro homem sofreu, quebrando o pacto com o Criador.”[8]

Das dezenas de textos de Fávero publicados pelo jornal e preservados no acervo do IOF, três foram selecionados para esta breve análise: tratam-se de textos relativos a profilaxia do crime, tema que alvoroçou espaços públicos na década de 1940 no Brasil e no mundo (HOBSBAWM, 1995. PANDOLFI, 1999); de fato, as teorias defendidas por Fávero sobre a questão constituem importante eixo temático para as coleções de peças do acervo do IOF: o desenho abaixo, que ilustra o edifício da ciência do direito criminal sustentado pela criminologia e pelas ciências sociais positivas (CORRÊA, 1998), foi feito por Augusto Esteves em 1938, e é um dentre os vários objetos do acervo ligados a temática do crime.[9]

Figura 10: “Prancha de desenho n°18 – Ciência do direito criminal”

“Prancha de desenho n°18 – Ciência do direito criminal”

Fonte: Arquivo n°2. Acervo do Instituto Oscar Freire. São Paulo, 1938.

Ao analisar excertos das publicações jornalísticas de Fávero sobre a prevenção e terapêutica do crime, esta breve seção busca exemplificar o potencial de pesquisa historiográfica subjacente às coleções do acervo apresentado, bem como indicar o papel ativo que Fávero, o Instituto Oscar Freire, e a medicina legal desempenharam no bojo de relevantes processos sociais em São Paulo durante o século XX (MACHADO, 2018).

O primeiro dos textos evocados chama-se “Criminologia e Patologia”, publicado em 12 de maio de 1946, na Folha da Manhã. Para alicerçar o curso de sua argumentação, no início do texto Fávero evoca sua experiência como docente da FM-USP, e apresenta os fundamentos de sua proposta de profilaxia do crime:

“No meu curso de medicina legal da Faculdade de Medicina, incluí vários pontos sobre o estudo da criminologia. E o fiz, porque é imprescindível hoje, principalmente depois das ideias revolucionárias de Lombroso, a colaboração dedicada do médico no estudo do criminoso, para a terapêutica e a profilaxia do crime. Destarte, se me afigura indispensável que todo o médico tenha noções gerais sôbre tais assuntos, para usá-las quando chamado a prestar seu concurso direto ou indireto, no combate ao crime. (…) Não será o crime, em última análise, uma verdadeira doença social? Ora, sendo o crime uma doença social, pode o médico esmiuçar-lhe a causa e trabalhar pela sua debelação. Na moderna criminologia, pois, e máximo na ciência penitenciária, sua atuação é de valor seguro. ”

As “ideias revolucionárias de Lombroso” a que Fávero refere-se dizem respeito a concepção corrente a partir de meados do século XIX de que o homem delinquente é um organismo biológico em disfunção que precisava ser reconhecido, isolado e reabilitado para não degenerar a sociedade (GOULD, 1999. FOUCAULT, 2001). Gradativamente, essa concepção transfere o foco dos processos penais do ato antissocial para o ser antissocial, que só poderá ser adequadamente identificado e tratado pelo médico, portador dos saberes e dos procedimentos científicos positivos, a serviço do Estado e da civilização. (ANTUNES, 1998. ALVAREZ, 2003). O delinquente, por esse viés, é condicionado por uma estrutura bioantropológica inata e hereditária que receberia estímulos e inibições do meio social: corporificado pelos alcoólatras, criminosos, indigentes e prostitutas, o ser antissocial passa a ser compreendido como agente de degeneração patológica – não raramente comparado ao micróbio – do organismo social, sintoma da reversão do processo evolutivo e da decadência da civilização ocidental. (CORRÊA, 1998. SCHWARCZ, 2000. CARVALHO, 2003. FERLA, 2009).

Nesse sentido, Fávero exorta os médicos a lutar contra o crime como lutam contra a doença – afinal, não será o crime uma doença social? A aproximação conceitual do crime com a doença, da predileção criminal com a lesão patológica – e em última instância, da criminologia com a patologia – é o ponto central que o texto “Criminologia e Patologia” de Fávero busca comprovar, como indica o trecho seguinte:

“Ademais, há paralelo interessante entre a criminologia e a patologia, isto é, entra a ciência do crime e a da doença. Tão grande é o paralelo, que até se superpõem conselhos doutrinários e práticos na evolução de ambas (…) Estando a criminologia para as ciências penais, assim como a patologia para as ciências médicas, vemos, desde logo, que toda a aparelhagem das ciências penais visa fazer profilaxia do crime e das ciências médicas a da moléstia. É o destino para o qual ambas se dirigem, não há dúvida. (…) O combate ao delito encontra seu símile no combate à doença.”[10]

O excerto permite decodificar a aproximação entre criminologia e patologia na mentalidade de Fávero: ambos os campos compartilham “conselhos doutrinários e práticos”, e também estão historicamente ligados, em suas “evoluções”: essa evolução obedece ao imperativo de prevenir e combater o crime e a moléstia, para o que construiu-se aparelhagens próprias, em resposta a equivalentes necessidades sociais. Nessa lógica, a profilaxia do crime, assim como a profilaxia da doença, deve atualizar-se com as mais recentes tendências do conhecimento biomédico, em defesa da sociedade:

“Pois, como na patologia, assim é na criminologia. Do conceito lombrosiano puro (…) tivemos a revelação não só do meio físico e social, mas, no indivíduo, da sua constituição sômato-psiquica (escola constitucionalista), das suas glândulas de secreção interna (escola endocrinológica), de seu subconsciente traumatizado e recalcado (escola psicanalista) tudo influindo na capacidade de imputação, que o estudo da responsabilidade exige. (…) Não será indicada, diante disso, a colaboração do médico no estudo do crime?” [11]

A utilização pelos legistas de disciplinas como a psicanálise e a endocrinologia para estudo do criminoso obedece a exigência de atualização científica do campo da medicina legal e da criminologia: gradativamente abandona-se o foco na morfologia e na antropometria do indivíduo para aproximar-se dos debates mais prestigiados das glândulas e do subconsciente, o que contribuiu para garantia das prerrogativas dos legistas nas instituições estatais e dentre a categoria médica (ANTUNES, 1998. FERLA, 2009).

Efetivamente, os dois artigos evocados para finalizar esta breve seção são indicativos da relação que Fávero e seus colegas coetâneos buscavam estabelecer entre crime e endocrinologia: trata-se de “Endocrinopatia e Crime”, de 15 de novembro de 1946, e o já mencionado “Endocrinologia e Pecado”, de 13 de fevereiro de 1947.

No primeiro texto, Fávero busca justificar a associação contraintuitiva entre as glândulas internas e a predisposição ao crime, e o cerne de seu argumento pode ser depreendido do trecho abaixo:

“A endocrinologia, um dos mais novos ramos da medicina, estuda as secreções internas de certas glândulas, como a tireoide, as supra-renais, a hipófise, etc. O crime, velho fenômeno da vida social, é um ato humano, imputável, culposo, contrário a norma jurídica e passível de pena expressa na lei. Que relações podem ter o crime e as glândulas de secreção interna? O assunto é interessante e sempre oportuno. Se dois são os fatores que pesam na produção do crime, o mesológico e o pessoal, neste último, ligado a verdadeira predisposição constitucional de que o agente é portador, podem os transtornos glandulares concorrer na ação nociva. Como há constituições mórbidas várias, psicopáticas, etc., também se pode falar na existência de uma constituição delinquente. Esta possibilita o crime, da mesma forma que as outras, a doença. É o pendor, é, num exagero de linguagem, a vocação delituosa.” [12]

Se a ideia de que o crime é motivado por disfunções glandulares foi reconhecida por Fávero, o médico legista, porém, não poderia acatá-la por completo, já que isso significaria reduzir a medicina legal a questões endócrinas, quando seu escopo abrangeria muitas outras disciplinas, como mencionado anteriormente; ademais, a posição de Fávero como superintendente penitenciário, de um lado, e como pastor evangélico, do outro, induziam-no a questionar a eficácia das terapias hormonais prescritas pela escola endocrinológica, especialmente quando postas em comparação ao tratamento moral do regime penitenciário e a purificação da conversão religiosa, intervenções consideradas mais eficazes para terapêutica e profilaxia do crime e para regeneração de criminosos:

“Mas, dir-se-á, pecados existem, ou faltas assim rotuladas, que, a rigor, se devem a simples perturbações das glândulas de secreção interna. Não é justo punir por elas o seu indigitado autor, que mais faria jus a algumas injeções de hormônios terapêuticos. Cessada a causa cessaria o efeito. Desaparecida a disfunção, a virtude perfumaria de novo aquela alma atribulada. Entretanto, na gênese do crime e na responsabilidade de seu agente, essa ideia não é pacifica em criminologia. A escola endocrinológica, na Ciência Penal, de marcante materialismo, sofre os embates da mais justa crítica dos que encaram o problema do crime no terreno da realidade prática. Por que muitos e temíveis criminosos, sem qualquer ação curativa médica, de hormônios ou similar, se transformam inteiramente, readaptando-se para a vida livre, apenas com a terapêutica moral dos regimes penitenciários? A experiência é de todos os dias. Também a observação no terreno religioso é constante. Que são as conversões se não uma completa transformação de conduta dos que as obtêm?”[13]

O raciocínio de Fávero, justapondo criminologia e teologia, carrega um pressuposto em consonância com sua doutrina postivista e sua fé presbiteriana, qual seja: os indivíduo antissociais, mesmo os mais “temíveis criminosos”, estão aptos a serem regenerados para vida em liberdade, mediante regime moral e penitenciário correto. Bandeira recorrente durante sua vida profissional, Fávero buscou defender a capacidade de reinserção de criminosos não apenas entre médicos e jurídicos, mas também no meio político e à opinião pública[14]; essa convicção estava embasada numa lógica que pendula entre uma matriz científica, que deveria ser capaz de demonstrar como a razão positiva estava em consonância com a doutrina cristã, e uma matriz religiosa, em que a fé sustenta a concepção da ciência como anjo tutelar da sociedade – a ciência como reparadora das injustiças humanas e redentora dos erros de Adão.

Através de uma gramática própria, dinamizada por seu contexto e por seu lugar de fala – que entrecruza ciência e religião – Flamínio Fávero concluí sua argumentação sobre a profilaxia do crime de forma a ressaltar o poder maior da “dádiva dos Céus”, do “hálito divino” que nos fez a imagem de Deus e que justifica sempre a tentativa de regeneração do ser antissocial:

“Não haverá então, na Criminologia e na Teologia, um habitat propício para admitirmos que a personalidade humana, por mais combalida que esteja em sua estrutura e nas suas funções, sofre as influências incoercíveis de uma força maior, mais viva, mais intensa, que pode dominar desarranjos endócrinos e hormônios nocivos? Não nos esqueçamos de que o homem, embora animal,é animal diferente dos outros. Tem, no seio, o hálito divino que o fez livre, à imagem e semelhança do Criador. Não há disfunção que consiga destruir por inteiro, a majestade dessa dádiva dos Céus.” [15]
Considerações Finais

Entre o passado e o presente, os textos de Fávero ao jornal “Folha da Manhã”, tal como outros documentos expostos ou ocultos no Instituto Oscar Freire, permitem auferir, em consonância com a natureza conflituosa e divergente do tempo histórico, que cada contexto carrega liberdades e restrições, potencialidades e limites, experiências e expectativas próprias. A historicidade humana, nos lembram os teóricos, é sempre presente – em suas linhas de força e em suas linhas de fuga – e documentos históricos, como os textos de Fávero, são reveladores dessa tensão insolúvel entre o que foi e o que vai sendo, entre o que é lembrado e o que é esquecido, entre a permanência e a ruptura histórica (THOMPSON, 1981. DELEUZE, 1992. KOSELLECK, 2006. LE GOFF, 2015).

No decorrer deste artigo, buscou-se demonstrar como o acervo do Instituto Oscar Freire, atualmente sob custódia do Laboratório Didático do IOF para aulas e consultas supervisionadas, é de grande valia para comunidade médica, para o meio científico e, em última instância, para sociedade brasileira. Mesmo que a utilidade pedagógica de seus roteiros de ensino seja ofuscada diante dos novos recursos digitais e computacionais ao dispor da educação médica, o acervo como centro de memória e documentação pode contribuir para descortinar temas de genuíno interesse público, sobretudo no que se refere ao passado das políticas de garantia da lei e da ordem em São Paulo, e no papel diversificado dos médicos na sociedade de classes; para além desses temas, muitos outros subjazem aos objetos e documentos do acervo do IOF, somente à espera do olhar especializado, para dialogarem com trabalhos acadêmicos dos mais diversos gêneros.

Frente ao potencial das coleções, resta defender a permanência da vinculação entre ensino, pesquisa e extensão que rege a política de acervos universitários, que mais do que nunca carecem de visibilidade e cobertura orçamentária: afinal, não se trata apenas de preservar o passado e a memória, mas sim de conservar-se os meios para historicizar nosso presente – única forma de reconhecer o mundo social em seu caráter transitório, dialético, real.

Notas
Referências Bibliográficas: