Artigo
História, saúde e infância: contribuições do acervo da Cruzada Pró-Infância na década de 1930

History, health and childhood: contributions from the collection of the Pro-Childhood Crusade in the 1930s

Beatriz Lopes Porto Verzolla[*]

Resumo:

Este artigo apresenta relações entre saúde e infância ao longo da década de 1930, período em que havia no Brasil grande preocupação com a situação sanitária e com a formação de um povo forte e sadio, tendo as crianças como elementos fundamentais nessa empreitada. Para contribuir com as discussões realizadas, são resgatados documentos da Cruzada Pró-Infância, instituição que teve papel de destaque na ampliação do desenvolvimento da educação sanitária na cidade de São Paulo. Foram utilizados documentos da década de 1930, apresentados a partir da teoria do paradigma indiciário, buscando confluências entre medicina e história. A partir das argumentações realizadas, pretende-se apresentar as preocupações em torno da infância e seus alinhamentos com preceitos médico-sanitários do período, utilizando como fonte o acervo de um importante equipamento na construção da história da saúde pública paulista.

Palavras-chave: Cruzada Pró-Infância. Arquivos de Instituições de saúde. Educação Sanitária. História da saúde.

Abstract:

This article presents connections between health and childhood during the 1930s, when there was a great concern in Brazil about the health situation and the formation of a strong and healthy people, with children as fundamental elements in this endeavor. In order to contribute to the discussions, we revisited documents of the Pro-Childhood Crusade, an institution that played a prominent role in the expansion of health education development in the city of São Paulo. We used documents from the 1930s, presented from the theory of the indiciary paradigm, searching for confluences between medicine and history. Based on the arguments made, we intend to present the concerns about childhood and its alignments with medical-sanitary precepts of the period, using as a source the collection of this important institution in the construction of the history of public health in São Paulo.

Keywords: Pro-Childhood Crusade. Health institutions’ archives. Sanitary Education. Health History.

Introdução

Compreender a Medicina a partir de uma perspectiva histórica consiste em importante tarefa no estudo das práticas médicas e em saúde, oferecendo subsídios para análise dos aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais que estão envolvidos nas relações entre medicina e sociedade. Contextualizar o exercício dessas práticas por meio das fontes históricas, torna-se relevante para compreender as rupturas e permanências do passado, que influenciam e transformam as práticas presentes.

A história das práticas médicas e de saúde busca pistas e vestígios deixados no tempo e espaço, a partir do material produzido, de capital intelectual e simbólico, redefinindo teorias, ações profissionais e intervenções práticas. Dessa forma, uma importante contribuição histórica no campo médico consiste em agregar a compreensão contextual e sociológica das políticas e práticas de saúde (Mota e Schraiber, 2012).

Neste sentido, os arquivos de instituições de saúde constituem-se em instrumento de apoio à cultura e ao desenvolvimento científico e devem ser reconhecidos como fonte de memória social, de ciência e de saúde, equiparados à categoria de patrimônio cultural. Além de sua importância para a administração da saúde, os arquivos de instituições de saúde são importantes também para o estudo da história da saúde e da ciência, na medida em que podem auxiliar a reconstruir a trajetória de evolução social, cultural e científica da saúde (Nascimento, 2014).

O período histórico abrangido neste artigo contempla a década de 1930, período em que o Estado brasileiro passou por profundas transformações e o regime instaurado no período prometia um novo começo, uma nova república em um país renovado e, em especial, um novo homem brasileiro. Tinha como premissas a modernização, o desenvolvimento, o nacionalismo, o antiliberalismo, a centralização política e administrativa, o controle político e a extensão da proteção social (Mai e Boarini, 2002; Paim, 2002). Segundo Hochman (2005), o país estava diante de um quadro sanitário ameaçado pela febre amarela, malária, hanseníase e tuberculose, esta última configurando-se como o mais grave problema sanitário das cidades. Diante desse quadro, passaram a ganhar destaque entre os intelectuais brasileiros as teorias eugenistas, com base nos estudos de Francis Galton sobre hereditariedade e aprimoramento racial.

Com objetivo de solucionar tal situação, cresciam as ações relacionadas ao saneamento e higienização do país e, em meio a esta tarefa, a figura da criança era tida como esperança da regeneração nacional, desejando-se estabelecer um padrão de “criança higienizada” por meio da promoção de hábitos saudáveis, que levariam à formação de um corpo apto para o trabalho. As crianças eram alvo das esperanças dos trabalhadores que almejavam mudanças sociais, o que reforçou a propagação de hábitos considerados sadios, a fim de garantir uma raça forte e combativa (Lima, 1983; Marques, 1994; Bertucci, 1997; Reis, 2000).

Assim, ações ligadas à Saúde Escolar e à Puericultura ganhavam cada vez mais espaço, justificando-se pelo discurso de combate aos altos índices de mortalidade, que ameaçavam o futuro da nação. A desordem da sociedade, a ignorância da população, a inferioridade de raças e a ausência de comportamento moral seriam os determinantes das más condições de saúde da população e, portanto, causas dos altos índices de mortalidade infantil (Novaes, 2009).

Para promover as ações ligadas à Saúde Escolar e à Puericultura, uma importante estratégia utilizada foi a organização de sociedades filantrópicas. O ideal da filantropia viria em auxílio à modernização da sociedade para a melhoria das condições de vida e de saúde da população. Frente a esse cenário, destaca-se a criação da Cruzada Pró-Infância, sediada na cidade de São Paulo, em 1930, a partir da união de Maria Antonieta de Castro (presidente da Associação das Educadoras Sanitárias), Pérola Byington (futura diretora da Cruzada) e conceituados médicos, jornalistas e figuras de destaque social da época (Lima, 1983; Mott, Byington e Alves, 2005):

A CRUZADA PRÓ INFANCIA, instituída a 12 de Agosto de 1930, nesta Capital, onde tem sua sede e foro jurídico, como base de seu programa de ação, propõe-se a defender, por todos os meios ao seu alcance, os direitos da Gestante e da Criança, conhecidos por CONVENÇÃO de GENEBRA, assignada aos 26 de Setembro de 1924, pela Conferencia da Liga das Nações (Cruzada Pró-Infância, 1930b).[1]

Neste artigo, serão utilizados documentos referentes à Cruzada Pró-Infância ao longo da década de 1930, que foram consultados no acervo do Núcleo de Documentação do Instituto Butantan/ Museu de Saúde Pública Emílio Ribas. A apresentação e discussão dos documentos selecionados segue o conceito do paradigma indiciário, no qual Ginzburg (1989) propõe a identificação de um fator comum entre as ciências da História, Filologia e Medicina: a utilização de pistas, sinais e indícios para a análise de seus objetos de estudo, revelando aspectos singulares dos materiais e sujeitos que os produzem.

Neste sentido, os documentos da Cruzada são entendidos como indícios do passado e que permitem a identificação de ideologias e práticas médicas e de saúde do período estudado. Segundo os objetivos deste artigo, serão apresentadas temáticas relacionadas à preocupação com a regeneração do povo brasileiro, tendo nas crianças o alvo das ações saneadoras, que contaram com a contribuição de importantes instituições de saúde pública, como a Cruzada Pró-Infância.

A Cruzada Pró-Infância e o lugar dos arquivos de instituições de saúde

Os arquivos de instituições de saúde apresentam relevância para o estudo da história e da ciência e vão além de auxiliar na área de administração em saúde. Tais arquivos não se restringem à documentação médica – como no caso de prontuários dos pacientes – mas também contemplam outros documentos relativos ao histórico, missão e valores da instituição, bem como relatórios, atas e registros diversos inerentes às práticas das entidades (Conselho Nacional de Arquivos, 2014; Nascimento, 2014).

A organização dos arquivos públicos oferece uma função social de apoio à cultura, ao desenvolvimento científico e garante pleno acesso à informação. Os documentos de arquivo refletem as atividades às quais se vinculam e expressam ações de seus produtores no desempenho de suas funções. Nesse sentido, os arquivos de instituições de saúde oferecem importantes elementos para a construção da história das ciências, na medida em que fornecem informações a respeito dos atores envolvidos, seus espaços institucionais e de representação (Fonseca, 2002; Conselho Nacional de Arquivos, 2014).

Os documentos da Cruzada Pró-Infância apresentados neste artigo pertencem ao acervo do Núcleo de Documentação do Instituto Butantan, que é composto por fundos institucionais e pessoais, além de coleções especializadas, tendo como objetivo preservar e divulgar a memória científica institucional. Os documentos do acervo podem ser consultados mediante agendamento prévio por meio de contato direto com a instituição.

A consulta aos documentos foi realizada nas dependências do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (MUSPER), que está vinculado ao Centro de Desenvolvimento Cultural do Instituto Butantan. O acervo do museu é formado por documentos de arquivo da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, assim como acervos museológicos e bibliográficos, contribuindo para pesquisas e produção de conhecimentos na área da história das ciências e da saúde pública. A criação do MUSPER, cujo acervo começou a ser formado em 1965, remete ao contexto de transformações nas concepções de saúde pública e de abertura política no país, com a ampliação da assistência à saúde como direito do cidadão e dever do estado. Dessa forma, o museu representa um importante espaço de preservação da memória da saúde pública paulista, na medida em que reúne amplo acervo de instituições de saúde (Senne e Urzua, 2010).

Na ocasião da consulta, os documentos da Cruzada estavam organizados cronologicamente e disponíveis apenas para consulta direta, sem acesso a mecanismos de busca de dados bibliográficos informatizados. Foram consultados os documentos disponíveis no acervo datados da década de 1930, incluindo: registros de atas de reuniões e assembleias, folhetos de divulgação da instituição, álbuns de fotografias, compilados de recortes de jornal com reportagens e informativos sobre as ações da entidade, encartes com a programação dos eventos, transcrição de palestras, relatórios de atividades e cartas das fundadoras da Cruzada. A utilização do acervo da Cruzada permite, não apenas o resgate da memória da instituição, mas também auxilia na compreensão dos aspectos de proteção à infância em São Paulo, das influências ideológicas e dos atores implicados nesse processo, em uma contextualização mais ampla dos cuidados em saúde pública destinados às crianças no período.

Eugenia, puericultura e proteção à infância nas ações da Cruzada Pró-Infância

No final do século XIX e início do século XX, momento em que as indústrias consistiam em importante fator para a expansão da economia brasileira e aumentava o crescimento urbano no Brasil, ganhavam importância também as medidas de saneamento, como a limpeza e ordem das ruas e casas e o abastecimento de água e esgoto. As inovações da ciência passaram, então, a ser importantes aliadas no combate às enfermidades para propiciar a gestão mais conveniente do espaço público, como estratégia de sobrevivência física e de garantir poder político e financeiro. Neste sentido, fortaleciam-se no país os ideais eugênicos baseados nos estudos de Francis Galton a partir de 1880, que encontraram lugar entre médicos e intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século XX (Schwarcz, 1994; Bertucci, 1997; Mota, 2005).

Como ciência, a eugenia baseou-se nos entendimentos novos das leis da hereditariedade humana. Como movimento social, envolveu propostas que asseguraram a melhoria da composição hereditária da sociedade, encorajando a reprodução dos superiores e desencorajando a dos inferiores e indesejados. Quanto aos aspectos práticos, a eugenia encorajou a administração científica da composição hereditária da espécie humana, introduzindo novas ideias sociais e políticas inovadoras. A eugenia como ciência do aprimoramento racial abordava tal questão como melhoria genética da raça humana, porém os eugenistas interessavam-se por parcelas específicas da população humana, dividida em raças distintas e desiguais (Schwarcz, 1993; Stepan, 2005).

A eugenia foi incorporada no contexto de mudanças corporativas ocorridas especialmente na década de 1930, tendo São Paulo como palco mais intenso dessas transformações. A eugenia foi recebida como um termo médico, sendo introduzida nas diferentes especialidades e discutida pela corporação médica como tecnologia científica a ser implementada, desde estudos obstétricos às ações dos cirurgiões, das práticas sanitárias às experiências psiquiátricas. Contudo, as práticas eugênicas eram interpretadas e praticadas de formas diversas ou opostas, defendendo ações ambientais na regeneração do homem – eugenia positiva – ou ações baseadas na genética e na hereditariedade para a melhoria racial – eugenia negativa (Mota, 2012).

O contexto de surgimento da Cruzada Pró-Infância relaciona-se com as mudanças ocorridas no cenário paulista do período, em que as ações sanitárias e de higiene ganhavam destaque entre os serviços de saúde e deveriam alcançar toda a sociedade. De acordo com Mott (2001), uma das formas de se resgatar a história da Cruzada Pró-Infância seria a partir do discurso maternalista, fundamental para repensar a participação social e política das mulheres das camadas médias e das elites na primeira metade do século XX, por meio da filantropia. Segundo a autora, no período mencionado, a maternidade deixava de ser uma função individual, do âmbito familiar, para assumir uma função social. A maternidade proporcionaria às mulheres qualidades específicas para o desenvolvimento de determinadas atividades destinadas ao bem-estar das crianças, dever de todas as mulheres exercerem perante à nação.

Uma das fundadoras da Cruzada, Pérola Byington, filha de um casal de imigrantes dos Estados Unidos, realizou diversas ações em favor da filantropia no Brasil, promovendo campanhas para angariar fundos para instituições de proteção à infância e compondo a direção de uma das seções da Cruz Vermelha. Maria Antonieta de Castro era reconhecida por sua atuação como professora, escritora e educadora sanitária, foi presidente da Associação das Educadoras Sanitárias e atuou em cargos de chefia no Serviço Sanitário e no Instituto de Higiene. Juntas, Pérola e Maria Antonieta tiveram papel fundamental na organização inicial da Cruzada e no planejamento de metas da instituição (Mott, Byington e Alves, 2005).

Os objetivos iniciais da Cruzada abrangiam complementar a atuação das educadoras sanitárias, por meio da criação de um Dispensário Central, onde as crianças teriam assistência sanitária, médica e odontológica e receberiam encaminhamento para tratamento hospitalar e assistência social – doação de roupas, remédios, alimentos e indicação para internação em instituições específicas. As gestantes receberiam apoio maternal e moral, assistência pré-natal e garantia de assistência ao parto e apoio aos outros filhos enquanto permanecessem afastadas do lar. O Dispensário também oferecia apoio às nutrizes para amamentar os filhos e reivindicava leis favoráveis às mães e às crianças. As ações da Cruzada estavam envolvidas com a educação sanitária e moral, sendo preservados valores relacionados à pátria, família, ordem, disciplina e trabalho. Também eram realizadas visitas domiciliares e palestras, que se destinavam à classe média e às elites, enquanto a revista Infância e os cursos de puericultura eram voltados às classes menos favorecidas (Mott, Byington e Alves, 2005).

Os dispensários de assistência à infância seriam locais privilegiados para oferecer socorro imediato e educação sanitária à população, o que possibilitou a concretização da Cruzada Pró-Infância como um dos principais exemplos desse tipo de instituição, com grande reconhecimento e prestígio na cidade de São Paulo. O Dispensário Central da Cruzada contava com os serviços de higiene infantil, cozinha de dietética infantil e de demonstração de puericultura, higiene pré-natal, exame médico geral, higiene escolar, otorrinolaringologia, sífilis e moléstias venéreas, raios ultravioletas, exames de laboratório, gabinete dentário, educação sanitária e propaganda, visitas domiciliares e seção de costuras (Cruzada Pró-Infância, 1933):

Em seu contacto diuturno com as classes menos favorecidas da fortuna, auscultando, de perto, suas necessidades, cônscias do que significam os fatores IGNORANCIA e MISERIA no acrescer alarmante de parcelas no obituário infantil, sentiram, as Educadoras Sanitárias, em 1930, a necessidade de organizar um trabalho serio de assistência social que viesse de encontro, completando, á assistência medico-sanitaria dispensada ao nosso mundo infantil, nos Centros de Saúde de então (Cruzada Pró-Infância, 1933: 3, grifos no original).
Ação conjunta sob um espirito largo de cooperação, é do que precisamos. E, tal, é o lema da Cruzada: É preciso que de todas as partes, de todos os recantos de nossa Terra, venham os recursos que hão de garantir, á CRIANÇA PAULISTA, o seu DIREITO á saúde, Alegria, Educação, Felicidade (Cruzada Pró-Infância, 1936b: 6, grifos no original).

Nessa época, a educação era tomada como a solução de todos os problemas nacionais e seria o meio de levar o país a atingir o nível de outras nações, consideradas de cultura mais elevada, podendo alcançar o posto de nação digna e respeitável. A ignorância era considerada uma calamidade pública e deveria ser combatida enfaticamente, em uma “cruzada redentora” (Rocha, 1995; 2003; Rocha e Marques, 2006; Bertucci e Mota, 2014):

Uma das causas que influem grandemente para que as parcelas de obituário infantil vão se acumulando, assustadoramente, é a ignorância das mães relativamente á arte de bem cuidar seus filhos. Causa essa, entretanto, facilmente removível: pela vulgarização das noções sobre higiene infantil – a puericultura – a ciencia que cuida do ser humano na sua evolução intra e extra-uterina, pondo em pratica todos os meios e providencias stenuantes a favorecer, facilitar e melhorar o desenvolvimento do feto e da criança. Guiar a instintiva afeição materna pelo bom caminho é obra da educação (Cruzada Pró-Infância, s/d: 12-13).

As ações da Cruzada Pró-Infância estavam em consonância com as ideologias de pensadores brasileiros e estrangeiros ligados ao ramo positivo – ou lamarckista – da eugenia, que considerava ser possível uma intervenção no ambiente para favorecer a criação de tipos eugênicos, defendendo medidas potencializadoras para viabilizar o nascimento de crianças saudáveis, como educação eugênica, ações de saneamento básico, cuidados com nutrição e higiene, prática de atividades físicas, assistência pré-natal e ao parto, controle e tratamento de doenças infecciosas. Dessa forma, ganharam destaque estudos e ações nas áreas de saúde reprodutiva, saúde mental, saúde da infância e puericultura (Mota, 2003; 2012; Mai e Angerami, 2006; Novaes, 2009).

Como estratégia de ação higiênica normatizadora, os eugenistas apostavam no abandono de hábitos considerados tradicionais e inadequados, prejudiciais ao progresso da nação. Os “homens da ciência” eram considerados os responsáveis por conduzir a marcha rumo ao progresso, sendo o trabalho e a produtividade as grandes forças regeneradoras. Os médicos higienistas e sanitaristas passaram, então, a exercer influência não apenas sobre o observável, mas também sobre os processos referentes aos modos de ser dos indivíduos (Kevles, 1985; Rocha, 1995; 2003; Mota, 2005).

Neste sentido, os médicos passaram a ter papel de destaque em intervenções cotidianas relacionadas às crianças, tendo a Puericultura como disciplina norteadora de suas práticas. A Puericultura destacava-se como a solução para a desordem que poderia gerar o esvaziamento do país pela mortalidade infantil, pois nas crianças eram depositadas as esperanças de regeneração racial e progresso (Figura 1):

Figura 1: Ilustração presente em um folheto de divulgação da Cruzada Pró-Infância (Cruzada Pró-Infância, 1930a).

Ilustração presente em um folheto de divulgação da Cruzada Pró-Infância (Cruzada Pró-Infância, 1930a).

Fonte: Acervo Instituto Butantan – Núcleo de Documentação

A partir da valorização da criança nessa empreitada, a Puericultura, como ramo da Higiene Geral, surgia como um instrumento utilizado para garantir a prevenção de doenças, o aprimoramento do regime alimentar e o cuidado pré-natal desde as primeiras fases da vida infantil, contribuindo, dessa forma, para a preservação e aperfeiçoamento da raça, sendo considerada elemento fundamental para promover o ramo da eugenia positiva, baseada em ações higiênicas e educativas e tida como aliada na proteção do futuro da humanidade por meio das crianças (Mota, 2003; Mota e Schraiber, 2009).

A Puericultura desenvolveu-se na França no final do século XIX, propondo-se a normatizar os aspectos relacionados à melhor forma de se cuidar de uma criança, visando a uma saúde perfeita. Deveria ser dirigida a todas as crianças, mas era colocada pelos médicos como prioritária àquelas que nasciam em um meio social desfavorável, com maiores riscos para a saúde. O surgimento dessa nova prática está inserido em um contexto de expansão da mão-de-obra imigrante no país, que buscava trabalho nas indústrias e era submetida a condições insalubres. Dessa forma, os trabalhadores estavam sujeitos a más condições de saúde, que atingiam também as crianças, gerando aumento da mortalidade infantil (Novaes, 2009).

Com a finalidade de melhorar as condições de vida das crianças para aumentar a produtividade no trabalho e evitar a propagação de epidemias para a população geral, foram impostas regras de vida que impedissem o surgimento de tensões sociais, tendo impacto no processo de normatização dos comportamentos em escolas, entidades filantrópicas e instituições organizadas pelos médicos (Ribeiro, 1993; Ferreira, 2009; Novaes, 2009), sendo possível manejar cientificamente o processo biopsicossocial de transformação dos corpos infantis em corpos adultos, que seriam “corpos dóceis” positivamente produtivos (Foucault, 1984; 2004).

A Cruzada Pró-Infância também era responsável por oferecer cursos de Puericultura, os quais eram considerados fundamentais na educação das mães e futuras mães para auxiliar no combate aos altos índices de mortalidade infantil que ameaçavam o país. Dentre as temáticas abordadas, estavam o enxoval do bebê, vestuário, banho, posicionamento, desenvolvimento infantil, alimentação, desmame, dentição, ar livre e passeios (Cruzada Pró-Infância, 1937):

Muitas moléstias são evitáveis. A criança doente o é, muitas vezes, por descuido, ignorância, pobreza [...] Cada criança que aprende a ler é o pequeno operário que trabalha para a construção de uma Pátria melhor [...] Dar filhos fortes á nação é a mais nobre manifestação do patriotismo da mulher (Cruzada Pró-Infância, s/d: 4).
Auspicioso dizemos, pois, não é sem lutas, não é sem vencer, obstáculos sem conta que chegamos a realizações como esta, de que a Cruzada se ufana, pois, vem trazer sua contribuição para a luta contra a mortalidade infantil, fornecendo, a mães e futuras mães, a arma poderosa – o ensino da Puericultura – o meio mais eficiente para a conservação e melhoria da saúde da criança (Cruzada Pró-Infância, 1937: s/p).

A desordem da sociedade, a ignorância da população, a inferioridade de raças e a ausência de comportamento moral seriam os determinantes das más condições de saúde da população e, portanto, causas dos altos índices de mortalidade infantil. Os indivíduos eram responsabilizados por seus comportamentos prejudiciais à boa saúde e o Estado não aparecia como participante de tais questões, não sendo apontados aspectos políticos, econômicos e sociais como determinantes ou coadjuvantes no estado de saúde/doença da população. Nesse contexto, os cuidados médicos direcionados às crianças destacavam-se como a solução para a desordem que poderia gerar o esvaziamento do país pela mortalidade infantil (Novaes, 2009).

Todos os anos era realizado pela Cruzada um evento denominado Semana da Criança, que buscava elevar a consciência da população acerca dos cuidados com a infância e despertar iniciativas e realizações em torno da assistência e proteção à criança. A programação era distribuída ao longo da semana de 12 de outubro e contemplava palestras e eventos divididos em eixos temáticos: dia do lactante, dia da raça, dia da criança asilada, dia da criança hospitalizada, dia da criança que estuda e dia da criança que trabalha. A programação variava a cada ano, envolvendo reuniões de crianças, cursos de puericultura destinados às mães, sessões de cinema, leitura de mensagens, palestras, atividades musicais, oficinas recreativas, homenagens às mães, competições esportivas infantis, comemorações religiosas, visitas das crianças aos asilos e hospitais para realizar doações e pequenas festas nas instituições, além de realizar as premiações do Concurso de Robustez Infantil (Cruzada Pró-Infância, 1936a):

Á criança do Brasil está reservado um futuro promissor. Já se disse que “A hora é da America e, na America a hora é do Brasil”. Pois bem, ás crianças de hoje caberá formar a collectividade adulta do país nos dias venturosos que se sentem chegar. Preparal-a, pois, para receber aquelle legado, é, obra a que se não podem negar applausos. Bem compreendida essa situação, todo o Brasil do Oiapoc ao Chuy, solidarizou-se, dando o realce, possível, á “Semana da Criança” (Cruzada Pró-Infância, 1936a: s/p).

Uma das principais ações da Cruzada, que encerrava a Semana da Criança, era o Concurso de Robustez, constituindo-se em uma das atividades do Dia do Lactante. De acordo com as regras estabelecidas pelo concurso, eram admitidas crianças de seis meses a três anos de idade, matriculadas nos diferentes Centros da Cruzada, com renda mensal estabelecida em valores diferentes a cada ano. Após rigorosa seleção pelos médicos assistentes dos serviços de Higiene Infantil, eram escolhidas cinco crianças para o julgamento. Ao final, eram concedidos diplomas a todas as crianças selecionadas pelos serviços de higiene infantil e que haviam participado do concurso (Cruzada Pró-Infância, 1934; 1936a; 1937; 1939). Por meio do concurso, pode-se perceber a preocupação com a formação de descendências saudáveis e a valorização de um padrão de criança eugenizada.

A fim de ampliar a difusão dos preceitos higiênicos, seja na escola ou fora dela, os meios impressos – como cartazes, livros e revistas – eram utilizados na educação das crianças e na instrução dos adultos. A propaganda sanitária passou a ter lugar de destaque e os manuais de higiene, conferências, teses e trabalhos apresentados em congressos abordavam de forma representativa os cuidados às crianças (Marques, 1994; Rocha, 2003; Verzolla, 2013). A Cruzada Pró-Infância continha um departamento denominado Serviço de Educação Sanitária e Propaganda, responsável pela divulgação de seus trabalhos em relação à higiene, consistindo em importante recurso para o alcance da educação sanitária da população (Cruzada Pró-Infância, 1933):

Enfeixando todos esses serviços e colocando, mesmo, em lugar de destaque pela importância que merece, ha o SERVIÇO DE EDUCAÇÃO SANITARIA cuja finalidade é a divulgação de preceitos de higiene entre os pacientes que procuram o Dispensario. Enquanto esperam a consulta, ouvem palestras da educadora sanitaria America Machado a quem o serviço está afeto, e que versam, principalmente, sobre higiene infantil, pré-natal, hábitos sadios e higiene em geral, além de demonstrações praticas sobre o preparo de mingaus, leites preparados e outros (Cruzada Pró-Infância, 1933: 10, grifo no original).

Em seu estudo sobre as publicações da Revista Infância – editada pela Cruzada a partir de 1933, com contribuições da elite paulistana – Moura (2010) observa a revista como um veículo de divulgação do trabalho da entidade entre as famílias operárias e abordava assuntos relacionados à saúde, educação e psicologia da criança, difundindo conhecimentos científicos e pretendendo educar os “pobres” por meio do conhecimento dos “ricos”. O ideal saneador da Cruzada acompanhava as teorias difundidas no período, que consideravam a criança como alvo das políticas de educação sanitária para melhorar a raça e constituir um modelo de nação.

Teixeira e Marques (2014) apontam que, do final do século XIX até a década de 1910, as ações de saúde tinham seu eixo de orientação nas doenças e os enfermeiros concentravam sua atuação em hospitais de isolamento, hospedarias e domicílios, sob acompanhamento médico ou sem supervisão, em atividades de caridade. Com as transformações na saúde pública ao longo das décadas de 1920 e 1930 e a ênfase na educação sanitária, houve um deslocamento na atuação das enfermeiras, com foco na prevenção e promoção de saúde, organizando-se nas frentes de enfermeiras visitadoras e enfermeiras escolares, pautando-se nas orientações e práticas defendidas pelo pensamento sanitário da época.

Como uma das ações educativas da Cruzada, foi criado o curso de educadoras sanitárias, com duração de doze meses, mais seis meses de exercícios práticos, que previa em seu currículo aulas de bacteriologia, parasitologia, entomologia aplicada à higiene, estatística vital, epidemiologia, nutrição e dietética, higiene infantil, higiene mental e do trabalho, higiene municipal e das habitações, educação e administração sanitária, enfermagem e saúde pública. As profissionais poderiam atuar em escolas (Figura 2), fábricas, residências e postos de saúde, e os principais alvos eram crianças em idade escolar e mães (Cruzada Pró-Infância, 1933; Castro, 1935a; Mott, Byington e Alves, 2005):

Figura 2: Educadora ordenando as crianças em fila, no Dispensário Central da Cruzada Pró-Infância (Cruzada Pró-Infância, 1935)

Educadora ordenando as crianças em fila, no Dispensário Central da Cruzada Pró-Infância (Cruzada Pró-Infância, 1935)

Fonte: Acervo Instituto Butantan – Núcleo de Documentação

A educação sanitária era considerada sinônimo da aquisição de hábitos, assumindo papel central na política sanitária a partir da década de 1920, por meio da busca da imposição de um modo de vida normatizado, prescrito pelos expoentes do higienismo, conformando as crianças da escola primária às práticas higiênicas (Rocha, 2003). A fiscalização dos ambientes escolares passou a fazer parte da rotina das atividades dos higienistas nessa época, englobando a vigilância das condições de instalação dos prédios, salas de aula, cantinas, mobiliário e equipamentos destinados a jogos e atividades esportivas e identificação de casos de moléstias contagiosas (Ribeiro, 1993; Rocha, 1995; Mota, 2010).

Com o fim de velar pelo cumprimento dos preceitos de higiene no lar, por parte das mães e gestantes, e de verificar suas condições de vida higienico-sociaes e, ainda, para maior divulgação dos ensinamentos de higiene infantil e pré-natal e acompanhar, de perto, as pacientes matriculadas no Dispensario, fazem, a educadora sanitaria e a exma. sra. Paula de Campos, visitas sistematicas, levando, ás visitadas, a palavra que educa e anima e, ainda, o conforto material que a Cruzada lhes dá (Cruzada Pró-Infância, 1933: 10).
Educadora, como seu próprio nome o indica, é a melhor colaboradora na formação da consciência sanitaria do cidadão. Na escola, educando; no lar, realizando obra social; criando atitude nova, implantando hábitos sadios, físicos e mentais. Pesquisado, estudando as condições do meio, encontra as causas dos males que procura remover, resolvendo verdadeiros casos-problemas (Castro, 1935a: 48 – grifos no original).

As práticas de higiene visavam à normatização dos comportamentos cotidianos, desde a escovação dos dentes até a formação do caráter. Na escola, as crianças deveriam não apenas executar as ações estabelecidas, mas também repetir, diariamente, seus deveres em relação às práticas saudáveis. O disciplinamento dos educandos se dava por meio da normatização de atividades facilmente administráveis, que deveriam ser memorizadas e internalizadas, tais como o uso adequado das roupas, a nutrição, a higiene e o comportamento (Marques, 1994).

O ramo positivo da eugenia foi o que mais recebeu destaque nos estudos brasileiros sobre o tema, tendo como pilares no país as discussões acerca de higiene, sanitarismo e educação, com especial abordagem para os cuidados à infância, visto que nas crianças eram depositadas as esperanças de regeneração racial e progresso. Nessa época, a sífilis, a tuberculose e o alcoolismo eram considerados responsáveis pela degeneração moral e social, pois, de acordo com os eugenistas, os indivíduos já nasceriam com uma tendência para adquirir tais males, por meio das “taras hereditárias”.

Tal teoria defendia a transmissão hereditária de uma predisposição ao desenvolvimento de determinadas doenças e condições, mesmo na ausência de um agente etiológico transmitido hereditariamente. Seria o caso, por exemplo, de uma tendência herdada para o desenvolvimento do alcoolismo ou da criminalidade em ambientes favoráveis à degeneração (Lima, 183; Benchimol, 1995; Verzolla e Mota, 2017). Para combater a transmissibilidade das taras hereditárias, adeptos da eugenia positiva defendiam intervenções no ambiente para transformação das gerações futuras, por meio da educação sanitária, higiene e puericultura, conforme aponta trecho de arquivo da Cruzada:

Para que a criança venha ao mundo, em condições tais que lhe garantam o pleno desenvolvimento de seus órgãos, mister se faz, ministrar, á mãe, todos os cuidados da assistência pré-natal, o que, aliás, constitui um direito inalienável de todas as mães, bem como, de todos os filhos, pois que, nenhuma criança deve nascer com uma tara hereditária, si ha meios para impedi-lo (Castro, 1935b: 120).

Apesar dos avanços da medicina da época em relação à propagação das doenças infecciosas, com conhecimentos sobre os agentes transmissores (Lima, 1983; Benchimol, 1995), a teoria de transmissão das taras hereditárias ainda se fazia presente, especialmente nesse período em que a sífilis, a tuberculose e o alcoolismo eram considerados fatores diretamente responsáveis pela degeneração moral e social. A propaganda eugênica evidenciava a preocupação dos eugenistas acerca da transmissão de uma hereditariedade mórbida e de medidas de proteção à descendência, que incluíam, a exemplo do modelo adotado pela Cruzada, ações de higiene e educação sanitária.

A noção de um estigma de degeneração transmitido hereditariamente para a prole, em detrimento das descobertas no campo da microbiologia, está implicada com a construção de identidades sociais. Mais do que transmitir à descendência genes alterados, os indivíduos considerados indesejáveis propagariam uma tara mórbida, o estigma de uma identidade social e moral degenerada, que deveria ser repelida em prol da construção de uma raça eugenicamente formatada.

Considerações finais

Os documentos da Cruzada Pró-Infância podem ser considerados relevantes na compreensão do contexto médico-sanitário da década de 1930, na medida em que oferecem elementos acerca das representações sobre a infância e dos cuidados com as crianças, incluindo atividades de puericultura e educação sanitária, particularmente no contexto de São Paulo, onde a Cruzada estava instalada.

A preocupação com o fortalecimento das ações relacionadas à infância, a importância atribuída ao papel da mãe na educação das crianças e a utilização de padrões de normatização nas escolas e em centros de saúde, expostas nos documentos apresentados, estão relacionadas com o contexto de saúde brasileiro do período. A noção de progresso relacionada com os cuidados com a infância, reflete a preocupação dos médicos e intelectuais do período em livrar o país da ignorância, o que levaria à degeneração e, consequentemente, à proliferação de doenças.

Os arquivos de instituições de saúde permitem resgatar documentos importantes, auxiliando na contextualização de teorias e práticas de instituições de saúde do período e ampliam a compreensão de ideologias propagadas para além das instituições médicas, fornecendo pistas sobre o funcionamento da sociedade em geral, sua estruturação política, econômica e cultural. Os documentos da Cruzada Pró-Infância dialogam com os ideais eugênicos brasileiros e mundiais e apresentam-se como importantes elementos de apreensão das crenças e ideologias dos intelectuais do período, demonstrando convergências e inter-relações discursivas.

Notas

Referências

Acervo da Cruzada Pró-Infância

Referências bibliográficas