Artigo
Pesquisa histórica e produção de conhecimento: as experiências e a conformação do Arquivo do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
André Mota [*]
Gustavo Querodia Tarelow[**]
Clebison Santos do Nascimento[***]

Resumo:

O presente artigo apresenta as transformações pelas quais o Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo desde 2009, quando, a partir de um novo projeto arquivístico e museológico, pôde ampliar seu acervo, compor e restaurar novas coleções, bem como criar e disponibilizar novas bases de dados. São exploradas as articulações entre o seu rico patrimônio documental, iconográfico e tridimensional com as propostas expositivas e educativas que são renovadas periodicamente. Finalmente, explorando as fichas cadastrais dos pesquisadores que acessam as dependências do Museu são apresentadas as demandas e as políticas de gestão arquivística da instituição.

Palavras-chave: Museu Histórico da FMUSP. Pesquisa histórica. Patrimônio museológico. Arquivos médicos.

Abstract:

Historical research and knowledge production: the experience and the organization of the Historical Museum of the University of São Paulo Medical School

This article presents the transformations for which the Historical Museum of the Faculty of Medicine of the University of São Paulo since 2009, when, from a new archival and museological project, it was able to expand its collection, compose and restore new collections, as well as create and new databases. The articulations between its rich documentary, iconographic and three-dimensional heritage are explored with the expository and educational proposals that are renewed periodically. Finally, exploring the cadastral records of the researchers that access the Museum's dependencies, the demands and the archival management policies of the institution are presented.

Keywords: FMUSP Historical Museum. Historical research. Museological patrimony. Medical Archives.

Introdução

Ao longo do século XX e ainda neste XXI, práticas e procedimentos médico-hospitalares tornaram-se muito complexos, seja pelo conjunto de inovações tecnológicas, seja pela alteração do perfil epidemiológico das diferentes populações, em escala global. Em razão de profundas e extensas mudanças sociais, as escolas médicas se viram obrigadas a revisões e atualizações permanentes, devendo ampliar seu campo de atuação e, ao mesmo tempo, redefinir focos específicos, posto que a especialização se acabou tornando um dos grandes articuladores da produção escolar médica (SCHRAIBER, 1993). Por motivos dessa natureza, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) é hoje uma instituição capaz tanto de congregar as mudanças numa história de longa duração como de apontar rupturas de cunho tecnológico, político e cultural.

Nesse sentido, entre os departamentos, institutos e laboratórios criados nessa trajetória, a Faculdade de Medicina também instituiu um Museu Histórico que logrou trazer à memória médica paulista e brasileira uma narrativa muito particular, como também reunir um acervo importantíssimo para todo estudioso das diversas áreas de atuação da medicina. Para isso, o Museu teve de reunir instrumentos médicos, documentação institucional e científica e materiais de ordem artística, transformando-os em coleções, aqui entendidas como:

[...] artefato(s), pois resulta(m) de ação humana intencional, em que elementos materiais são removidos de seus contextos originais e reunidos em um conjunto artificial. Uma coleção museológica possuiria ainda, como particularidade, a inserção de tais elementos em um espaço institucionalizado, gerador de processos informacionais que lhe agregam novos valores e conferem novos papéis e funções provenientes de sua recontextualização (LOUREIRO; FURTADO; SILVA, 2007, p.3).

Isto posto, o objetivo deste artigo é apresentar o projeto de revitalização das atividades de pesquisa do Museu Histórico, iniciado em 2009, naquilo que oferece ao público interessado por seus fundos e coleções. Indo além, pretende apresentar alguns resultados das pesquisas atualmente empreendidas, bem como as suas interações com as exposições temáticas, temporárias e itinerantes promovidas pelo Museu Histórico desde então.

Sobre a criação do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP

Criado em 1977 como Museu Histórico da Faculdade de Medicina, passou a se chamar Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz em 1993, em homenagem a seu fundador e diretor vitalício até 2002, ano de falecimento desse médico e pesquisador da área de microbiologia e micologia médica.[1] Ao mesmo tempo em que se alinhou entre as primeiras experiências de museus dedicados integralmente à preservação da cultura material e imaterial do campo médico, a criação do Museu Histórico só pode ser corretamente compreendida se se puserem em relevo as relações vigentes no interior da Faculdade. Mais especificamente, nosso entendimento da trajetória do Museu aponta para um projeto que, originalmente, apoiou-se numa concepção da história como “sustentáculo de tradições” elaborada sem conjunturas específicas de afirmação política interna (HOBSBAWM; RANGER, 1993). Assim, sua criação procurou responder a necessidades de um grupo de professores que se defrontava com a progressiva perda de poder e hegemonia decorrente de uma transição geracional, mas também de um novo modelo de ensino superior instituído no país pela Reforma Universitária, conforme o Decreto Lein. 5.540, de 1968 (MOTA; MARINHO, 2008, p.123-144).

Exemplarmente, sua instalação culmina com o fim da gestão de Carlos Lacaz como Diretor da Faculdade de Medicina (1974-1978). Figura-chave no processo de afirmação de uma história “gloriosa” para a escola, Lacaz esteve alinhado interna e externamente aos grupos políticos que deram sustentação ao regime militar instalado em 1964. Secretário de Higiene e Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo em 1972, Lacaz contava entre seus interlocutores com algumas figuras de grande visibilidade no período, como o cel. Erasmo Dias e o então ministro da Justiça Alfredo Buzaid, entre outros (MAACK, 1991). Nesse sentido, o projeto museológico instituído se deu em bases privadas, com apoio da elite médica paulista e de parte significativa dos professores e alunos da própria Faculdade.[2] Dedicou-se, a partir de então, a reunir material que lograsse traduzir uma “história oficial” médica e institucional no melhor da tradição da chamada História da Medicina, ou seja, uma narrativa pautada no ordenamento de “fatos à luz de esquemas evolutivos que combinavam marcos cronológicos da história política e administrativa brasileira com marcha ascendente dos conhecimentos rumo a uma história científica, eficaz, por obra, quase sempre, de vultos de importância nacional e local”(BENCHIMOL, 2003, p. 108).

A organização do “Grande Salão” foi por muito tempo a expressão-síntese dessa narrativa a partir da qual se configurava o espaço. Tratava-se de uma concepção alicerçada em padrões museológicos, ainda relativos aos museus de História Natural do século XIX (SCHWARCZ, 1993), alicerçados na reunião e no acúmulo de objetos como expressão da riqueza do acervo, mesmo que sua disposição não propiciasse uma narrativa própria. O objetivo era inserir objetos no tempo e no espaço, mostrando seu surgimento, uso e aperfeiçoamento em função das configurações culturais da época, abrangendo os fundamentos da ciência médica, mas numa dimensão progressiva e linear (CAMPOS, 2014, p. 164).

Nesse sentido, os objetos deveriam ser compreendidos em conjunto: pinturas, desenhos, diplomas, bustos de bronze, condecorações, fotografias, esculturas e, finalmente, uma série de aparelhos usados no exercício médico nos séculos XIX e XX. Com o tempo, a riqueza dessa cultura material tornou-se inestimável, sendo cada vez mais procurada por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento e tornando-se, por isso, referência ao patrimônio de sua Faculdade de Medicina. Ao mesmo tempo, o Museu Histórico logrou reunir um vasto acervo documental, com prioridade aos primeiros tempos da institucionalização médica em São Paulo, variando os grupos e as especialidades segundo critérios exclusivos de seu diretor.

A morte de Carlos Lacaz em 2002 abriu um hiato nesse espaço de poder, levando a estrutura administrativa do Museu, até então diretamente subordinada à diretoria, para a Comissão de Cultura e Extensão (CCEx). Somava-se a isso o fato deque as condições de funcionamento do Museu tornaram-se objeto de uma ação movida pelo Ministério Público em razão de denúncias que teriam apontado o descaso com o patrimônio da instituição. Essas pendências só seriam solucionadas de fato em 2007, com a nova eleição da CCEx, quando se redefiniram papéis e cargos e se fez uma revisão conceitual e ampla reforma das instalações do Museu.

O acervo do Museu Histórico sob nova direção: exposições temáticas entre a história e a medicina

As bases constitutivas do Museu passaram a exigir que novas formas de organização do acervo viabilizassem estudos e pesquisas de cultura material e documental, no sentido de aproximá-lo mais da comunidade científica e expressar melhor suas inúmeras potencialidades como gerador de conhecimento histórico. Iniciado em 2007, o processo de revisão conceitual do Museu procurou se articular com essa conjuntura mais ampla da execução do projeto de restauro, cujas implicações certamente extrapolam muito a reforma física. Com as condições favorecidas pela renovação dos quadros de direção e do corpo de funcionários, tem sido possível propor a ampliação de sua concepção e dos marcos de atuação.

Entre as transformações em pelas quais o Museu foi submetido, passou a vigorar uma nova concepção de ciência entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, guarda e comunicação desses objetos e documentos:

[...] a partir dessa orientação, a identificação de diferentes atitudes (ausências, inclusões, exclusões, permanências) reconhecidas como representantes do dito e do não dito e que imprimem significados podem ser mais bem observadas no processo de construção do movimento museológico então sugerido. Essas dimensões são observadas sem se perder de vista que o observador traz em si outro contexto e outro tempo na produção de suas formas de interpretar e dizer (VALENTE, 2008, p. 13).

Acresce-se que há que se ter a perspectiva de um museu histórico, isto é, de uma instituição que precisa operar com problemas históricos relativos às dinâmicas da vida social. Para isso, deve servir-se dos objetos históricos e da noção de documento histórico, isto é:

[...] o que faz de um objeto documento não é, pois, uma carga latente, definida de informação que ele encerre, pronta para ser extraída, como o sumo de um limão. O documento não tem em si uma identidade própria, provisoriamente indisponível, até que o ósculo metodológico do historiador resgate a Bela Adormecida do sono programático. É, pois, uma questão de conhecimento que cria o sistema documental. O historiador não faz o documento falar: é o historiador que fala, e a explicitação de seus critérios e procedimentos é fundamental para definir o alcance de sua fala (MENESES, 2005, p.28).

Indo além, há que ser um museu histórico também no que concerne a suas exposições, ou seja, a uma interpretação crítica:

[...] “crítica” no sentido etimológico, que implica competência de distinguir, filtrar, separar, portanto, possibilidade de opção, escolha. Se o museu tem responsabilidades na transformação da sociedade (e a exposição, para tanto, é recurso fecundo), isso se fará não com procedimentos de exclusão elitista, ou catequese populista, mas na medida em que contribuir para capacitar nas escolhas todos aqueles a quem puder envolver. Se o museu se eximir da obrigação de aguçar a consciência crítica e de criar condições para seu exercício, estará apenas praticando uma forma mascarada de autoritarismo [...] (MENESES, 2005, p. 50).

Uma das prioridades captadas pelo Museu atualmente volta-se para a sua interação com o público, quer seja ele de pesquisa ou de visitação. Nesse sentido, busca-se ampliar os estudos do patrimônio cultural existente, no sentido de ser cada vez menos instrucionista e cada vez mais educativo. Isso quer dizer que a memorização que se buscava até então, ainda pouco afeita aos seus desígnios educativos, deve ser deslocada para uma vivência do próprio espaço e de sua materialidade cultural. Para isso uma série de atividades foi contemplada no sentido de ampliar e aprofundar esse contato, transformando a relação estabelecida com o seu público, trazendo em cada uma dessas atividades, novas configurações capazes de suprirem os objetivos do Museu enquanto uma instituição pública e de ensino. Isso porque, a cultura material resgatada pelo Museu deve vincular-se à capacidade de desenvolvimento de conhecimentos, mas também de crítica e “reinvenção” do próprio passado, o que só poderá acontecer por meio de um projeto museal voltado para tais objetivos. Nesse sentido, busca-se a compreensão da ação educativa e museológica como produtores de comunicação, o que equivale dizer da busca de interfaces das ações de pesquisa, preservação e comunicação. Desse modo considera-se que o processo museológico é um processo educativo e de comunicação, contribuindo para que cada cidadão possa ver a realidade e expressá-la, qualificando o patrimônio cultural existente como formador e produtor de conhecimento sobre o passado histórico.

Tendo isso em vista, o Museu Histórico “Prof. Carlos da Silva Lacaz” – FMUSP apresentou, desde a sua reinauguração até o presente momento, quatro exposições temáticas e temporárias sobre diferentes temas e períodos da história das práticas médicas e de Saúde no Brasil. A saber:

1 - Arnaldo Vieira de Carvalho e a Faculdade de Medicina: práticas médicas em São Paulo 1888/1938
  • Período de exposição: 18/12/2009 - 29/10/2010
  • Público total: 3622 pessoas
  • A exposição reinaugurou o espaço do Museu Histórico "Prof. Carlos da Silva Lacaz" com um duplo significado. De um lado, expressou a justa homenagem à figura do médico que dirigiu a escola entre 1913 e 1920. De outro, assinala as novas bases sobre as quais o Museu Histórico encontra-se reorganizado, em condições de renovar-se em exposições periódicas e oferecer também um vasto material de pesquisa histórica.

Na exposição, foi possível acompanhar aspectos da experiência pessoal, familiar, acadêmica e institucional de Arnaldo Vieira de Carvalho. A trajetória do médico se entrelaça à história da cidade de São Paulo. O processo tenso e contraditório de construção da metrópole conduziu também à constituição de uma infraestrutura de serviços voltados à Saúde, no plano da vacinação, da assistência hospitalar e ambulatorial e do ensino médico, arenas públicas nas quais Arnaldo atuou. Desse legado, resultou a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo como uma de suas obras mais expressivas.

2 - Arte e Medicina: interfaces de uma profissão
  • Período de exposição: 10/12/2010 - 17/05/2013
  • Público total: 8393 pessoas
  • A medicina como prática deixou-se capturar nessa exposição em seus significados mais profundos e diversos, de um lado, por suas interfaces com os diversos tipos de manifestação artística e, de outro, por uma narrativa que expõe a arte visando não apenas o gozo estético. A mostra pretendeu explorar tais manifestações que nos revelam sobre o espírito, os valores, os contextos, e as motivações de homens e mulheres de diversas épocas e variadas formas de envolvimento com a medicina, os médicos, as ciências e as artes de cuidar. Pelos núcleos expositores, "Imprensa médica", "Médicos artífices e artistas", "A arte vê a medicina" e "Mens sana in corpore sano", pôde-se observar esse entrelaçamento, essa capacidade de recompor o mundo a partir da ação criadora e, no caso dessa exposição, da tentativa de dirimir o sofrimento humano também.
3 - O Restauro, O Retrato: os Diretores da Faculdade de Medicina - 1912-2013
  • Período de exposição: 06/06/2013 - 29/08/2016
  • Público total: 8636 pessoas
  • A exposição apresentou o processo de restauro da coleção de retratos da FMUSP, composta por oitenta e quatro quadros que foram pintados por cerca de trinta artistas. Tal retratação honorífica é um convite aos seus expectadores para uma viagem, que se inicia na fixação de uma identidade social, expressas nos formatos e poses dos retratados com suas vestes talares na plena hierarquia de sua profissão.

Do restauro das imagens, nutre-se a concepção de preservação e guarda. Sem sua ação, o passado seria um depósito de velharias sem sentido e as imagens cairiam num repositório do esquecimento. Das identidades, foram dados aos retratados novo poder de leitura. Afinal, o médico e diretor será sempre investido pelo seu contexto, suas escolhas e aptidões, muitas delas margeadas por outros mundos, nem sempre atrelados ao conhecimento médico e sua prática.

Já o núcleo expositivo das “Especialidades” fez o caminho inverso e projetou esse profissional numa internalidade impressionante, encontrando-se dispersa entre conhecimentos e práticas, ou seja, tecnologias apreendidas durante sua formação e toda a sua vida no lidar com o sofrimento humano. Os “Núcleos de Acessibilidade” foram ampliados nessa exposição para democratizar a experiência e o conhecimento das pessoas com deficiência física e visual.

4 - A pele enferma: Augusto Esteves e seu museu de cera
  • Período de exposição: 15/12/2016 –atualmente segue em cartaz
  • Público total: 5700 pessoas (até 31/12/2018)
  • Nessa exposição o Museu Histórico "Prof. Carlos da Silva Lacaz" – FMUSP apresenta a trajetória de um artista plástico que teve, entre suas atividades, o diálogo com o mundo científico e o da medicina, fazendo ver, por meio de sua biografia, suas aquarelas e objetos de cera os interesses que embalavam cientistas e médicos entre os anos 1930 e 1950.

É dada, para essa tão particular experiência, atenção especial ao museu de ceroplastia voltado às doenças dermatológicas, buscando refletir não apenas aspectos clínicos das enfermidades, mas uma discussão ampliada sobre as representações e experiências pensadas por meio da pele de cada sujeito aqui representado em suas partes. Pele que confere ao homem seu lugar social e aponta, inclusive, para as assimetrias brasileiras refletidas nas doenças e suas formas de contagio.

Busca-se nessa exposição ir além. Falar da pele como órgão do corpo humano capaz de nos conectar com o mundo exterior e dele aprendermos mais sobre nossas capacidades de sentir, amar e mudar o mundo que nos cerca.

Além de subsidiar a curadoria das exposições apresentadas pelo Museu Histórico, o acervo da instituição é gerido também pelo inescapável e fundamental trabalho de conservação e restauro. As ações de preservação se dão pelas entrelinhas da pesquisa, das exposições e dos materiais educativos, determinantes de uma série de medidas que se devem tomar para receber novos itens e observar os cuidados técnicos de preservação e comunicação, acompanhando os regramentos de instituições museológicas e arquivísticas como o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) e o Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nesse sentido, o Museu Histórico tem hoje pleno controle das condições de seu acervo, monitorando permanentemente iluminação e ambientação, temperatura e umidade relativa, poeira e sujidades, higienização, guarda adequada do patrimônio, manuseio correto do acervo e desastres (incêndios ou inundações, por exemplo), estritamente de acordo com as normas das referidas entidades.

Finalmente, foram atribuídas atividades internas ao Museu Histórico da FMUSP no sentido de garantir que o acesso à pesquisa, a preservação e o estudo de seus objetos concorressem para integrar as atividades museológicas e, com isso, enriquecessem as atividades da própria curadoria. Dentre essas atividades, apresentamos alguns resultados atingidos pelo Museu Histórico no que tange ao tratamento do acervo e à sua aproximação com a pesquisa histórica desenvolvida por aqueles que acessam os fundos ecoleções sob a sua guarda.

Dados para a pesquisa, para a gestão, catalogação e divulgação do acervo, a partir do arquivo do Museu Histórico

Abrigando um acervo inestimável sobre a cultura material e imaterial da história da medicina brasileira, o Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP tem recebido centenas de pesquisadores interessados em seus arquivos para embasar estudos de diversas ordens. No entanto, a riqueza do conjunto documental sob sua posse não é em si capaz de atrair e a ampliar o interesse dos pesquisadores. Para isso, é preciso desenvolver uma série de medidas no sentido de democratizar o acesso e viabilizar o desenvolvimento das pesquisas com a maior eficiência possível. Conforme afirma Rodrigues (2004, p. 94):

O planejamento do trabalho a ser desenvolvido em uma instituição arquivística mostra-se recomendável com vistas à sua melhor administração. Traçar diretrizes políticas e definir o tipo de tratamento que será dado ao conjunto do seu acervo, dimensionando os recursos humanos e materiais e identificando os problemas, possibilitariam aos arquivos públicos criar meios de superar as dificuldades inerentes a uma instituição que, para cumprir o seu papel, extrapola a si mesma, envolvendo-se com a produção documental de todos os órgãos da esfera de poder à qual pertence.

Tendo isso em vista, a partir de novembro de 2009, em meio à implantação das novas diretrizes administrativas, arquivísticas e científicas que passaram a pautar seu funcionamento, o Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz – FMUSP implantou um sistema de registro de entrada dos pesquisadores que acessaram seu arquivo em busca de material e documentos para desenvolver seus estudos. Com base nisso, sabe-se que, ao final de 2018, o Museu recebeu seu 755º pesquisador, o que evidencia a importância da instituição na produção de novos estudos sobre a história da medicina e da saúde em São Paulo.

A análise dessas 755 fichas de registro nos forneceu subsídios para compreender melhor as demandas e o perfil dos pesquisadores que acessam os arquivos da instituição. O Gráfico 1 mostra fluxo anual de novos pesquisadores entre novembro de 2009 e dezembro de 2018:

Gráfico 1: Pesquisadores do Museu Histórico – FMUSP (2009-2018)

Pesquisadores do Museu Histórico – FMUSP (2009-2018)

Fonte: Museu Histórico da FMUSP

Já nos primeiros meses após a reinauguração do Museu, quando seu acervo foi novamente disponibilizado ao público, a procura dos pesquisadores foi intensa. Só nos dois últimos meses de 2009, 30 pessoas iniciaram suas pesquisas no Museu, e, ao longo de 2010, foram mais de 80 novos pesquisadores, o que evidencia a legitimação do Museu pela comunidade científica. Após uma queda na recepção de novos pesquisadores no ano de 2011, o Museu experimentou um leve crescimento em 2012 e um aumento significativo a partir de 2013. Em 2016 o Museu Histórico teve seus espaços expositivo e de pesquisa reformulados em decorrência do processo de montagem de uma nova exposição e, por isso, permaneceu inacessível aos pesquisadores por cerca de 5 meses. Passado esse processo, em 2017 e 2018 é possível notar a retomada da média de cerca de 100 pesquisadores/ano registrada nos períodos anteriores.

Em 2011, o Museu recebeu os primeiros pesquisadores vinculados a instituições estrangeiras, oriundos, sobretudo, de países da América do Sul, Estados Unidos e Europa central. Ao observar o gráfico abaixo podemos notar que em 2013 o número de pesquisadores estrangeiros teve um ligeiro crescimento, chegando a 24% do total de estudantes que acessaram o Museu no ano seguinte e alcançando o pico de 27% em 2018. Isso pode ser explicado pelas inúmeras iniciativas de internacionalização empreendidas pela FMUSP, que estabeleceu parcerias institucionais, ofertou cursos e programas de iniciação científica e de residência multiprofissional a alunos e professores de universidades sediadas em diferentes países. Vejamos:

Gráfico 2: Proporção de pesquisadores vinculados a instituições estrangeiras (2011-2018)

Proporção de pesquisadores vinculados a instituições estrangeiras (2011-2018)

Fonte: Museu Histórico da FMUSP

A respeito da finalidade dos estudos desenvolvidos no Museu, a maior parte dos pesquisadores que o procuram é vinculada a programas de graduação e pós-graduação em diferentes áreas do conhecimento. É expressivo também o número de pessoas que consultam os arquivos para produzir pesquisas autônomas (familiares, institucionais etc.) ou publicar artigos ou textos científicos. Além disso, o acervo do Museu Histórico também é consultado por pesquisadores vinculados a agências de fomento como a Fapesp e o CNPq, por exemplo:

Tabela 1 - Finalidade das pesquisas desenvolvidas no Museu

Finalidade das Pesquisas desenvolvidas no Museu
Pós-Gradação (Especialização, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado) 35%
Graduação 20%
Pesquisa Autônoma 17%
Publicação de Artigo ou Livro 12%
Pesquisas Vinculadas a Agências de Fomento 10%
Outros 6%

A análise das fichas de registro dos pesquisadores nos permitiu também definir prioridades na catalogação, descrição e divulgação do acervo no Guia on-line do Museu, lançado em novembro de 2013. Cabe ressaltar que esse guia está sendo produzido a partir do software de código aberto ICA-AtoM, que admite a inserção progressiva de novas informações, bem como o aprimoramento da descrição de fundos, coleções e itens (FACULDADE, 2009, p. 85). Assim, todas as descrições arquivísticas do acervo do Museu vêm sendo feitas em conformidade com as normas do Conselho Internacional de Arquivos (ICA) e com a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade):

Os arquivos, em sua fase permanente, só podem cumprir a função social de que se revestem quando acessíveis aos usuários. Nesse sentido, os instrumentos de pesquisa adquirem importância fundamental, uma vez que representam o conteúdo dos arquivos, permitindo ao consulente vislumbrar os limites daquilo que pode ser encontrado e selecionar de antemão os materiais que lhe parecem relevantes segundo os objetivos e os recortes de sua investigação (CAMPOS, 2014, p. 164).

Tendo isso em vista e objetivando definir os conjuntos documentais que devem ser descritos prioritariamente, com maior profundidade e disponibilizados ao público no Guia on-line, extraímos das fichas de registro preenchidas pelos pesquisadores dados sobre os documentos mais solicitados:

Tabela 2 - Nível de descrição dos documentos consultados

Nível de Descrição dos Documentos Consultados
Fundos Institucionais 40%
Fundos Pessoais 37%
Coleções de Imagens e Documentos 14%
Coleções de Livros Históricos e de Referência 9%

A partir dessas constatações, deu-se prioridade à descrição de todos os fundos pessoais e da maior parte dos fundos institucionais já catalogados. No Guia on-line, já estão disponíveis para consulta mais de 170 fundos com informações sobre conteúdo, doador(es), dimensão e suporte, data de nascimento e morte dos titulares, condições de acesso e palavras-chave que permitem cruzar informações entre os fundos descritos, ensejando o aprofundamento das pesquisas. Até agora, foram incluídas no Guia informações mais objetivas acerca das 650 coleções pertencentes ao Museu e a descrição mais detalhada de diversos itens tridimensionais como instrumentos médicos e peças de arte sacra, por exemplo. A catalogação da coleção de livros históricos está em andamento, e em breve estarão todos integralmente disponíveis no Guia do Museu Histórico. Campos, em sua análise sobre o processo de organização dos conjuntos documentais presentes nos diversos acervos pertencentes à Universidade de São Paulo, ao destacar o acervo do Museu Históricoda FMUSP, defendeu que:

Cumpre destacar que a quantidade de acervos cujo processo de organização se encontra em andamento não deve fazer supor que se trata de movimento em marcha na universidade como um todo. Dos 83 arquivos ou coleções enquadrados em tal condição, 72 compõem o acervo do Museu Histórico Professor Carlos da Silva Lacaz, da Faculdade de Medicina (CAMPOS, 2014, p. 146).

A partir deste processo foi possível notar uma mudança significativa no tipo de material solicitado pelos pesquisadores ao procurar a instituição. Desde a sua inauguração, em 1977, o Museu organizava seus conjuntos documentais em pastas suspensas, acessíveis apenas pelo título, atendendo à proposta memorialística que marcou a formação de um acervo em vista da preservação de uma narrativa histórica centrada em grandes “vultos da medicina”. Ao conhecer o arquivo da instituição e entrevistar o Prof. Carlos da Silva Lacaz, Adriana Mortara Almeida afirmou que foi possível:

[...] conhecer um pouco melhor o pensamento daquele que criou e organizou o Museu. Para ele, o Museu preserva e divulga a memória médica de São Paulo, cultura e memória médica brasileira e seus grandes vultos [...]. Não há preocupação com os eventos, fatos, invenções e descobertas em si, mas está centrado nos indivíduos, nomeados um a um (ALMEIDA, 2001, p. 73).

Nessa perspectiva, o título de cerca de 85% das pastas era formado pelo nome de um profissional da saúde, o que dificultava pesquisas por temas, especialidades ou instituições, por exemplo. Essa forma de organização não distinguia coleções e fundos, de modo que a organicidade dos documentos também era comprometida em alguns casos. Em contato com esse conjunto documental, o arquivista Carlos Henrique Menegozzo (2012, p. 93) constatou que:

O potencial de pesquisa ali contido é subutilizado em função do descontrole do vocabulário empregado nas categorias de classificação. Categorias duplicadas com variação de grafia, ausência de critério no relacionamento entre categorias mais gerais e mais específicas e ausência de normalização na representação de expressões compostas foram alguns dos problemas preliminarmente identificados – além da diluição de acervos orgânicos em seu interior – e que em muito prejudicam a consulta deste que é o acervo mais demandado entre os existentes na instituição.

Contudo, com o processo de reformulação e reestruturação empreendido desde 2009 e com ênfase no trabalho arquivístico que culminou no lançamento do Guia online, o Museu Histórico da FMUSP conseguiu reorganizar seu acervo de modo a permitir novas formas de busca. Desmembrou-se parte das antigas pastas, tomando como guia as fichas de doação dos documentos o que nos permitiu preservar a organicidade dos acervos na formação diversos fundos pessoais e coleções. Assim, foram criados também diversos fundos institucionais, especialmente sobre o Hospital das Clínicas e seus institutos, bem como sobre os diversos departamentos da Faculdade de Medicina e de outros estabelecimentos de saúde.

Finalmente, merecem atenção os suportes acessados pelos pesquisadores:

Gráfico 4: Suportes acessados pelos pesquisadores

Suportes acessados pelos pesquisadores

Fonte: Museu Histórico da FMUSP

Como se vê no Gráfico 4, os documentos textuais e as fotografias são os itens mais consultados, perfazendo 89% das solicitações feitas ao Museu. Esse dado é importante para a definição da política de catalogação e conservação do acervo, e, nesse sentido, as fotografias merecem atenção especial. Por ser um suporte bastante procurado e mais suscetível ao manuseio, o Museu vem gradativamente digitalizando suas fotografias, para preservá-las e ampliar o acesso e a divulgação desse acervo. Os itens textuais, por sua vez, vêm sendo catalogados de modo a ensejar uma busca mais precisa, sem se manusearem documentos desnecessariamente, o que concorre para sua preservação. Além disso, todos os pesquisadores são orientados quanto às formas de manipular os itens documentais e ao uso das fotografias produzidas a partir do acervo, visando igualmente a integridade do patrimônio do Museu.

Considerações finais

Finalmente, cabe dizer que, com o registro crescente de pesquisadores que consultam seus arquivos, o Museu Histórico da FMUSP tem procurado ampliar as ferramentas que franqueiem seu acervo a um público cada vez maior e com interesses mais diversificados. Assim, conhecer o perfil e as demandas de seus pesquisadores é uma necessidade constante para que as ações desenvolvidas democratizem cada vez mais o acesso a esse patrimônio e garantam a qualidade das inúmeras pesquisas realizadas na instituição a cada ano. Além disso o processo de tratamento, acondicionamento, restauro, descrição e disponibilização do acervo do Museu Histórico “Prof. Carlos da Silva Lacaz” – FMUSP também foi fundamental para curadoria das exposições apresentadas pela instituição desde a sua reinauguração. Exibindo mostras temáticas e temporárias, o Museu preza por expor ao público suas diferentes peças, documentos e registros de memória, contextualizando a sua produção com cada narrativa histórica proposta, consolidando-se como um dos principais centros de estudos sobre a história da Medicina e da Saúde no Brasil.

Notas
Fontes
Referências