EDITORIAL
Arquivos da saúde e a saúde dos Arquivos
As atividades voltadas para a promoção da saúde pública sintetizam várias determinações relacionadas à reprodução da vida humana na sociedade. Os documentos que registram essas atividades refletem múltiplos aspectos que os tornam ricos de informações e flagram a vida humana sob ótica privilegiada. Imagine-se a gama de informações contidas em prontuário médico; em relatórios de informações e pesquisas epidemiológicas; em registros de estudos de desenvolvimento de uma vacina; em declarações de óbito e de nascidos vivos; em notificações de doenças contagiosas, ou em relatórios técnicos administrativos. Sob quaisquer perspectivas, a documentação produzida na área da saúde é primorosa, tanto sob a ótica dos estudos da história das práticas médicas e da história da ciência, quanto sob a perspectiva da história sociocultural. A documentação da saúde pública é particularmente atraente e reveladora de práticas sociais que extrapolam sobejamente o binômio doença/cura da população, como muito bem ilustram os artigos publicados nesta edição.
Epidemiologia e informação
Podemos supor que a produção e monitoramento de abrangentes e densas informações sobre o perfil epidemiológico de uma população se constituem em atividades indispensáveis para a promoção de políticas públicas de saúde. Dizem os epidemiologistas que cada sociedade tem suas formas específicas de adoecimento e de morte. Como nasce, respira e morre a população? Como medir a saúde de multidões que circulam em emaranhados de avenidas e padecem em tantos leitos espalhados nos hospitais das cidades? Que doenças as afetam e com que intensidade e periodicidade e espaços elas incidem nessa população? Quantos morrem em decorrência de acidentes e atos de violência? O que dizem os prontuários sobre acompanhamento, evolução e tratamento de pacientes e sobre os fármacos utilizados?
O acúmulo técnico-científico associado às sofisticadas tecnologias da informação é potencialmente capaz de processar gigantescas quantidades de dados a serem transformados em informações, sob o viés epidemiológico. Ocorre que a fidedignidade dos dados está relacionada a outros fatores, pois, na ponta da produção de informações, há uma região inalcançável pelo mecanismo tecnológico que depende da política, do planejamento, da decisão pelo investimento, da organização e da mobilização de exércitos de funcionários, habilitados ou não, trabalhando diária e cotidianamente em atividades repetitivas a produzir documentos e a alimentar bancos de dados.
Essa obra grandiosa e diuturna cabe aos serviços médicos e administrativos, aos centros de coleta de dados, de pesquisa e de análise, com os seus técnicos a utilizarem sistemas de informação. Entretanto, os mais elaborados sistemas dependem de informações que são produzidas diariamente em todos os equipamentos de saúde, informações estas que se consubstanciam nos nossos conhecidos documentos de arquivo.
Dito isto, documentos mal produzidos ou mal conservados, ou não preservados, ou ainda, não organizados impedirão a produção de eficientes mapas de informações epidemiológicas. Esse exemplo é válido e extensivo a todas as áreas da gestão do conhecimento.
Isso explica o esforço de instituições de informações epidemiológicas em atuar fortemente no chão das instâncias de assistência à saúde. Há manuais muito elaborados que visam ao aprimoramento de dados e informações a serem inseridos nos documentos de arquivo por médicos, enfermeiros e toda gama de profissionais que atuam nos serviços de saúde. Para fins de exemplo, e se tiverem a curiosidade, acessem alguns desses guias de orientações, como aqueles elaborados para preenchimento da declaração de nascidos vivos, com versão, inclusive, para filhos de mães imigrantes e refugiadas[1].
Estratégico, mas nos porões
Precisamos de justificativa mais cabal sobre a importância estratégica dos documentos e dos arquivos para a produção de informações qualificadas para o bem da comunidade? Ocorre que informação qualificada não é tudo e, em geral, ela se subordina aos interesses políticos e de classes daqueles que gerenciam essas informações e são responsáveis diretos pela gestão da coisa pública. Se informação fidedigna fossem o bastante para se produzir políticas de saúde eficientes, não viveríamos esse caos na saúde brasileira e em vias de destruição do que nos resta.
Isso ajuda a explicar, em parte, o paradoxo dessa instituição estratégica – o arquivo –mas, em geral, mantida no obscurantismo dos porões. O que forja a resiliência daqueles que atuam na área é a certeza de que os arquivos, com todo seu desprestígio, nunca morrem, pois, se isto acontecer é porque a própria “civilização” foi junto.
Arquivos não morrem, agonizam
Não obstante, os arquivos aparentam não extrapolar o seu estágio de agonia, e faz-nos lembrar a genial paródia do escritor português, José Saramago, nas suas Intermitências da morte. “De repente, a morte suspendeu suas atividades no país”. Aqueles que estavam a um suspiro para o seu desfecho, foram impedidos de "passar desta para melhor" e permaneceram condenados à agonia eterna. O que parecia ser a realização do pueril sonho humano de eternidade revelou-se como a maior das tragédias. Com a greve da morte que se recusou a usar a sua foice para ceifar as vidas, como sempre o fez desde a eternidade, o sistema de saúde e todas as funções sociais da cidade fantástica de Saramago entraram em colapso. Inclusive, a idéia de ressurreição e correlatas funções eclesiásticas perderam sentido.
Informação aprisionada e rebaixada
O status dos arquivos brasileiros na administração pública é muito flutuante; alguns aparentam “saúde” muito frágil, resultante da cegueira de seus gestores que parece não se importarem com os processos de asfixia administrativa a que são submetidos. Os exemplos estão a mostrar que ao nosso século XXI não caberá a alcunha, por historiadores do futuro (sempre prontos a produzirem suas periodizações), de “era de informação”. Neste mês de lançamento desta edição, o absurdo silenciamento, seguido de seqüestro de Julian Assange, perpetrados por agentes de múltiplos estados nacionais, um dos maiores ícones da democratização da informação, na perspectiva da chamada sociedade civil, é apenas um exemplo.
Outro caso é o do Arquivo Público Mineiro que está a pedir socorro diante do projeto de lei nº 367/2019 que o rebaixará à condição de “diretoria”, perdendo a autoridade para atuar na garantia do cumprimento das competências vitais para a boa administração pública[2].
Ainda neste mês, mais um patrimônio da humanidade – a Catedral de Notre Dame - ardeu, somando-se a uma crescente lista de tragédias com o patrimônio, na sequência do nosso Museu Nacional. Confiram no comentário do jornalista Pepe Escobar, escrito ainda no calor das chamas[3].
O grito e a dor também são sintomas de vida.
Abril de 2019.
Marcelo Antônio Chaves
O leitor da edição nº 7, publicada em outubro passado, seguramente percebeu a evolução deste periódico semestral, principalmente no seu aspecto gráfico, em sua versão em formato pdf. A revista chega a sua oitava edição a demonstrar a constante busca pelo aprimoramento.
O tema do nosso dossiê instigou à reflexão sobre amplo espectro de exploração do tema Arquivos de instituições médicas e de saúde, seja no aspecto que envolve a gestão de documentos nessa área, seja no aspecto dos arquivos preservados e capazes de revelar informações originais sobre história da saúde.
Muitas das abordagens sugeridas na chamada de artigos não foram contempladas, mas os editores estão satisfeitos com o bom nível dos artigos aprovados, em número de oito, subscritos por doze autores, confirmando o enorme potencial de pesquisa e de produção de conhecimentos oferecido pelos arquivos.
Dossiê temático
O dossiê temático é introduzido com texto Medicina, Saúde Pública e Arquivo: entre os espaços de memória e de história do nosso ilustre colaborador e co-organizador da seção Artigos, André Mota, em bela reflexão sobre o inesgotável debate em torno do binômio história/memória.
Em entrevista, os coordenadores da Comissão de Avaliação de Documentos e Acesso da Secretaria Estadual da Saúde, Sandra Gonik e Fernando Meyer nos dão um panorama dos arquivos de instituições de Saúde do estado, a partir de sua atuação cotidiana junto aos órgãos vinculados àquela Secretaria.
O Dossiê se completa com oito trabalhos acadêmicos.
O artigo de Eduardo Vergara e Enrique Perdiguero Gil, Enfermedad y muerte em La España Moderna: el valor de los archivos locales, cumpre, com consistência e objetividade, o que o título propõe. Texto finamente escrito, revela variadas tipologias documentais de arquivos locais que proporcionam ricas e inusitadas informações sobre saúde e práticas médicas em remoto período da história europeia.
Em perspectiva similar, Jean Luiz Neves Abreu revela o potencial de pesquisa sobre aspectos da história da saúde pública em Minas Gerais, entre fins do século XIX e início do século XX, a partir de documentos pertencentes a Fundos documentais do Arquivo Público Mineiro. Especificamente, fornece subsídios para a compreensão da delimitação dos ofícios de cura e de como funcionava a fiscalização por parte das autoridades sanitárias.
O Arquivo da Santa Casa de Misericórdia como Fonte para a Construção da História dos Hospitais da Paraíba é o título do artigo assinado por Marta de Oliveira Araújo e Josemar Henrique de Melo. O “percurso histórico orgânico-administrativo da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba (SCM-PB)”, foi (re) constituído a partir de documentação administrativa e tipologias documentais hospitalares, principalmente dos Relatórios dos Provedores.
O artigo assinado por André Mota, Gustavo Tarelow e Clebison do Nascimento, intitulado Pesquisa histórica e produção de conhecimento: as experiências e a conformação do Arquivo do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo traça histórico de formação do Museu da FMUSP demonstram como um museu potencializa o seu usufruto e amplia seu público explorando a organização e disponibilização do seu arquivo. Ótimo exemplo de integração sinérgica das linguagens arquivística e museológica.
O Instituto Oscar Freire apresenta característica multifacetada de um Centro de Documentação e/ou de Memória. João Denardi Machado no seu O acervo histórico do Instituto Oscar Freire: coleções e documentos da medicina legal paulista, apresenta coleções que serviam de roteiros e narrativas didáticas, aplicadas ao ensino de diferentes disciplinas da medicina legal – da criminologia à infortunística. Entre os documentos, destacam-se os laudos periciais, articulados com as esculturas de cera com as quais se almejava “transmitir aos alunos as técnicas que orientavam o olhar do perito diante de seu objeto científico, mas também enfatizar que esse olhar precisava expor-se como arte e ofício”.
Como os registros hospitalares podem auxiliar no estudo da morbimortalidade de populações passadas, agregando informações disponibilizadas pelos censos e outros estudos da demografia histórica? Essa resposta o leitor poderá checar no artigo assinado por Matheus Alves Albino que pesquisou diversos tipos documentais, tais como registros hospitalares de óbito, livros diários, matrículas de pacientes e fórmulas de remédios utilizados pela Santa Casa de Misericórdia e por um hospital de isolamento de Campinas, o Lazareto do Fundão”. O título do artigo é Mortalidade e saúde a partir dos registros hospitalares: Santas Casas de Misericórdia e hospitais de isolamento, 1875-1900.
História, saúde e infância: contribuições do acervo da Cruzada Pró-Infância na década de 1930, assinado por Beatriz Lopes Porto Verzolla, nos apresenta tema importante em torno da educação em saúde nos anos de 1930-1940, em que a Cruzada Pró-Infância assume papel capital nesse processo. Da educação sanitária aos temas que envolveriam a eugenia e a hereditariedade, ficamos sabendo das preocupações da entidade em formar mães e crianças no sentido de formatar uma prole de estatura desejada, segundo as indicações médicas e do bem viver moral e espiritual.
A Revista fecha em grande estilo a seção dos artigos com o conciso trabalho de Daniela Uga em seu Arquivos do Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo: história e possibilidades. Uga traz à luz documentos do Arquivo do Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo (MJESP), recolhidos pelo Arquivo Público do Estado, por iniciativa particular de um pequeno grupo de funcionários daquela instituição. Após breve contextualização, a autora problematiza “as condições que corroboraram para a emergência do MJES”, bem como apresenta o acervo documental resultante das práticas de cuidado, empreendidas entre os anos de 1898 e 1952 de seu funcionamento”.
Intérpretes do acervo
A partir desta edição, a seção Intérpretes de Acervo apresenta novo formato, com objetivo de ampliar a divulgação de pesquisas em arquivos. São apresentados depoimentos de três pesquisadores, com texto narrativo mais simplificado.
Os experientes e veteranos pesquisadores Fernando Gallupo e Rodnei da Cruz e a recém-pesquisadora dos arquivos, Débora do Nascimento, formam boa amostra do arco inesgotável de temas pesquisados em arquivos. Em foco, as especialidades do esporte, da genealogia e da história social.
Vitrine
Elusa Leal, Cristiane d’Avila, Noemi Telles e Teresa Oliveira nos brindam com crônicas para refletir, sentir e se emocionar. Experimentem!
Arquivo em Imagens
A USP antes da USP. Simplesmente imperdível! Apresentamos aos leitores imagens expressivas da Universidade de São Paulo (USP) da década de 1910. Não se trata de erro, sabemos que a nossa conhecida USP nasce em 1934. Então, confiram e não deixe a dúvida permanecer.
BOA LEITURA!
Notas
- [1] Para acessar esse e outros modelos no sítio da Coordenadoria de Epidemiologia e Informações (CEInfo), da Prefeitura de São Paulo: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/arquivos/sinasc/Manual_Orientacoes_DN_Imigrantes_Refugiados.pdf
- [2]Ver nota da ANPUH: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/5142-campanha-em-defesa-do-arquivo-publico-mineiro-abaixo-assinado
- https://www.brasil247.com/pt/colunistas/pepeescobar/390395/Bamiyan-Babil%C3%B4nia-Palmyra-Notre-Dame.htm