Artigo
Mortalidade e saúde a partir dos registros hospitalares: Santas Casas de Misericórdia e hospitais de isolamento, 1875-1900
Matheus Alves Albino[*]

Resumo:

Neste artigo, busca-se recuperar as principais fontes utilizadas para o estudo da saúde e da morbimortalidade das populações do passado sob a perspectiva da produção da demografia histórica brasileira. Argumenta-se em favor de uma maior exploração do imenso potencial revelado pelos registros paroquiais e civis, bem como são mostradas potencialidades e limitações de uma série de registros hospitalares encontrados para a cidade de Campinas-SP no último quartel do século XIX. Nossa análise documental compreende registros hospitalares de óbito, livros diários, matrículas de pacientes e fórmulas de remédios utilizados pela Santa Casa de Misericórdia e por um hospital de isolamento de Campinas, o Lazareto do Fundão. Essas fontes, ainda pouco trabalhadas, podem revelar alguns elementos para o estudo da morbimortalidade no Brasil e outros países do antigo império colonial português, a partir dos registros deixados por instituições como as Santas Casas de Misericórdia.

Palavras-chave: Registros hospitalares. Demografia histórica. História da saúde. Campinas. Século XIX.

Mortality and health using hospital records: Santa Casa de Misericórdia and isolation hospitals, 1875-1900

Abstract:

In this article, we review the main sources for the study of inequalities in health, morbility and mortality of the populations in the past from a perspective of Brazilian Historical Demography. We argue in favor of further exploration of the immense potential revealed by hospital records in Campinas, Brazil at the second half of nineteenth century. The documentation involves hospital and death records, daybooks and formularies of medicine used by Santa Casa de Misericórdia and Lazareto do Fundão. These documents left by institutions such as the Santas Casas de Misericórdia may reveal new elements for the study of morbimortality in Brazil and other countries of the former Portuguese Colonial Empire.

Keywords: Hospital records. Historical demography. History of health. Campinas. 19th century.

Introdução

O objetivo deste artigo é arrolar as principais fontes sobre mortalidade e saúde utilizadas pela Demografia Histórica e apresentar o uso de fontes alternativas como registros hospitalares para o estudo da morbimortalidade nas populações do passado, tomando como ponto de partida algumas fontes encontradas para a cidade de Campinas, que, em meio a um momento de crescimento econômico e populacional nas décadas finais do século XIX, enfrentou uma série de epidemias de doenças infectocontagiosas como a febre amarela, cujos efeitos e desdobramentos hoje são amplamente documentados.[2]

Antes de argumentar em favor de novas fontes complementares, é imperioso destacar as contribuições da Demografia Histórica ao encarar criticamente aquelas tradicionais, apontando as principais limitações e potencialidades de um conjunto variado de documentos. A depender do recorte temporal, determinadas informações se tornam mais abundantes ou mais rarefeitas, exigindo criatividade do pesquisador que se proponha a montar um quadro completo da mortalidade. Após um grande esforço de sistematização e pesquisa extensa em arquivos, Maria Luiza Marcílio (2000, p. 32) propôs uma periodização das fontes demográficas brasileiras com base na qualidade das informações e a sua disponibilidade.

Um primeiro momento corresponde ao início da colonização até a primeira metade do século XVIII e se refere às primeiras contagens da população brasileira. Por um lado, esse período é caracterizado por uma escassez de registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos. Por outro lado, existe um importante conjunto de fontes com informações demográficas da população colonial; listas nominativas de habitantes (maços de população), amplamente disponíveis para a capitania de São Paulo, e de tabelas gerais de contagem da população, os mapas de população para várias capitanias. Um balanço detalhado do potencial e da qualidade da informação nessas fontes pode ser encontrado, por exemplo, nos trabalhos de Carlos Bacellar (2008) para São Paulo e de Dario Scott (2017) que trabalhou com os mapas de população do Rio Grande de São Pedro.

Um segundo momento das informações corresponde à segunda metade do século XVIII até o Recenseamento de 1872 e é caracterizado pela existência de algumas estatísticas demográficas, ricas e em abundância para determinadas regiões e localidades. Como observa Nadalin (2004), com isso é possível reconstituir a população fazendo análises mais aprofundadas para se chegar a determinada dinâmica, estruturas e tendências demográficas locais. Nesse período, um número mais extenso de registros paroquiais e listas nominativas de habitantes permite o estudo da mortalidade para algumas localidades, elaborando indicadores e identificando períodos de crise.

Os registros paroquiais eram elaborados pela Igreja Católica e constituem-se como o corpus documental mais importante para o conhecimento de um período anterior ao Registro Civil. Segundo Bassanezi (2012, p. 142), em teoria, toda a informação dos batismos, casamentos e óbitos pode ser recuperada a partir deles, de modo que é considerada uma fonte “democrática”. Esses registros permitiriam não somente desvendar o passado sob uma perspectiva demográfica, como dar subsídios para investigações socioculturais. Num país de tradição cristã como o Brasil, parcela considerável dos documentos apresenta uma riqueza em detalhes e informações nominativas, sendo possível que tenham uma boa cobertura (isto é, que não sofram significativamente com a perda de qualidade da informação por sub-registro). No entanto, os estudiosos observaram que os óbitos são o conjunto de dados mais simples e com normas menos rigorosas; atestam geralmente a data de falecimento, o nome do morto e o seu estado civil. Muitas paróquias assinalavam a naturalidade e a nacionalidade, a idade, a ocupação e a causa de morte (BASSANEZI, 2012, p. 154).

Evidentemente a abrangência e detalhamento dos óbitos dependiam do zelo do vigário e estavam sujeitos a maior sub-registro do que os registros de casamentos e batismos. Outro problema envolvido nessas informações é o de que as causas de morte apresentam termos imprecisos e de difícil classificação, fazendo com que o pesquisador tenha que recorrer a teses, dicionários de medicina tradicional da época e a especialistas em epidemiologia (BASSANEZI, 2012, p. 154). A partir do Censo de 1872, inaugura-se uma nova fase para as fontes demográficas brasileiras segundo a periodização de Marcílio: a “era estatística brasileira”, quando os levantamentos censitários passaram a ser realizados periódica e sistematicamente por órgãos do governo para fins demográficos. O Registro Civil nasce da intenção de uma maior organização das estatísticas populacionais pelo Estado e realizar recenseamentos decenais com quadros anuais de nascimentos, casamentos e óbitos. A criação da Diretoria Geral de Estatística do Império em 1870 significou um esforço nesse sentido.

Tanto o registro paroquial quanto o civil trazem algumas limitações. A primeira delas se refere aos desdobramentos territoriais das paróquias e dos municípios ao longo do tempo, que devem ser considerados. Outra limitação a ser considerada é o sub-registro, que ocorre por vários motivos como perda dos livros de óbito, problemas de cobertura em regiões mais afastadas ou embaraços dos párocos na consolidação do registro civil, por exemplo. Moraes (2014), estudando a mortalidade em Campinas nas últimas décadas do século XIX com atenção especial aos imigrantes, destaca que outros problemas como o aportuguesamento dos nomes estrangeiros e irregularidade nos sobrenomes obstaculizam o cruzamento nominativo. O pesquisador também encara uma série de informações de causa mortis e profissões que necessitam de uma sistematização ou adoção de uma classificação para facilitar uma análise agregada. Os problemas de exagero de idade ao óbito e atração por dígitos também estão presentes e merecem cuidado especial. Dessa forma, qualquer informação de idade deve ser entendida como uma idade presumida ou aproximada.

Os eventos vitais ainda foram relativamente pouco explorados pelos estudiosos sob a ótica da demografia. Recapitulando os quarenta anos de produção da demografia histórica brasileira, Bacellar, Ana Silvia Volpi Scott e Bassanezi (2005) apontam para carências de análises das componentes demográficas. Os autores argumentam que, como consequência de uma predominância de pesquisadores com formação em história, a produção se consolidou mais como “história da população” do que como “demografia histórica”[3] . Aliás, a contribuição da Demografia Histórica brasileira aparece de forma ainda mais evidente quando tratamos de estudos sobre escravidão no Brasil, sobretudo na descoberta de novas fontes. A historiadora Hebe Mattos (2008) evidencia que em especial para o período, a pesquisa historiográfica se enveredou por dois caminhos ou territórios distintos.

O primeiro caminho, iniciado com as pesquisas de Maria Yedda Linhares e Alice Canabrava, revelou a diversidade da sociedade escravista com novas fontes, dando atenção ao estudo da estrutura de posse de escravos sob uma perspectiva econômica. Essa linha de pesquisa desembocou no campo da história demográfica e da família. O uso de registros de batismo, casamento e óbito de escravos ampliaram o conhecimento sobre as questões clássicas de demografia histórica, como família e composição das escravarias (MATTOS, 2008, p. 53). Um segundo território delimitado por Mattos se consolidou pelos estudos que cunharam a ideia de atividade autônoma (agenciamento) dos cativos na sociedade escravista estudando, por exemplo, alforrias, ações de liberdade, processo de tutela e processos-crime. Nesse sentido, destacaram-se as contribuições da História Social e Cultural para o estudo da escravidão.

Retomamos a crítica de Bacellar, Ana Silvia Scott e Bassanezi (2005, p. 344), quando apontam que mesmo os trabalhos que se valeram das fontes e métodos da demografia histórica, estavam interessados em responder questões postas pela História, de forma que o seu escopo se aproximava mais da história da população do que da demografia no seu sentido mais estrito. Ainda pouco se conhece acerca da mortalidade e da mobilidade interna. Além disso, o recorte temporal para além da primeira metade do século XIX até início do XX restringiu-se aos estudos sobre a migração internacional e a população escrava (BACELLAR; SCOTT, A. S. V.; BASSANEZI, 2005, p. 345). Como consequência, ao ir além da periodização estabelecida por Marcílio e avançar para o início da chamada “era estatística”, entramos em um território pouco explorado que apresenta uma massa documental considerável a ser utilizada para compreender o comportamento das variáveis demográficas. No silêncio das fontes já consagradas, a criatividade é o limite para utilização de documentos que não foram pensadas com intuito demográfico, mas que revelem novos elementos sobre variáveis como a mortalidade e o processo saúde-doença associado a ela, em que o óbito é somente um dos possíveis desfechos.

Revelando a morte a partir das fontes

Os documentos hospitalares como livros de óbitos, diários de entrada, relatórios médicos e fórmulas para remédios constituem-se em importante fonte que, quando combinadas às informações censitárias e dos registros vitais, ajudam a reconstituir uma imagem coerente da morbimortalidade nas populações do passado. No último quartel do século XIX, a cidade de Campinas contou com pelo menos seis hospitais e ambientes de isolamento dedicados à população nacional e estrangeira: Asilo de Morféticos (1863), Hospital de Variolosos (1874), Santa Casa de Misericórdia (1876), Sociedade Portuguesa de Beneficência (1879), Circolo Italiano Uniti (1881) e Lazareto do Fundão (1890?). Valendo-se da documentação do hospital da Santa Casa de Misericórdia, podemos demonstrar algumas limitações e potencialidades dessas fontes.

Os arquivos da Santa Casa de Misericórdia de Campinas – pertencentes ao fundo da Irmandade sob a guarda do Centro de Memória da Unicamp (CMU) – são compostos por 504 livros organizados em séries ao longo de 110 anos (1876-1986), com documentos correspondentes às atividades administrativas como livros diários, movimentos financeiros e relatórios dos provedores da Irmandade; e atividades-fim do hospital, bem como livros de matrículas de enfermos, altas, internações, prescrições médicas, entorpecentes administrados, entre outros. A criação do fundo se deu a partir da celebração de um convênio entre o CMU e a Provedoria da Irmandade de Misericórdia em 1988, quando a Santa Casa entregou seu arquivo histórico aos cuidados da Unicamp.

Segundo o professor José Roberto do Amaral Lapa, essa documentação revela os sofrimentos, as doenças e desarranjos na vida de um segmento específico da população campineira: os pobres apartados do convívio social para serem recuperados. São legiões de trabalhadores livres, escravos, mendigos, indigentes, loucos, prostituas e até bandidos (LAPA, 1996, p. 221).

Livros hospitalares de óbito

Uma possibilidade analítica imediata dos livros de óbito é a comparação com os eventos vitais, na busca de inconsistências, semelhanças e diferenças. Geralmente, os livros de óbito dos hospitais possuem informações semelhantes ao dos registros civil e paroquiais, sendo esperado que exista a possibilidade de cruzamentos nominativos entre essas fontes.

Trata-se de uma documentação seriada com o nome do paciente, idade, nacionalidade e naturalidade, estado conjugal, datas de entrada no hospital e do falecimento, acompanhada de informações sobre as moléstias com as quais o paciente ingressou no hospital e causas do falecimento. Uma série de expressões para o mesmo caso e rasuras podem relevar possíveis erros de diagnóstico, a evolução de uma doença até a morte do paciente, ou ainda, um contágio ocorrido no ambiente hospitalar.

A grande dificuldade em lidar com essa fonte é compartilhada com os problemas dos registros civis e paroquiais: a idade do paciente é presumida e as expressões que se referem às moléstias dependem do zelo e da precisão do responsável, e muitas vezes apresentam somente sintomas. No caso dos livros da Santa Casa de Misericórdia, as informações são disponíveis desde 1876, data de sua fundação. No entanto, a causa mortis é praticamente completa para o período entre 1876–1900 com alguns pequenos intervalos, não apresentando lacunas significativas de informação.

Livros diários e matrículas de enfermos

Os livros diários de entrada, por exemplo, podem ser úteis para completar lacunas sobre a prevalência de doenças específicas na população, dados que revelam não somente os óbitos, como os casos não fatais. Ainda que essa documentação tenha escopo limitado e as suas conclusões não valham necessariamente para a generalidade dos casos, ela pode revelar resultados plausíveis para um determinado subgrupo da população, cujas informações são supostamente confiáveis.

A partir dos livros diários, é possível ter uma noção acurada do fluxo de pessoas atendidas pelos hospitais. Com essa informação, é possível, por exemplo, verificar se o atendimento ou o número de leitos se ampliou num cenário de crescimento populacional, apresentando consequentemente uma ampliação dos serviços a partir de uma demanda pressionada pela demografia. Em geral, esses livros apresentam informações como nome do paciente, idade, estado civil, nacionalidade ou naturalidade, a data de entrada, saída e destinação. Uma ampla bibliografia fez uso das suas informações para extrair tendências para a mortalidade de uma região, contrastando os resultados com os dados censitários do passado e registros de óbito de alguma localidade.

O trabalho de Steven Cherry (1980), por exemplo, discute a influências dos hospitais e do conhecimento médico nas taxas de mortalidade de províncias inglesas ao longo do século XVIII até o início do século XIX. Este artigo utiliza como fonte uma série de registros de entrada de pacientes em hospitais voluntários. O autor analisa desde as taxas de mortalidade hospitalar calculadas a partir dos registros até as causas de morte que também constam dessa documentação. O autor conclui que as condições sanitárias e a disposição de médicos nos hospitais, em geral, eram boas e favoreciam uma redução de mortalidade ao longo do tempo. No entanto, à medida em que a população cresceu e demandou mais recursos desses hospitais ao longo do século XIX num período posterior da análise, a superlotação provocou uma maior entrada de casos graves, de forma que as condições para essa mortalidade reduzida tenderam a se deteriorar.

Jacalyn Duffin (1997) sugere a combinação de duas fontes para produzir estimativas mais confiáveis e plausíveis para os padrões de mortalidade – Censos e livros de entrada de pacientes. Utilizando os recenseamentos do Canadá produzidos decenalmente desde 1851, a autora conclui que dadas as limitações intrínsecas do levantamento censitário e dos problemas nos dados, uma fonte isoladamente não produz estimativas confiáveis de mortalidade geral e por causas. Dessa forma, a autora compara o Censo com uma série de 40 anos de matrículas de pacientes do médico James Langstaff, de 1849 a 1889. Esses registros foram capazes de revelar uma subestimação da mortalidade infantil no Censo, além de identificar uma sazonalidade das mortes ao longo do ano, informação que não poderia ser extraída dos censos. Além disso, Duffin (1997) discute discrepâncias nas mortes por tuberculose, complicações no parto e mortalidade materna entre as duas fontes.

Fica claro nesses trabalhos que uma das potencialidades das fontes hospitalares é o número reduzido de causas desconhecidas, tanto devido a uma nomenclatura de causa mortis mais facilmente identificável, talvez mais “científica”, quanto a um maior interesse dos médicos em tornar essas informações precisas. Para Campinas no século XIX, encontramos duas fontes de acesso público particularmente ricas: os registros de enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Campinas para um período de 25 anos (1875–1900) e do Lazareto do Fundão (um hospital de isolamento principalmente para casos de febre amarela) para apenas dois anos (1890–1892). Essa última série documental está sob a guarda do Arquivo Municipal de Campinas e está disponível em versão digitalizada na base de dados de acervos arquivísticos públicos de Campinas (Arq-Camp).

Aliás, as Santas Casas de Misericórdia guardam documentação riquíssima sobre doenças, mortes e sepultamentos, nos casos em que fossem também responsáveis por cemitérios, como no Rio de Janeiro. As documentações são relativamente padronizadas e esses estabelecimentos encontram-se espalhados por todo o antigo império colonial português[4] . Schwartz (2001, p. 43), que faz uma análise da historiografia sobre a escravidão desde o período anterior ao centenário da abolição até os trabalhos subsequentes, observa que alguns historiadores como Russell-Wood (1981) se dedicaram a trazer a documentação de instituições religiosas e leigas como a Santa Casa de Misericórdia para revelar a vida e a cultura escrava. Com alguma precisão, é possível estudar a mortalidade escrava a partir dessa fonte.[5]

Alguns trabalhos sobre a escravidão no Brasil, como Slenes (1976) e Luna e Klein (2010) também utilizaram fontes que remetem aos hospitais. Enquanto Slenes (1976) utilizou relatos de administradores de algumas fazendas de Campinas para encontrar os gastos com médicos e enfermarias bem equipadas para escravos, Luna e Klein (2010) utilizaram diretamente registros hospitalares de Santo Amaro na Bahia do início do século XX para identificar ex-escravos que residiam no mesmo lugar onde haviam trabalhado como escravos. As possibilidades de estudo são as mais variadas. Para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, as informações disponíveis nos livros de doentes são bastante completas. Trazem o nome do paciente, idade, estado conjugal, nacionalidade, ocupação, naturalidade, local de residência, data de entrada e saída, destinação final (entre morte, cura e melhora), doenças/causa mortis e um campo de informação do indivíduo responsável pelo enfermo, no caso de crianças, estrangeiros, soldados, criminosos enviados pela polícia, indigentes, entre outros.

Enquanto as informações de sexo, idade, nacionalidade e estado conjugal nos permitem identificar se há seletividade na mortalidade hospitalar em comparação com os óbitos totais da cidade, a informação de entrada e saída nos dá ideia de fluxo e de tempo de tratamento de cada enfermidade em nível individual. O campo remetente traz indícios sobre a classe social do enfermo: os pobres eram atendidos gratuitamente e pensionistas pagavam uma diária. Além disso, a Santa Casa atendia soldados e os escravos tinham as suas diárias pagas pelos seus responsáveis. Com essa informação, é possível fazer o cruzamento nominativo dos principais proprietários de escravos que remetiam enfermos para o Hospital. A informação sobre doenças/causa mortis e de ocupação, embora completas, são de difícil análise, de forma que se faz necessário o uso de alguma classificação de doenças e de ocupações para sistematizar a análise. Esforços no sentido de criar tipologias de expressões diagnósticas e causa mortis já foram realizados, por exemplo, em Bernabeu-Mestre (1993) e Bernabeu-Mestre et al. (2003). Enquanto isso, uma classificação de ocupações para o passado brasileiro também é um esforço recente da demografia histórica realizado por Botelho et al. (2006) que pode ser aplicado a essas fontes.

Com documentação mais simples que a da Santa Casa, os livros do Lazareto do Fundão guardados pelo Arquivo Municipal de Campinas trazem um grande volume de casos de febre amarela e malária durante os momentos da epidemia e sua mortalidade durante os anos analisados beira os 60% dos casos, bem mais elevada que a da Santa Casa (15% de óbitos entre 1876 e 1885). Esses livros trazem o nome do paciente, idade, nacionalidade e estado conjugal. Essa documentação abre um mundo totalmente novo no que tange ao nível de detalhamento de aspectos da morbimortalidade. Com o tratamento metodológico adequado, podem ser extraídas informações sobre a prevalência de determinadas doenças, em especial as infectocontagiosas, letalidade e estudos de mortalidade diferencial por sexo, condição jurídica, nacionalidade, estado conjugal, por setor de atividade econômica, entre outras possibilidades.

Ademais, outras fontes podem servir de suporte qualitativo para muitas das conclusões retiradas dos livros hospitalares. Exemplos são os relatórios de comissões sanitárias – comuns em São Paulo na época das grandes epidemias – relatórios dos presidentes de província e dos provedores das Santas Casas de Misericórdia.[6]

Existem limitações quanto ao uso dessas fontes para traçar padrões e tendências da população total. A limitação intrínseca da fonte mais óbvia é a de que só os pacientes hospitalizados, grande minoria dos casos no século XIX, entra na conta. Não é possível descartar que a medicina tradicional está disseminada por meio do trabalho de parteiras, curandeiros e pessoas leigas. Tampouco podemos desconsiderar a existência das enfermarias particulares urbanas e rurais, além do fato de que muito provavelmente, quem podia pagar pelos médicos raramente se deslocava ao hospital. O cruzamento nominativo por meio dessas fontes também é limitado, pelos mesmos problemas a que estão sujeitos os registros paroquiais e civis quanto à imprecisão dos sobrenomes. Por fim, essas fontes seriadas não permitem um estudo longitudinal. Como toda a série de fotografias tiradas num curto espaço de tempo, no entanto, pode ajudar a compreender a dinâmica da mortalidade, quando ainda muito pouco se sabe sobre ela.

Fórmulas para remédios

Os livros de Fórmulas para Remédios (1878 – 1881) se constituem em outra fonte importante para compreender se os avanços da medicina poderiam ou não ter algum efeito sobre uma redução da mortalidade ao longo do tempo. As práticas de cura podem ser analisadas quanto à sua eficiência e eficácia a partir dessa fonte, ajudando a desenhar um panorama do conhecimento médico disponível na época. Essa série documental é composta por várias receitas de remédios recomendadas aos pacientes da Santa Casa de Misericórdia. Ele não possui, no entanto, anotação explícita sobre qual a doença a que se dedicavam a curar. É possível recuperar essa informação através de teses e dicionários de medicina tradicional da época.

Nota-se que a composição dos medicamentos indicados na Santa Casa sobrepunha diversos conceitos médicos, desde as concepções químicas que revivem os ensinamentos de Paracelso (1493–1541) – com a ideia de que as substâncias são venenos, mas na dose correta poderiam se transformar em medicamentos; até inspirações da medicina popular e do pensamento grego antigo de Galeno (ca. 129 – ca. 217), que postulava a existência de fluidos (humores) que afetam as funções corporais. Essas concepções aparecem nas fórmulas de remédios baseadas, por exemplo, em arsênio e metais como o mercúrio, além de uma grande quantidade de vomitórios e purgativos. Remédios comuns são, por exemplo, o chamado vomipurgativo de Le Roy, cataplasmas, sulfato de estricnina, iodeto de potássio e sulfato de magnésio, além do ópio e de remédios compostos de ervas – a exemplo de um composto de digitalis, gommagutta e ruibarbo.

Segundo o dicionário de medicina de Pedro Napoleão Chernoviz (1890, p. 985, v.1), a gommagutta é uma substância tóxica, que em grande dose, pode causar envenenamento. No mesmo sentido é possível encontrar nas fórmulas a planta digitalis, indicada para tratar “afecções do coração”. Para Chernoviz (1890, p. 872, v.1): “em alta dose é um veneno que ocasiona irregularidade no coração, vomitos, síncope, e se a dose é muito forte sobrevem a morte”. Por último, o ruibarbo tem efeito purgativo. Além disso, existe um volume considerável de indicações do chamado purgante de Le Roy. Trata-se de um purgativo drástico, que causa irritações intestinais e era indicado, por exemplo, em casos de encefalite com a intenção de “desviar a moléstia fixada no cérebro” (CHERNOVIZ, 1890, p. 820, v. 2).

As curiosidades trazidas por esses documentos podem revelar uma medicina muito próxima do conhecimento tradicional, que muito provavelmente teve efeito limitado no enfrentamento das grandes epidemias. Todas essas facetas merecem ser melhor exploradas para compreender um cenário completo da saúde, da doença e da morte no final do século XIX.

Considerações finais

Ao longo desse artigo, procuramos recuperar as principais fontes utilizadas para o estudo da saúde e da mortalidade das populações do passado, perpassando desde as limitações trazidas pelos levantamentos censitários até o uso de fontes alternativas. Argumentamos em favor de uma maior exploração do potencial dos registros paroquiais e civis para o estudo da mortalidade, apresentando brevemente algumas das discussões teóricas sobre a produção da demografia histórica brasileira. Além disso, mostramos um pouco das potencialidades e limitações na utilização de registros hospitalares para trazer elementos que ilustrem um pouco sobre a dinâmica da morbimortalidade, com dados quantitativos e qualitativos de diversas origens e elaborados para as mais diversas finalidades.

Embora os registros hospitalares tenham aplicação limitada, eles podem trazer evidências em um cenário onde os dados são incompletos e o sub-registro nas estatísticas da população é significativo. Esse tipo de abordagem se constitui, por excelência, como uma exploração necessária à demografia histórica, pois se utiliza de informações que não foram necessariamente pensadas com cunho demográfico e que são utilizadas para preencher as lacunas do passado.

Notas

Fontes

Referências