Texto: Alexandre Otsuka[*]
A economia Paulista e a Abolição
Do começo do século XIX até a década de 1860, a região do Vale do Paraíba viveu seu apogeu e o declínio da produção do café. A cidade de São Paulo pouco usufruiu desse processo, uma vez que o produto não passava pela capital da província para ser exportado. Com a mudança do eixo produtor para a região do que ficou conhecido como Oeste Paulista, que se iniciou nas proximidades da capital, em cidades como Jundiaí, Campinas, estendendo-se até Piracicaba e entorno, o café necessariamente passava pela cidade até chegar aos trapiches de Santos para ser exportado. Essa mudança trouxe desenvolvimento para a cidade, tornando-a centro aglutinador dos negócios do café, onde também passaram a se estabelecer as famílias dos fazendeiros.
A produção de café desenvolvia-se com grande rapidez pelo interior paulista, exigindo cada vez mais mão de obra na lavoura. A proibição do tráfico em 1850, no entanto, estancou a fonte de novos escravos para o Brasil. O alto valor do café possibilitava que os senhores comprassem escravos de regiões economicamente menos dinâmicas do Brasil, como do Nordeste açucareiro, de Minas Gerais e do próprio Vale do Paraíba, gerando um afluxo de escravos de outras regiões para o Oeste Paulista. A campanha abolicionista na Província ocorreu contra os senhores de escravos que, naquele momento, eram os mais dependentes dessa força de trabalho.
A imprensa contra a escravidão
No final da década de 1860, na cidade de São Paulo, o rábula e ex-escravo Luiz Gama iniciou sua atuação abolicionista defendendo escravos contra seus senhores em processos de ação de liberdade, publicando em jornais da época os argumentos utilizados nos processos com a finalidade de que outros advogados como ele também atuassem, e organizando homens com interesses abolicionistas em associações que defendiam essa causa. Nos periódicos em que escrevia, Gama atacou o governo imperial e os escravistas. Tornou-se a principal referência de atuação abolicionista na cidade.
A partir do final da década de 1870, momento em que começou a ser percebida a insuficiência e o não cumprimento das regulamentações da Lei do Ventre Livre de 1871, diversas associações abolicionistas passam a ser criadas por todo o Império do Brasil.
Em São Paulo, Luiz Gama liderava a luta abolicionista em torno do “Centro Abolicionista de São Paulo”. Em 1882, porém, o abolicionista morreu, deixando um vácuo de liderança na campanha. Após a morte de Gama, foi possível perceber a entrada pública de Antonio Bento de Souza e Castro na luta abolicionista, o qual passou a organizar a campanha abolicionista principalmente no entorno da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios, da qual era provedor.
A campanha abolicionista na década de 1880 na província de São Paulo, assim como em todo território imperial, foi marcada pelo recrudescimento da resistência escravocrata. O barão de Cotegipe, que a partir de 1885 tornou-se presidente do Conselho de Ministros, levou a cabo uma política claramente repressora.
Em contraposição à grande resistência dos escravocratas no interior da província, cada vez mais o movimento abolicionista ganhava força e novos adeptos nas cidades. Para esses homens ficava patente que não era mais aceitável existirem pessoas vivendo na condição de escravas, e se o Brasil quisesse entrar para o rol de países civilizados, deveria acabar com o regime escravista imediatamente.
A luta abolicionista na década de 1880, na cidade de São Paulo, envolveu uma diversidade de indivíduos de distintos setores da sociedade e cada qual imprimiu no movimento suas experiências, expectativas, projetos e interesses na abolição. Congregados sob o termo abolicionista encontravam-se pobres e potentados, ex-escravos, trabalhadores autônomos, homens livres despossuídos e até alguns fazendeiros. Distintos projetos abolicionistas estiveram em jogo ao longo da última década de 1880, mas principalmente após a evidência da insuficiência da Lei dos Sexagenários, de 1885.
Alguns abolicionistas optaram pela via jurídica para defender os escravos em ações de liberdade. Outros congregaram-se em associações abolicionistas com o objetivo de arrecadar recursos para compras de liberdade. Houve aqueles que optaram por auxiliar, no interior das fazendas, os escravos a fugirem, elaborando planos de fugas e de transporte até local seguro. Segundo memorialistas da luta abolicionista, Antonio Bento foi capaz de organizar um grupo chamado Ordem dos Caifazes, o qual sistematizou as fugas de escravos e se baseava nas seguintes tarefas: reunir homens livres e criar uma rede de colaboradores que indicasse as fazendas em que a fuga seria efetivada; elaborar uma estratégia de fuga, dependente de uma série de atores sociais; e considerar as diversas circunstâncias a serem evitadas para que a iniciativa não terminasse em catástrofe.
Ficou patente para os historiadores desse período que as fugas que já vinham ocorrendo ao longo de toda a década de 1880 intensificaram-se a partir do final de 1886. No final de 1887 o senador Antonio Prado, ex-ministro da agricultura do escravocrata presidente do conselho dos ministérios, Barão de Cotegipe, reuniu fazendeiros em Campinas para deliberarem sobre a necessidade em se alforriar seus escravos com prazos de prestação de serviços. Os escravos abandonavam seus postos de trabalho e, ao invés de reprimir essas fugas de forma violenta, como vinha ocorrendo ineficazmente, a sugestão de Prado parecia ser a única maneira de mantê-los trabalhando nas fazendas. Alguns historiadores entendem o apoio de Antonio Prado e de outros fazendeiros do Oeste Paulista como um dos momentos em que a instituição escravista perdera suas bases. Até aqueles que mais dependiam dos escravos apontavam no sentido de torná-los mão de obra assalariada. Após a abolição, parcela conservadora da sociedade paulista devotou a conquista à atuação de Prado, esquecendo-se que essa medida somente foi tomada porque eram os próprios escravos que abandonavam as fazendas.
Muitos abolicionistas transigiram com as ideias desses fazendeiros, entendendo que esse movimento estaria de acordo com o processo lento e gradual, sem grandes ebulições, do fim da escravidão. Já outros foram enfáticos em aclamar que a libertação mediante prestação de serviços era prolongar a escravidão por muitos anos, além de indenizar os senhores com o trabalho dos escravos, inadmissível, portanto, uma vez que para eles a escravidão era um roubo. A única solução era a abolição sem nenhuma condicionante, ou ainda com o pagamento de indenização dos senhores aos escravos, pelo tempo que foram mantidos em cativeiro de forma ilegal.
O Jornal A Redempção
Na cidade de São Paulo não houve a publicação de nenhum grande jornal abolicionista até a fundação do A Redempção, em janeiro de 1887. Os esforços de Luiz Gama em conjunto com o ilustrador Angelo Agostini produziram duas malfadadas folhas ilustradas: o Diabo Coxo, de 1864, e o Cabrião, de 1866. Até 1887 houve a produção de efêmeras folhas abolicionistas no interior da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mas muitas delas não duraram mais de duas edições. Alguns jornais da capital, sem serem orientados pela causa da abolição, porém, disponibilizaram espaço para artigos de cunho abolicionista, como A Província de São Paulo, Jornal do Comércio e principalmente o Diário Popular. Este último foi por quase dois anos o principal periódico utilizado por Antonio Bento para divulgar suas ideias abolicionistas e atacar seus opositores escravocratas.
O conteúdo dos textos publicados por Antonio Bento nos últimos meses, assim como o vocabulário por ele utilizado nessa conjuntura (de que são exemplares os termos “revolução” e “revolucionário”), indicam a adoção de um discurso mais incisivo contra a escravidão e apontam para uma possível radicalização da luta. Diante de tal quadro, é possível que os veículos impressos da província tenham se mostrado limitados ao alcance dos discursos almejados pelo abolicionista, parecendo-lhe necessária a criação de um espaço exclusivo à causa da abolição, no qual abolicionistas de diversos matizes pudessem proferir livremente seus discursos e expor suas ideias de combate ao cativeiro, denunciando, sem censuras, aqueles que porventura cometessem injustiças contra escravos, libertos e abolicionistas. Vale ressaltar, nesse sentido, que José Maria Lisboa e Américo de Campos, proprietários do Diário Popular, pertenciam ao Partido Republicano Paulista, sendo razoável supor que pudessem sofrer sanções por divulgar as ideias de Antonio Bento, podendo ter exigido, inclusive, mais moderação de sua parte.
O periódico não explicitou em suas páginas as concepções políticas do abolicionista e tampouco apresentou a prática libertadora empreendida pelos caifazes ou a formalização e defesa escritas de tal prática, uma vez que, como já apontamos, o caráter clandestino da luta muito provavelmente inviabilizava sua descrição pública à época.
A coleção do jornal, por outro lado, configura documentação privilegiada para observarmos o modo com que, nos estertores da escravidão, uma pluralidade de projetos visando o fim do cativeiro no Brasil encontrava-se na arena pública nacional. O jornal A Redempção surge, então, como um verdadeiro quebra-cabeças, composto por uma diversidade de apreciações acerca de como se deveria encaminhar a abolição da escravidão.
Durante a análise da coleção do periódico, foi ficando clara, pouco a pouco, a ausência de uma linha editorial definida e restrita, revelando-se, pelo contrário, a orientação heterodoxa e múltipla da publicação, que agregava em suas páginas projetos discordantes – por vezes refratários à ordem vigente e por outras aproximando-se dos desejos escravistas. A única ideia consensual do periódico, que agregava e respaldava todos os seus artigos, era a da necessidade urgente do encerramento do cativeiro no Império do Brasil. Essa era a premissa básica para a publicação no jornal.
Em São Paulo, província com grande representatividade econômica nacional, pautada na produção do café, a obstinação escravocrata foi ainda maior e a resistência ao fim do cativeiro ainda mais violenta. Confrontados pela insuficiência estatal em reprimir as crescentes fugas de escravos, os fazendeiros paulistas procuraram ocupar os espaços desguarnecidos, organizando-se em torno de clubes de lavoura e criando suas próprias milícias.
A luta abolicionista, por sua vez, apesar de enfrentar um inimigo comum – a instituição escravista –, contava com militantes provenientes dos mais distintos grupos sociais e com uma profusão de propostas e projetos para o fim do cativeiro e o futuro dos libertos, muitas vezes discordantes.
Apresentar o jornal A Redempção, portanto, é retratar essa pluralidade de projetos abolicionistas, por vezes ambíguos e contraditórios, em disputa nos estertores da escravidão.
Outra marcante característica do jornal esteve em seu forte teor de denúncia contra maus senhores, autoridades policiais, urbanos e capitães do mato. Longos relatos sobre castigos, torturas e sofrimentos de escravos, com toda uma linguagem dramática, estiveram presentes em todos os números do jornal. Ter seu nome publicado no jornal abolicionista, estampado como o de um escravocrata perverso e cruel, definitivamente não era do interesse da maioria dos proprietários de escravos. Assim como Antonio Bento fizera no Diário Popular, as opiniões e críticas dos redatores do A Redempção foram reiteradas, em certos casos, pela quantidade de vezes necessária à máxima exposição do atacado.
- [1]Texto extraído do livreto da exposição homônima, realizada a partir de novembro de 2015, no APESP. http://each.uspnet.usp.br/web/prof/geppis.
- [*] Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2012). Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, orientado pela professora doutora Maria Helena Pereira Toledo Machado (2015).