EDITORIAL
Governança em tempos difíceis: Resistir para preservar
Parece fora do tom se falar de arquivos em circunstâncias sombrias em que essencialidades da existência humana se colocam em risco. Contudo, em tempos de conflitos e de espectros que sinalizam obscurecimento de uma “democracia” já combalida e historicamente distanciada do conceito pleno de igualdade, tratar dos arquivos não é detalhe menos importante ou desprezível. Afinal, já se falou nesta Revista sobre a relação incontornável entre arquivos e democracia (ver, especialmente, as edições nº 2 e nº 5).
Apenas lembremos que a chamada lei de Arquivos, nº 8.159, só foi promulgada após o fim da ditadura, em 1991, três anos após a nova Constituição. A lei que regulamenta o artigo 5º da Constituição vigente (ou o que dela vige), sobre acesso à informação, a de nº 12.527, considerada por alguns como a segunda lei de arquivos, foi promulgada 23 anos depois, em 2011. Esta que veio acompanhada da subsequente lei que instaura a Comissão da Verdade, também distanciada em mais de duas décadas do fim do regime que praticou horrores nas mentes, nos corpos e nas organizações que se colocaram contra a ditadura. Essas três normas legais federais teriam sido impossíveis se não houvesse elementos básicos do que se convenciona chamar de democracia.
Nestes tempos em que o valor da vida humana é mensurado de acordo com os humores do “mercado”, o que esperar de políticas públicas em relação à cultura e ao patrimônio do país? Tempos em que dados e informações pessoais são submetidos à lógica do mercado, a serviço de grupos capazes de interferir em destino de nações; tempos em que assistimos ao vivo a morte instantânea (efetiva, não figurada) de 200 anos de história da ciência e da memória nacional, simbolizados nos escombros do Museu Nacional, faz-se necessário, mais do que nunca, o reforço à luta pela causa dos arquivos, pois é o acesso a direitos individuais e coletivos (inclusive à memória) que estão em jogo. Acervos arquivísticos que foram cruciais para dar substância aos relatórios das comissões da verdade precisam continuar protegidos. Eventos recentes ocorridos em bibliotecas públicas sinalizam o alerta aos arquivos.
Sabemos que os arquivos nunca constaram nos programas de governo de candidatos a cargos públicos em qualquer esfera de poder e não gozam de prestígio de nenhuma agremiação política, seja lá qual for a cor representativa de sua ideologia. Portanto, não se esperaria que neste clima tenso de disputa eleitoral a já frágil e invisível causa dos arquivos se apresentasse sob alguma forma. Em geral, os gestores públicos fecham os olhos para a questão dos arquivos. De fato, não temos motivos para pensarmos que estes tempos irão marcar a história como “a era da informação”. Estamos longe disso.
A situação das instituições responsáveis pela custodia de documentos e pela preservação da memória é muito preocupante na atual conjuntura. Além do inominável ocorrido com o Museu Nacional, que destino se projeta para sua “instituição irmã”, o nosso Arquivo Nacional? Como classificar o descaso com o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, que vaga inconstante pela estrutura administrativa;[1] a reverberação imediata das chamas que consumiram o palácio da Quinta da Boa Vista fez o IBRAM virar ABRAM, o que significa muito mais que simples troca de letra, mas indica preocupante mudança de estatuto daquela instituição na atual onda de desvalorização da coisa pública.
E, de resto, não obstante os avanços pontuais na nossa área, a regra geral confirma a carência de política pública efetiva para os arquivos brasileiros, em todas as esferas, com notórios movimentos de retrocesso. Quando alguma instituição conquista alguma estrutura e consegue superar sua condição de invisibilidade crônica, é constrangida por conveniências políticas que quase sempre põem em risco os trabalhos técnicos na instituição. Nesses casos, os conflitos das distintas lógicas de gestão do tempo são inevitáveis: o tempo lento e largo das técnicas dos arquivos mostra-se em disritmia com o tempo esquizofrênico do calendário eleitoral.
Contudo, nós profissionais dos arquivos nunca experimentamos contextos absolutamente favoráveis. Somos forjados e temperados na luta permanente e adversa pela causa. Teimamos em semear sonhos em solos inférteis e duros e não nos curvaremos ante onda que um dia terá fim.
A Revista é prova dessa nossa aposta em resistir e continuar a investir no futuro. Estamos aperfeiçoando o seu layout e investindo em ferramenta de gestão; estamos sempre em busca do aprimoramento do seu conteúdo e da manutenção de rigorosa linha editorial. A propósito, a partir desta edição, temos a honra de apresentar o novo conselho editorial que conta com expressivos nomes da historiografia, mas, principalmente da arquivologia brasileira e internacional.
Pelos motivos expostos, justifica-se a opção da Revista do Arquivo em insistir no tema da governança, por se crer na necessidade crucial de reflexão sobre a gestão dos arquivos, para que estes mantenham (ou conquistem) sua autonomia, independentemente dos humores da política partidária que envolve a coisa pública. Para cultivarmos a resistência e a esperança nestes tempos difíceis nada condizentes com a estação primaveril, cabe aqui, singelamente, relembrar o código de ética arquivística preconizado pelo Conselho Internacional dos Arquivos e homenagear os profissionais dos arquivos pela efeméride comemorada no dia 20 de outubro. https://www.ica.org/sites/default/files/ICA_1996-09- 06_code%20of%20ethics_PT.pdf
Boa leitura!
Marcelo Chaves
Governança dos arquivos: desafios para gestão e para a memória. Seria este um tema de pouca penetração (ou de interesse) no âmbito da academia? Os profissionais da área têm tido oportunidade de refletir sobre políticas e relações que condicionam suas práticas cotidianas? Essas questões são levantadas na reiteração da chamada de artigos para o primeiro Suplemento da Revista do Arquivo a ser lançada em junho de 2019. Isto porque, entre os muitos artigos submetidos para esta edição, apenas dois deles foram aprovados. Entre outros motivos, faltou diálogo com qualquer dos subtemas propostos na chamada.
Em seu ensaio introdutório para esta edição, o professor José Maria Jardim parece corroborar com essa lacuna quando aponta que governança arquivística não é um tema contemplado frequentemente na literatura da área (...) Predominam as abordagens sobre a gestão de documentos como instrumento de apoio à governança.
Não nos surpreende que os dois bons artigos ora publicados tenham a assinatura de autores que também são gestores de arquivos.
Antônio Carlos Galdino, dirigente do Arquivo Municipal de Campinas e doutor em história, brinda-nos com instigante e polêmica abordagem teórica sobre o conceito de gestão documental que, segundo ele, foi incorporado de forma acrítica no universo conceitual e legislativo da área arquivística. Apresentando-nos a teoria das organizações do sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos que sustenta a tese da existência de duas racionalidades na gestão das organizações, a funcional e a substantiva, o autor chega a sugerir que a reprodução continuada dessa apropriação acrítica nas instituições arquivísticas impacta a governança e, em parte, explica o fracasso da implantação da Gestão de Documentos na Administração estatal brasileira.
É gratificante para esta Revista veicular argumentos originais que estimulam a reflexão teórica nesta área tão marcada pelo empirismo (quase pragmático). Também é salutar o diálogo estabelecido a partir de conceitos de outras áreas.
O artigo assinado por Lilian Bezerra e Arize Pinheiro, funcionárias do Arquivo Geral da USP e também com formação em história, é um contraponto à abordagem teórica acima apresentada, pois elas nos oferecem um estudo de caso sobre a invisibilidade dos arquivos a partir da leitura de fontes primárias do arquivo AG-USP. Fato raro que serve de exemplo para dirigentes e pesquisadores do assunto. Ao pesquisar na documentação administrativa de valor permanente desde a década de 1930, busca-se enxergar a política da USP em relação aos seus arquivos. O estudo leva as autoras à conclusão de que prevalece no cotidiano universitário a lógica do descaso e/ou improviso, o que explicaria o “não lugar” e a persistente invisibilidade dos arquivos na instituição.
ENTREVISTA
...o lugar melhor do Arquivo Nacional era, efetivamente, onde esteve de junho de 2000 até 2011, na Casa Civil da Presidência da República.
Logicamente, para você gerir uma instituição (...) você tem que saber dizer não.
...a maior parte dos cargos de maior remuneração está na gestão, porque a gestão é estratégica para a instituição como um todo.
Eu não acho que organização de arquivos seja uma coisa exclusiva do arquivista.
...havia uma pressão enorme pelo impeachment da presidente, e que talvez tivesse que se valer de cargos da administração pública (...).
Eis um aperitivo para o leitor. O depoimento de Jaime Antunes tem substância, histórias, exemplos e muita experiência derivada dos mais de 50 anos no Arquivo Nacional, 23 como seu dirigente maior. Antunes é, sem dúvida, figura singular e emblemática da causa dos arquivos.
INTÉRPRETES DO ACERVO
Os depoimentos dos franceses Aurélia Michel e Sylvain Souchaud, ambos professores da Universidade Paris-Diderot, França, são exemplares no que diz respeito ao papel dos arquivos e das práticas de atendimento aos consulentes para o aprimoramento das pesquisas.
PRATA DA CASA
Esta seção está riquíssima. Veja como trabalha a equipe do Centro de Assistência aos Municípios, liderada por Igor Marangone, para prestar orientação técnica às prefeituras e câmaras municipais, no que diz respeito à gestão, preservação e acesso à informação.
Os testemunhos de dirigente de arquivo de prefeitura,Antonio Carlos Galdino, de Campinas, e de responsável pelo arquivo de legislativo municipal, Reginaldo da Cruz Costa, de Barueri, enriquecem ainda mais a seção.
ARQUIVO EM IMAGENS
Em referência ao tema da governança, divulgamos imagens históricas do Arquivo Público do Estado de São Paulo que revelam a evolução das construções prediais que abrigaram o APESP ao longo de sua trajetória e imagens inéditas do Fundo Inês Etiene Romeu, recém incorporado ao acervo.
ESPECIAL 130 ANOS DA ABOLIÇÃ DA ESCRAVIDÃO O
Entrevista inédita com a professora da UNIFESP Lígia Fonseca. Sensacional! Confira.
Eunice Prudente: Acadêmica, advogada e mulher negra no mundo do Direito, por Gislene Aparecida dos Santos. Em homenagem à colega Dra. Eunice Aparecida de Jesus Prudente.
Memória da imprensa abolicionista: o jornal A Redempção, por Alexandre Otsuka.
Aproveite e veja como pesquisar o tema escravidão no Arquivo.
Veja também: reapresentação em vídeo das sempre atuais palestras do seminário sobre a escravidão realizado no APESP.
IN MEMORIAM ...DO MUNDO
O QUE HÁ DEPOIS DA HISTÓRIA? Sentimento eterno de perda irreparável da história, da ciência e da cultura brasileira expressa a sensação de um Brasil que se perdeu.
Aproveitamos para sugerir ao leitor da Revista do Arquivo, que visite o periódico da ANPUH, a atual edição da REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA, vol.38 no.78 São Paulo maio/ago. 2018, cujo dossiê é Arquivo e História.
Indicamos, particularmente, a leitura do artigo Governança e arquivos: a gestão Luís Henrique Dias Tavares no Arquivo Público do Estado da Bahia (1959-1969), assinado por Maria Teresa Navarro de Britto Matos, que dialoga fortemente com o tema do dossiê desta edição nº 7. Eis o link: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v38n78/1806-9347-rbh-1806-93472018v38n78-07.pdf
Congratulamo-nos e agradecemos aos novos conselheiros e colaboradores da Revista do Arquivo, nos quais depositamos a nossa expectativa de fortalecimento, difusão e aprimoramento deste periódico.
NOVOS COMPONENTES DO CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA
Adriana Koyama
Ana Canas Delgado Martins
Ana Célia Rodrigues
Ana Maria Camargo
André Malverdes
André Mota
André Porto Ancona Lopez
Anna Szlejcher
Cândida Fernanda Antunes Ribeiro
Clarissa Moreira dos Santos Schmidt
Daniel Flores
Gabriel Bevilacqua
Heloísa Bellotto
Ivana Denise Parrela
Johanna Wilhelmina Smit
Josemar Henrique Melo
Jussara Borges de Lima
Marcelo Nogueira de Siqueira
Mariana Lousada
Mariana Nazar
Natália Bolfarini Tognoli
Neire do Rossio Martins
Pádua Fernandes
Paulo Roberto Elian dos Santos
Ramon Alberch Fugueras
Sonia Maria Troitiño Rodriguez
Vanderlei Batista dos Santos
Notas