Resumo:
Estabelecemos um panorama histórico da Universidade de São Paulo desde sua criação em 1934 aos dias atuais, enfocando os arquivos do ponto de vista de sua estruturação física e organizacional, dos trabalhadores que neles atuam e de suas condições de trabalho. Entendemos o “não lugar” institucional dos arquivos como entrave ao estabelecimento de espaços apropriados e equipados para trabalho, assim como para a percepção da necessidade de um perfil profissional específico e adequado ao desempenho das atividades relacionadas. Em nossa argumentação baseamo-nos na análise de decretos estaduais e de normativas internas à Universidade de São Paulo, à qual aliamos a consulta de processos administrativos, relatos orais de antigos funcionários da Universidade, bem como a nossa própria experiência de atuação na área.
Palavras-chave: Universidade de São Paulo – Arquivo Institucional – Profissional de Arquivo
Abstract:
This study establishes a historical panorama of the Universidade de São Paulo since its creation in 1934, until the present day, considering its archives in their physical and organizational structure, as well as its workers and their working conditions. The non-institutional place of archives is understood as an obstacle to the establishment of proper working spaces with adequate equipment, in addition to the perception of the need for specific professionals capable of fulfilling all related activities. Our discussion is based on the analysis of states’ ordinances and internal regiments of the university, allied with the enquiry of administrative procedures, oral accounts of former employees and our own experiences in the area.
Keywords: Universidade de São Paulo – Institutional Archives – Archive Professional
Introdução
O presente artigo traça um panorama histórico da gestão documental na Universidade de São Paulo, desde sua constituição até os dias atuais. A partir da análise de decretos estaduais e de normativas internas à Universidade de São Paulo, e da consulta a processos administrativos, a relatos orais de antigos funcionários da Universidade e da nossa própria experiência de atuação na área, constatamos que a ausência dos arquivos na estrutura universitária - este seu “não lugar”- [1] configura relevante obstáculo ao estabelecimento de espaços apropriados e equipados para trabalho, assim como para a percepção da necessidade de um perfil profissional específico e adequado ao desempenho das atividades relacionadas à gestão documental, prevalecendo, no cotidiano universitário, a lógica do descaso e/ou improviso.
Por meio do Decreto Estadual nº. 6.283, de 25 de janeiro de 1934, foi instituída a Universidade de São Paulo (USP).
Fruto dos desejos da elite intelectual paulista, reunia, em torno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), institutos superiores pré-existentes: Faculdade de Direito (FD), Faculdade de Medicina (FM), Faculdade de Farmácia e Odontologia (FFO), Escola Politécnica (POLI), Instituto de Educação, Escola de Medicina Veterinária e Escola Superior de Agricultura (ESALQ). Foram criados, também, o Instituto de Ciências Econômicas e Comerciais e Escola de Belas Artes, ambos a serem instalados pelo governo do Estado em momento oportuno (o que só viria a ocorrer, com alteração de nomes e atribuições, anos depois).
Este modo de constituição seguramente trouxe consigo tanto problemas de integração entre as antigas faculdades entre si e a nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, “bem como de transferência e alargamento de ‘vícios de origem das instituições já existentes’ para o corpo da Universidade” (FÉTIZON, 2012, p. 152).
Instituída a USP, fez-se premente a regulação de seu funcionamento. Assim, ao longo de 1934 e, mais fortemente em 1935, foram baixados, também via Decreto, seu Estatuto e os Regulamentos das Faculdades que a compunham[2] .
Ainda que àquela altura a USP estivesse longe de alcançar o tamanho e complexidade que hoje apresenta, na leitura destes documentos e de outros correlatos, depreendemos o funcionamento da Universidade e sua produção documental.
Com estrutura administrativa enxuta, o primeiro Estatuto da Universidade previa como seus órgãos administrativos, a Reitoria, o Conselho Universitário e a Assembleia Universitária, dispondo a Reitoria, em sua estrutura organizacional, tão somente de uma Secretaria e uma Contabilidade.
O Decreto nº. 6.535, de 4 de julho de 1934, definiu a estrutura administrativa da Reitoria com um reitor, um vice-reitor, um secretário-geral, um secretário particular, um contador, dois escriturários (sendo o 2º escriturário, escriturário-arquivista), um bibliotecário, dois 3os escriturários-datilógrafos, dois contínuos e um servente.
A mesma estrutura prevista para a Universidade estendia-se, com as devidas adaptações, aos seus institutos superiores, os quais gozariam, administrativamente, de Diretoria, Conselho Técnico-Administrativo (facultativo neste primeiro momento) e Congregação, tendo por seções administrativas a Secretaria e a Contabilidade.
Nessa estrutura, era a Secretaria que concentrava o maior número dos documentos produzidos, fossem eles oriundos da área administrativa (ata de concurso docente, registro de frequência de docentes e servidores técnicos, folha de pagamento, redação e emissão de correspondência etc.) ou da acadêmica (registro de matrícula, de frequência e notas dos alunos etc.). A partir da leitura do Estatuto da USP e dos Regulamentos das Faculdades existentes no período, percebemos que os secretários - da Reitoria e dos Institutos – gozavam, então, de grande prestígio e poder.
Alguns regulamentos internos nos deixam entrever o cotidiano da produção documental, os responsáveis por sua elaboração, assim como nuances de complexidade administrativa. Enquanto o regulamento da FFCL mantinha-se fiel ao pressuposto no Estatuto da USP, notamos o quanto as Unidades mais antigas diferiam desse modelo, apresentando corpo administrativo maior e mais especializado, ao mesmo tempo em que, provavelmente pela experiência adquirida no desempenho das atividades, ditavam procedimentos e regulavam, mais minuciosamente, sua produção documental.
A Faculdade de Direito, já em 1935, vinculava à Secretaria uma Seção de Protocolo e Expediente e uma Seção de Registro e Arquivo, enquanto a POLI citava apenas uma Seção de Expediente. Nas demais Faculdades estas seções não foram citadas, o que nos faz supor que não havia, ainda, um lugar institucional para os arquivos, e, mesmo onde este lugar existia, estava longe de apresentar-se de modo uniformizado.
Certo é que os arquivos, corporificados em seus documentos, sempre existiram, afinal, são o produto natural e obrigatório do desempenho das atividades, mas naquele momento – como em parte ainda hoje – não estavam fixados na estrutura organizacional da Universidade e não dispunham, sequer, de um perfil profissional padronizado para desempenho das atividades relacionadas a sua gestão. Voltaremos a este ponto.
Se na década de 1930, a partir dos documentos analisados, a questão dos arquivos e da gestão documental surge acanhadamente, ao final da década seguinte já encontramos normativas atinentes ao manuseio e trâmite do processo, unidade documental de caráter decisório, típica do serviço público.
Em julho de 1948, o então Departamento de Administração da Reitoria baixou instruções para o andamento e autuação dos processos[3] . No ano seguinte, lançou portaria específica acerca das Normas Processuais[4].
Da leitura das Portarias baixadas no período, também vislumbramos a “complexificação” administrativa. A Reitoria, que outrora dispunha somente de uma Secretaria e Contabilidade, no início de 1949 passou a apresentar, além do Gabinete do Reitor e da Secretaria Geral, o Departamento de Cultura e Ação Social, o Departamento de Administração - ambos com subdivisões em Divisão e Seção -, a Tesouraria, além de uma Assessoria Técnico-Jurídica e de uma Comissão de Pesquisa Científica.
O Departamento de Administração da Reitoria congregava quatro Divisões e a Portaria. Como parte da Divisão de Expediente havia uma Seção de Arquivo[5]. Esta Seção está na origem do que é hoje o Arquivo Intermediário da Reitoria e, durante décadas, foi a única estrutura física especificamente devotada à guarda de documentos, caminhando em consonância com o Protocolo e Expediente, centralizados naquela mesma instância.
Entre as décadas de 1980 e 1990 houve um grande impulso para a descentralização das atividades relacionadas ao protocolo, expediente e arquivo, acompanhando o momento vigente de informatização de rotinas.
Desde 1981, a Universidade vinha pensando um modelo de sistema informatizado para gestão de seus processos, no entanto, só a partir de 1986 passou a ser implementado, efetivamente, o Sistema PROTEOS, sistema corporativo dedicado ao controle do trâmite de processos.
Pouco depois dessa etapa de informatização, ocorreu ação de reestruturação das Unidades e órgãos com vistas ao enxugamento de suas estruturas administrativas[6]. Assim, Unidades que outrora apresentavam Serviço, Seção ou Setor de Protocolo, Expediente e Arquivo devidamente estruturadas e institucionalizadas - algumas vezes com divisão hierárquica -, passaram a dispor, de modo geral, de apenas uma Seção/Setor ou Serviço (a depender de seu tamanho[7]) de Expediente, com uma única chefia respectiva[8].
Ao acompanharmos este processo de reestruturação, percebemos que, se, em 1998, das 76 Unidades existentes, somente 9 mantinham o nome Arquivo juntamente com sua Seção/Setor ou Serviço de Expediente. Hoje, em 2018, somente 2 mantêm esta denominação. Por outro lado, ao longo desses 20 anos, houve Unidade que simplesmente extinguiu a Seção de Expediente de sua estrutura, enquanto outras reuniram as atividades de gestão documental sob o guarda-chuva de uma Seção de Comunicações Administrativas (ou outras variações).
A remissão à constituição e funcionamento da Universidade, ao longo das décadas, revela ponto importante sobre o qual lançamos luz ao longo deste artigo e que compõe o cenário da gestão documental na USP: o “não lugar” institucional dos arquivos.
O “não lugar” institucional dos arquivos
No que concerne ao “não lugar” do arquivo dentro do contexto histórico e realidade atual uspianas, podemos perceber como isso interfere em três pontos importantes: 1. na gestão dos espaços, no que diz respeito, sobretudo, às edificações e armazenagem de acervos, aos equipamentos e mobiliários especializados; 2. na questão de alocação de funcionários e condições de trabalho; 3. na própria categorização profissional no Plano de Classificação de Funções da Universidade.
A falta de espaço parece ser um denominador comum às instituições públicas, motivando querelas e competições entre setores em face de eventuais espaços vagos ou a vagar. Ao final, estas disputas perpassam questões políticas, e o detentor de maior influência e poder costuma vencer.
Quando o arquivo sequer existe em organograma, perde força nessa queda de braço, fato este que só aumenta a tradicional falta de prestígio e poder que recobre esta área. Assim, aos arquivos administrativos, sempre escamoteados, restam locais inapropriados de guarda, sendo amontoados e esquecidos em cantos, embaixo de escadas, depositados irregularmente em espaços que não pertencem ao órgão de sua proveniência, dificultando seu gerenciamento e acesso.
A esta posição relegada, concorrem as edificações, já que comumente os prédios destinados à guarda documental não foram projetados para armazenagem, em alguns casos, sendo edifícios históricos. É preciso lembrar que os prédios necessitam de bom reforço estrutural para suportar o peso que o acúmulo natural de documentos demanda. Este fator físico acaba sendo determinante para que se alojem acervos em subsolos, expondo-os a altos índices de umidade relativa - advindos da umidade ascendente do solo – acrescido do fato do campus universitário do Butantã, com maior concentração de Unidades, ter sido erigido sobre uma área de mata e de solo extremamente úmido, com proximidade ao rio Pinheiros e a córregos, o que destoa das Recomendações para a construção de arquivos (BECK, 2000, p. 6), emanadas do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ):
A escolha do local de um arquivo deve levar em consideração a ambiência adequada para a preservação dos acervos e o desenvolvimento de suas funções como um todo. [...] O terreno destinado à construção de um edifício para arquivo deve ser seco, livre de risco de inundação, deslizamentos e infestações de térmitas. Assim, devem ser evitadas áreas propensas a perigos para a segurança e a preservação dos acervos, tais como:
[...]
- proximidade com o mar, zonas pantanosas, rios ou locais sujeitos a inundações;
- terrenos e subsolos úmidos;
A despeito dos problemas típicos ao subsolo, é preciso estar atento, igualmente, quando os locais de guarda de arquivo estão em pisos superiores, pois eles podem não suportar a carga que a massa documental acumulada exerce por m². Dependendo do mobiliário adotado, a recomendação é que o piso suporte uma carga que varia de 800 a 2000kg/m², referentes à escolha entre estantes fixas ou deslizantes (BECK, 2000). Geralmente, se dá preferência à aquisição de estantes deslizantes exatamente porque otimizam o espaço, contudo, são as que demandam melhor estrutura. Infelizmente por vezes acontece de não relevarem tal informação e instalarem-nas em locais não projetados para o referido peso, gerando problemas estruturais. Isso ocorre por dois motivos, principalmente: falta de profissional especializado no local interessado na compra das estantes, que atentaria para essa questão pelo viés do acervo; e a falta de comunicação com o órgão responsável pelas construções e/ou fiscalização de obras, aos quais competiria alertar, diante da solicitação de compra de equipamentos desta monta, para as questões estruturais, agora pelo viés da engenharia.
Além dos problemas apontados de estrutura e edificações que encontramos, há uma grande dificuldade de aquisição e instalação de equipamentos e materiais de consumo específicos aos arquivos, sobretudo àqueles atinentes à área de conservação, seja dos ambientes de guarda ou de acondicionamento ou reparo de documentos. Estes vão desde a aquisição de sistemas/aparelhos de controle ambiental, tais como sistemas centrais de ar condicionado, para temperatura (T) e umidade relativa (UR), ou tipo Split (de parede) combinado com desumidificadores; aparelhos para medição/registro desses índices para gerar estudos do comportamento ambiental (termohigrógrafo, termohigrômetro, data logger); maquinário de ateliers e laboratórios (mesa de higienização, máquina obturadora de polpa, mesa enroladeira, mesa de sucção, câmara de umectação, câmara de desinfestação, capela e armário de exaustão etc.); até produtos de consumo para intervenções apropriadas de conservação e restauro (materiais para acondicionamento, pequenos reparos, limpeza mecânica ou química etc). Ogden e Garlick (2001, p.12) alertam sobre a importância do controle ambiental nas áreas de guarda de documentos, como condição imprescindível à preservação do acervo:
Em particular, ao se fixarem as prioridades, deve-se compreender que o controle ambiental apropriado constitui a base sobre a qual irão se apoiar todas as outras atividades de preservação e conservação. Todas as outras medidas que uma instituição pode tomar para prevenir a deterioração ou para consertar os efeitos de danos físicos ou químicos, serão minadas se os materiais continuarem abrigados sob condições ambientais inadequadas. Impõe-se, então, como extremamente importante, que toda a instituição que abriga documentos de valor permanente integre em sua gama de operações os imperativos da preservação.
De modo geral, a montagem de estruturas e setores específicos para funcionamento de um arquivo é difícil, assim como a manutenção desses locais, quando existentes. Ademais, dentro do arquivo, a área de conservação é a usualmente esquecida em projetos, ou a primeira a ser cortada diante da necessidade de redução de gastos, sobretudo por ser a que mais demanda equipamentos e materiais especializados, acarretando, inclusive, dificuldade de compreensão, por parte dos setores de compra, dos materiais e serviços solicitados. Cabe salientar, ainda, que a maioria dos materiais usados em intervenções na área de conservação é especializado, encontrando na obrigatoriedade da apresentação de três orçamentos uma dificuldade, pois não existem muitos fornecedores, além do problema na compra de produtos químicos.
Quando, diante de restrição de verba, se opta por cortar, por exemplo, serviços de manutenção de ar-condicionado, esta ação impacta diretamente tanto a conservação dos acervos, quanto as condições de trabalho dos servidores, o que nos coloca diante da segunda consequência advinda do “não lugar” institucional dos arquivos.
Não é incomum encontrarmos estações de trabalho (fixas) (ou áreas de atendimento ao pesquisador) dentro dos locais de guarda documental, quando o recomendado é que estejam em local separado, tendo em vista que as áreas de depósito geram acúmulo de sujidades, podendo ocorrer desenvolvimento de micro-organismos, sobretudo diante de falta de rotina de limpeza mecânica e de controle adequado das condições ambientais, desencadeando problemas de saúde nos funcionários (BRASIL, 2009a). Outras situações se apresentam nessa cena: sistema de ar-condicionado tendendo a funcionar apenas para conforto humano e não manutenção do acervo, sendo desligado no fim do expediente, ou, ao contrário, o ar funcionando em função do acervo em detrimento da saúde e bem-estar do servidor (ou pesquisador) ali alocado, afinal, “As temperaturas recomendadas para espaços utilizados exclusivamente para armazenagem são muito mais baixas que aquelas indicadas para espaços que combinam o atendimento a usuários e a armazenagem” (OGDEN, 2001, p. 8).
Quando não há o compartilhamento de espaço (entre locais de guarda e estações de trabalho), mas a divisão entre andares da área de guarda (geralmente localizada no subsolo) e dos escritórios/salas dos servidores (em pisos superiores), a necessidade de consulta e movimentação da documentação, na inexistência de carros de transporte, elevadores de carga ou algo do gênero, pode configurar risco ergonômico, fonte de doenças ocupacionais (BRASIL, 2009b).
Cabe notar, ainda, que existe a tendência, que a cultura institucional corrobora, de perceber o servidor de protocolo e expediente (já que o arquivo inexiste na estrutura uspiana desde a década de 1990) menos importante na hierarquia, embora esses locais sejam, em analogia, o saneamento básico da instituição, onde a máquina gira e onde toda a atividade se viabiliza. Porém, estes setores acabam sendo depósito de funcionários “problema”. É mais uma vez o “não lugar” delineando uma cultura que não enxerga a relevância em se ter profissionais capacitados nestes locais, com conhecimentos atinentes à gestão e com perfil adequado ao exercício de determinadas atividades.
Sob o enfoque dos trabalhadores que atuam ou deveriam atuar junto aos arquivos e na gestão documental, vale a pena retornarmos aos primórdios da Universidade, observando mais uma vez seu Estatuto e os Regulamentos das Unidades.
Se, a partir das denominações utilizadas, podemos supor que o primeiro Estatuto da Universidade atribuía estas atividades a um 2º escriturário-arquivista; a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz as creditava a um datilógrafo arquivista; a FFO fala de um bibliotecário-arquivista e a FM pulveriza estas atribuições entre o bibliotecário e o secretário arquivista, enquanto nas demais Unidades não existia uma função que fizesse alusão a esta atribuição em seu nome, cabendo, na maior parte das vezes, ao secretário as tarefas atinentes ao arquivo.
A Faculdade de Direito cita somente um Chefe de Seção, o que nos faz supor que as Seções de Expediente e Protocolo e de Registro e Arquivo pudessem gozar, também, de um servidor com este cargo. A POLI remete a um Chefe de Expediente que, se a rigor deveria configurar outra situação, na cultura USP vigente, é nestes lugares institucionais, muitas vezes denominados Seção/Setor ou Serviço de Expediente (com pequenas variações), que encontramos os arquivos setoriais.
Rastreando, ao longo das décadas, o desenrolar da gestão documental, deparamo-nos com processo USP datado de 1963, no qual existe minuta de Portaria GR que propunha novo quadro de funções aos servidores autárquicos (Processo USP nº. 63.1.3330.1.4). Produto das discussões havidas ao longo daquele ano, a referida minuta de Portaria congregava sugestões das Unidades existentes e sugeria cinco classes de servidores: I. Servidores de nível universitário; II. Servidores de nível técnico; III. Servidores técnicos-auxiliares; IV. Servidores burocráticos e V. Servidores auxiliares e de zeladoria.
Entre os Servidores burocráticos encontramos - pela primeira vez até este momento de nosso levantamento - o profissional arquivista, ao qual se juntava o almoxarife; o datilógrafo; o escriturário; a secretária (único no gênero feminino) etc. Lembramos que na década de 1930, era às profissões de datilógrafo, escriturário e/ou de secretário, que o arquivista estava associado.
O último documento juntado ao referido processo data de 1964, havendo despacho que informa que o assunto passou a ser discutido, anos depois, em outro processo (Processo USP nº. 67.1.6734.1.2). Neste último, encontramos relatório (datado de 15/12/1966) da Comissão Especial destinada a discutir o tema, no qual explicita os critérios adotados na proposta de Portaria apresentada. Informa, assim, “que foram abolidas as funções constantes da tabela atual que, nitidamente, poderiam ser reunidas em uma única”. Desse modo sai de cena o arquivista, que juntamente com outros, foi agrupado sob a denominação de Auxiliar Administrativo ou Assistente Administrativo.
O processo de redução das especificidades profissionais em favor de funções de tipo “guarda-chuva” é tendência que acompanha o funcionalismo público e que, no caso da USP, apesar das ondas sucessivas de expansão e retração, alcança os dias atuais, fato verificável na análise de seu Plano de Classificação de Funções (PCF)[9] . No início dos anos 2000, houve movimento de expansão das funções no PCF, no sentido de cada vez mais especificar as atuações profissionais. Mesmo nessa onda, as funções criadas não atentavam para qualificação específica necessária ao perfil de servidores designados para os Serviços, Setores ou Seções de Expediente, aos quais não competiam funções de nível superior, nem mesmo àqueles servidores que desempenhariam cargos em nível de chefia.
As antigas funções que, de acordo com as descrições das atividades, teriam pertinência de atuação junto aos Expedientes, aqui entendidos como o espaço estruturado de gestão documental na USP, seriam as do Grupo Básico (com exigência de formação em nível fundamental): auxiliar de administração, auxiliar de documentação e informação e auxiliar de museu; as do Grupo Técnico (com exigência de formação em nível médio): técnico para assuntos administrativos, técnico em documentação e informação e técnico em museu; e do Grupo Superior (com exigência de formação em nível superior): especialista em documentação museológica, especialista em pesquisa/apoio de museu, especialista em conservação e restauro e especialista em laboratório. Porém, cargos de nível superior não são liberados para as Seções/Setores ou Serviços de Expediente. Tradicionalmente, são os servidores enquadrados em funções do Grupo Técnico que atuam como Chefes de Expediente.
Ademais, observa-se grande rotatividade entre servidores alocados nestes Setores de Expediente – o que pode ser creditado tanto às condições de trabalho nesses locais, como já referido, quanto ao desprestígio institucional de que gozam. O fato é que esta evasão gera dissociação, pois o conhecimento absorvido pelo funcionário durante sua atuação na área se desloca com ele quando transferido, cabendo à área evadida a busca e treinamento de outro servidor para cobrir esta lacuna[10]. Não podemos deixar de notar, também, que o processo de reestruturação/enxugamento das áreas de arquivo, protocolo e expediente acima descrito, contribuiu para este processo de evasão, pois institucionalmente gerou transferências.
Cabe salientar, ainda, que as funções específicas acima citadas com perfil passível de atuação junto à gestão documental, foram criadas para atender à demanda de outros lugares institucionais, vide o auxiliar/técnico em museu e auxiliar/técnico de documentação e informação. Os primeiros foram pensados para museus, enquanto os segundos para bibliotecas. A única função que desde o início dos anos 2000 até hoje traz em seu nome a palavra “arquivista”, e que está em estudo atualmente para ser extinta, é o copista e arquivista musical, função de nível superior que tem por exigência a formação superior em Música.
De 2010 em diante, uma nova reestruturação no PCF tem enxugado o quadro, compilando antigas funções em denominações terminológicas mais amplas, diluindo ainda mais as possibilidades de contratação de profissionais com perfil e formação mais próximas à área de arquivos. As de nível básico se dividiram nas funções de: auxiliar de administração (agrupando, entre outros, o auxiliar de administração e auxiliar de documentação e informação) e de auxiliar de serviços gerais (agrupando o auxiliar de museu e outros); as do nível médio em: técnico para assuntos administrativos (agrupando o técnico para assuntos administrativos e técnico de documentação e informação) e técnico de laboratório (agrupando técnico em museu); as do nível superior em: especialista em pesquisa/apoio de museu (agrupando o especialista em documentação museológica, especialista em pesquisa/apoio de museu, especialista em conservação e restauro) e especialista em laboratório (agrupando o especialista em laboratório, entre outros).
Considerações Finais
Pelo percurso histórico traçado, fica evidente o quão oscilante e instável foi a situação dos arquivos e de seus profissionais na Universidade de São Paulo.
Desde a década de 1990, com raríssimas exceções, restaram, como arquivos institucionalizados em âmbito universitário, o Arquivo Intermediário da Reitoria e, a partir de 2008, o Arquivo Geral da USP – também órgão central do Sistema de Arquivos da USP (SAUSP).
Entendemos que a supressão dos arquivos na estrutura organizacional universitária agrava a invisibilidade crônica destas instâncias e oblitera a necessidade de locais específicos, de condições de trabalho adequadas, bem como a exigência de um perfil profissional para atuar junto a estes espaços.
Não se trata aqui da defesa de uma formação específica e estanque, mas de chamar a atenção para algumas competências específicas a serem supridas, diante de algumas atividades também especificas a serem desempenhadas.
Sendo essa a realidade da Universidade, soma-se ainda o fato de os arquivos, de modo geral, mas sobretudo os arquivos administrativos, não serem encarados, pelo senso comum e pelos dirigentes, como lugares estratégicos para administração e como espaços de potencial pesquisa, logrando, assim, uma posição menos importante politica e financeiramente e no tocante aos recursos humanos, sobretudo se comparado as suas duas instituições de custódia “irmãs”[11] (SMIT, 1993): biblioteca e museu, as quais, na estrutura e status universitário, pertencem a lugares diferentes.
- [*]Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. Atualmente é Supervisora Técnica do Serviço de Gestão Documental do Arquivo Geral da USP. Cursou a Escuela de Archivos para Iberoamérica (Espanha) e realizou o curso de Introdução à Política e Tratamento dos Arquivos da PUC-SP. É autora de artigos e trabalhos apresentados em eventos relacionados à área de Arquivologia.
- [**]Especialista em Pesquisa/Apoio de Museu, responsável pela área de Conservação do Arquivo Geral da USP. Graduada em História pela Unesp/Assis e Técnica em Museu pelo Centro Paula Souza. Cursou Preservação, Conservação e Restauro de Documentação Gráfica pela Escola SENAI "Theobaldo De Negris", em parceria com Associação Brasileira de Encadernação e Restauro e, por 5 semestres, a Graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais Móveis na Universidade Federal de Pelotas (não concluída). Ministra palestras e oficinas na área de Conservação de Documentos, com ênfase em suporte papel, junto à comunidade USP.
- [1] Esclarecemos que neste artigo o termo “não lugar” institucional é utilizado para evidenciar a ausência dos arquivos na estrutura universitária, bem como sua invisibilidade quando da tomada de decisões estratégicas e políticas. Sabemos que o termo permite outras acepções de caráter filosófico, antropológico etc., no entanto o utilizamos apenas com base em nossas experiências práticas, recolhidas no âmbito da Universidade.
- [2] Decreto nº. 6.533, de 4 de julho de 1934. Aprova os Estatutos da Universidade de São Paulo; Decreto nº. 7.065, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Decreto nº. 7.066, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, de Piracicaba, da Universidade de São Paulo; Decreto nº. 7.067, de 6 de abril de 1935. Decreto nº. 7.068, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo; Decreto nº. 7.069, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo; Decreto nº. 7.071, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo; Decreto nº. 7.392, de 25 de setembro de 1935. Aprova o Regulamento da Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade de São Paulo.
- [3] Portaria Interna do Departamento de Administração/RUSP de 28/07/1948.
- [4] Portaria do DA nº. XXIV de 27/10/1949.
- [5] Portaria nº. 10, de 17/02/1949.
- [6] Informações verbais fornecidas, em maio de 2018, por Marli Marques de Souza Vargas, servidora da Universidade desde 1979.
- [7] Na Universidade de Seção a Serviço existe diferenciação de tamanho (do menor ao maior, sendo o Setor a divisão estrutural intermediária) que é acompanhada pela respectiva destinação de verba orçamentária.
- [8] Cabe notar, no entanto, que apesar desta área da Reitoria também ser “enxugada”, foi uma das poucas que manteve, separadamente, os três setores: Expediente, Protocolo e Arquivo. Este Arquivo, especificamente, existe na estrutura USP desde 1947, e está na origem, do hoje, Arquivo Intermediário da Reitoria.
- [9] Disponível no site do Departamento de Recursos Humanos da USP, no endereço: http://www.usp.br/drh/trabalhe-na-usp/carreiras-usp/carreira-funcionarios/plano-de-classificacao-de-funcoes-pcf/
- [10] Na USP houve uma fase em que muitos alunos assumiram funções de nível básico, no entanto, muito rapidamente, diante de novo processo seletivo para vagas de nível médio ou superior, migravam desta primeira função..
- [11] Johanna Smit, ao tratar da análise e descrição de documentos audiovisuais, associa as três profissões irmãs da organização da informação: arquivologia, museologia e biblioteconomia, denominando-as “as 3 Marias”, expressão já consagrada na área.
Referências
- BECK , Ingrid. Recomendações para a construção de arquivos. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Arquivos - Arquivo Nacional, 2000.
- BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. NR 15: Atividades e Operações Insalubres. Brasília, 2009a.
- BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego.NR 17: Ergonomia. Brasília, 2009b.
- FÉTIZON, Beatriz. A Universidade e sua alma endemoninhada. São Paulo: FEUSP, 2012.
- OGDEN, Sherelyn (Ed.). Meio ambiente. 2.ed. Rio de Janeiro: Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos: Arquivo Nacional, 2001.
- OGDEN, Sherelyn; GARLICK, Karen. Planejamento e prioridades. 2.ed. Rio de Janeiro: Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos: Arquivo Nacional, 2001.
- SÃO PAULO (Estado). Decreto nº. 6.283, de 25 de janeiro de 1934. Cria a Universidade de São Paulo e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 10 maio 1934. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/norma/?id=130436>. Acesso em: 26 mar. 2018.
- SÃO PAULO (Estado). Decreto nº. 6.533, de 4 de julho de 1934. Aprova os estatutos da Universidade de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 5 de julho de 1934. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1934/decreto-6533-04.07.1934.html>. Acesso em: 30 abr. 2018.
- SÃO PAULO (Estado). Decreto nº. 6.535, de 4 de julho de 1934. Estabelece o quadro de funcionários da Reitoria da Universidade de São Paulo e abre o crédito necessário ao pagamento dos vencimentos respectivos. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 5 de julho de 1934. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1934/decreto-6535-04.07.1934.html>. Acesso em: 30 abr. 2018.
- SÃO PAULO (Estado). Decreto nº. 7.065, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de maio de 1935. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1935/decreto-7065-06.04.1935.html>. Acesso em: 16 jul. 2018
- SÃO PAULO (Estado). Decreto nº. 7.066, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, de Piracicaba, da Universidade de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de maio de 1935. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1935/decreto-7066-06.04.1935.html>. Acesso em: 16 jul. 2018.
- SÃO PAULO (Estado). Decreto nº. 7.068, de 6 de abril de 1935. Aprova o Regulamento da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de abril de 1935. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1935/decreto-7068-06.04.1935.html>. Acesso em: 16 jul. 2018.
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- UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Departamento de Recursos Humanos. Plano de Classificação de Funções (PCF). Disponível em: <http://www.usp.br/drh/trabalhe-na-usp/carreiras-usp/carreira-funcionarios/plano-de-classificacao-de-funcoes-pcf/>. Acesso em: 16 jul. 2018.
- UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Reitoria. Departamento de Administração. Portaria DA nº. II, de 28 de julho de 1948. [Instruções referentes a normas processuais para o andamento de processos].
- UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Reitoria. Portaria nº. 10, de 17 de fevereiro de 1949. [Trata da obrigatoriedade de uso dos prefixos das unidades de serviço por todos os servidores].
- UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Reitoria. Departamento de Administração. Portaria DA nº. XXIV, de 27 de outubro de 1949. Normas processuais.