Jaime Antunes e Governança do Arquivo Nacional: 51 anos de vida em comum

Para dar mais elementos para a reflexão sobre a governança dos arquivos, a Revista do Arquivo entrevistou o mais experiente gestor de arquivos no Brasil, Jaime Antunes da Silva, que trabalhou durante 51 anos no Arquivo Nacional, sendo 23 anos como seu dirigente máximo. A entrevista foi realizada no dia 04 de setembro de 2018, com Marcelo Chaves, Solange Moraes e Camila Brandi.

Jaime Antunes

Jaime Antunes da Silva é Bacharel em Arquivologia pelo Arquivo Nacional em 1971, diploma validado pela UNIRIO e Bacharel e Licenciado em História, 1978, pela UFRJ. Professor do Curso de História da UERJ, regente das disciplinas de Arquivística e Paleografia, da Área de Teoria e Metodologia da História. Diretor-Geral do Arquivo Nacional de 1992 a 2016. Presidente do Conselho Nacional de Arquivos de 1994 a 2016. Presidente da Seção Brasileira da Comissão Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do Patrimônio Documental-COLUSO de 1996 a 2016. Presidente do Fórum de Diretores de Arquivos Nacionais do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) de 2003 a 2007. Presidente da Associação Latino-americana de Arquivos – ALA, de 2005 a 2007 e de 2011 a 2015. Presidente do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da UNESCO-MOWBrasil de 2006 a 2009. Presidente do Comitê Regional para América Latina e o Caribe do Programa Memória do Mundo da UNESCO-MOWLAC de 2007 a 2009. Diretor do Arquivo Histórico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Livros Publicados eletronicamente: ALA EL CAMINO RECORRIDO: Momentos que han construido su historia, Ciudad de México, Asociación Latinoamericana de Archivos, 2017. 295p. Em coautoria com Sara González Hernández (da Colômbia) e Virginia Chacón Arias (da Costa Rica) e Directorio de instituciones archivísticas nacionales de países de tradición ibérica en América, España y Portugal y de Legislaciones archivísticas nacionales de gestión y de acceso a la información pública, Ciudad de México, Asociación Latinoamericana de Archivos, 2017. 663p. Acesso: http://www.alaarchivos.org/publicaciones/


Formação e trajetória

Jaime Antunes
O Arquivo Nacional foi a minha primeira experiência no mundo do trabalho. Desde estudante do segundo grau eu já desenvolvia algumas atividades no Arquivo Nacional, levado por um professor de história. Ele achava que eu tinha alguma tendência a trabalhar com fontes, com pesquisa e que valia a pena me levar até o Arquivo Nacional para tomar conhecimento dessa instituição. Lá eu comecei a minha atividade quando tinha 17 anos e não tinha completado o segundo grau. Só deixei de trabalhar no Arquivo Nacional em fevereiro de 2016.

Durante todo este período eu experimentei diversas atividades, comecei como auxiliar de pesquisa, depois fiz curso de arquivologia, que era desenvolvido pelo próprio Arquivo Nacional e esse curso depois deu origem ao que é hoje o curso da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO.

Primeiro eu trabalhava como servidor/pesquisador na área de pesquisa do Arquivo Nacional, depois, na gestão do Raul Lima, que era um jornalista que assumiu a instituição nos anos 70, fui coordenar a área de documentação audiovisual e cartográfica do Arquivo Nacional. Então, o meu encargo, quando eu assumi essa coordenação de documentos audiovisuais e cartográficos, era possibilitar uma identificação extensiva do acervo e empreender todo um trabalho de identificação de uma massa documental ainda sem estar integralmente processada. Era uma documentação de todo processo da expansão ferroviária no Brasil vindo do século XIX e um pedaço do século XX.

Quando Celina Vargas assume o Arquivo Nacional nos anos 80, ela me convida para dirigir a área de documentação escrita, que era o maior setor de documentação da Instituição e que também estava passando por um processo de identificação, de implantação de técnicas modernas de classificação e controle. Eu fico nessa unidade durante os 10 anos da gestão Celina, e com a chegada de Maria Alice Barroso em novembro de 1990, ela me chama para ser seu assessor de gabinete e substituto eventual e aí eu sou designado assessor da direção geral.

Direção: “movimento” pró Jaime

Eu assumi a direção do Arquivo Nacional não por uma questão política, foi uma coisa do acaso, eu era o substituto eventual de Maria Alice Barroso, que ao sair demitida já tinha deixado com o ministro da Justiça a sua carta de demissão. Isso ela me confidenciou logo que
“Eu assumi a direção do Arquivo Nacional não por uma questão política, foi uma coisa do acaso”

começou a gestão dela. Portanto, quando o Coronel Jarbas Passarinho deixa o Ministério, ela também foi exonerada.

O Arquivo Nacional estava ligado ao Ministério da Justiça. Jarbas Passarinho é substituído pelo ministro Célio Borja, que era do Rio de Janeiro, que conhecia o Arquivo Nacional e na primeira oportunidade que teve foi procurar o Arquivo Nacional para conversar comigo, enquanto diretor interino e substituto. Ele disse que soubera da demissão da Maria Alice, que ele tinha muita consideração por ela e que ele a consultaria se ela não teria interesse em voltar para o Arquivo Nacional. Maria Alice disse “Não, eu acho, ministro, que o Arquivo Nacional deve ser dirigido pelo meu substituto, pelo profissional que lá está, que tem atuação bastante intensa na área, já presidiu a Associação dos Arquivistas Brasileiros e houve um movimento da Associação em trabalhar pela nomeação dele, Jaime Antunes, que era o s eu presidente”. O Celio Borja, então, aquiesceu a indicação dela e me designou diretor permanente.

Foto: TOMAZ SILVA/ AGÊNCIA BRASIL. Extraída do site El Pais 06/01/2018.

Pátio do Arquivo Nacional, no centro do Rio de Janeiro.

Canal direto com ministros, mas “sem cacife político”

E todas as vezes que o Arquivo Nacional tinha dificuldades, eu contatava diretamente o ministro e dizia “o Arquivo está passando por tal dificuldade, teve um problema grave de uma infiltração e necessita urgentemente de recursos”. O ministro, na primeira oportunidade, passava no Arquivo Nacional e consultava-nos quanto que era necessário para fazer frente aquilo, pegava o telefone e ligava para a área financeira do Ministério e dizia, “o Arquivo Nacional está precisando de um recurso de tal monte para fazer frente a uma recuperação emergencial em um dos seus prédios”, e o dinheiro vinha. Os outros ministros que sucederam, e foram muitos que assumiram a pasta da Justiça, era uma pasta de alta rotatividade, a primeira coisa que eu fazia era procurar o ministro, me apresentava enquanto diretor do Arquivo Nacional e dizia que o cargo estava à disposição do ministro para ele fazer a destinação que ele quisesse. Com todos os ministros esse rito foi repetido, entretanto, como os ministros que tinham tido muito boas referências da gestão do Arquivo Nacional, que nunca passara por nenhuma diligência condenatória do tribunal de contas, da controladoria da união e que, portanto, o que garantia as boas práticas na gestão dos recursos públicos, assim viam com interesse a minha permanência à frente da instituição.

Então, eu não tive nenhum cacife político, nunca me vali de nenhum contato político para me reter no cargo e tinha gosto por aquilo que eu fazia,passava

horas dentro da instituição, me envolvia não só nas áreas técnicas, como na área administrativa, e fomos construindo uma excelência no trabalho de controle e gastos dos recursos públicos para que pudéssemos realizar obras de monta, de recuperação,
“...eu não tive nenhum cacife político, nunca me vali de nenhum contato político para me reter no cargo”

logicamente sempre contando com o apoio inconteste dos ministros que lá passaram.

Formação da prática e do pensamento arquivístico

Jaime Antunes

O curso de arquivologia, o de biblioteconomia e o de museologia tiveram o seu embrião dentro das próprias instituições de memória, o do Arquivo Nacional já precocemente desde início do século XX, o de museus começou com a criação do Museu Histórico Nacional e o de biblioteconomia na Biblioteca Nacional. Estes três cursos nasceram juntos, portanto, e cada um era responsável por ministrar determinadas disciplinas. Mas, eu me engajei nesse curso nos finais dos anos de 1960 e início dos 70 e aí eu já desenvolvia algumas atividades na área de pesquisa do Arquivo Nacional. Depois percebi que eu precisava ir além de um conhecimento técnico e necessitava ter uma dupla formação, então eu fui fazer o curso de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro, antiga Universidade do Brasil.

No Brasil, a gente já vinha tomando ou experimentando alguns surtos de desenvolvimento na arquivística, ou arquivologia, começado coincidentemente dentro do Arquivo Nacional, ainda quando surge a Associação dos Arquivistas Brasileiros (AAB), num movimento de tentar buscar caminhos para reafirmar a profissão de arquivista, na medida em que não havia tantos cursos de formação profissional nos anos 70.

Buscar caminhos para a arquivologia

Quando eu assumo a direção do Arquivo Nacional nos anos 90, o arquivo já experimentara um surto de desenvolvimento e modernização, a partir da gestão de Celina Vargas do Amaral Peixoto, que começa nos anos 80. Nos anos 70, embora o Arquivo Nacional não tenha tido um grande desenvolvimento na arquivologia, ele vinha como um movimento sucessor do impulso que tentara fazer José Honório Rodrigues à frente do Arquivo Nacional nos finais dos anos 50 e início dos 60, quando ele tenta dar um impulso na instituição, não só no tange à pesquisa, mas também ao conhecimento da arquivologia. Portanto, quando eu assumo nos anos 90, a arquivologia no Brasil já vinha trazendo na sua bagagem pequenos fluxos de desenvolvimento que se densificam nos anos 80 com a possibilidade que a direção do arquivo percebeu de atrair para o seu quadro funcional jovens profissionais de diversas instituições, cariocas principalmente, através de contratos no seu programa de modernização. Esse surto de desenvolvimento ocorrido nos anos 80 possibilitaram buscar caminhos para arquivística. Primeiro, introduzir uma preocupação no país com a gestão documental. Isso foi surgindo dentro dos grupos de discussão no Arquivo Nacional e com a possibilidade que Celina Vargas encontrara de ter inconteste apoio do Conselho Internacional de Arquivos. Para cá fluíram muitos profissionais especializados e o Conselho deu um apoio fundamental para o Arquivo Nacional. Dos anos 80 para cá, fluíram profissionais consagrados da arquivística internacional que vieram discutir com o Arquivo um projeto de lei, buscar alternativas para se ter a restauração de um prédio para que fosse sede definitiva da instituição, enfim, caminhos que norteariam a busca desse desenvolvimento. Nesse intervalo de tempo, o Arquivo, buscou introduzir um curso de extensão ou de especialização em arquivos permanentes, com apoio do Conselho Internacional de Arquivos. Esse curso ocorreu durante duas edições e depois não mais foi empreendido.

Foto/Informativo eletrônico do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), datado de 10/06/2015

Jaime Antunes em visita ao APERS

Quando eu assumo o Arquivo Nacional, eu tinha como metas não só concluir atividades que eu considerava fundamentais da gestão anterior, da Celina. Primeiro, recuperar o patrimônio, o prédio tombado que estava cada vez mais em ruinas; ao mesmo tempo, trabalhar com o processo que viria a dar na regulamentação da lei 8.159, sancionada em 8 de janeiro de 1991. Portanto, estava formada uma estrutura que eu usaria para desenvolver todo o meu processo de visão de administração da principal instituição arquivística do país.

No Ministério da Justiça, mas com lei de arquivos

Jaime Antunes

Na gestão de Maria Alice, que ficou muito pouco tempo à frente do Arquivo Nacional, o processo de tramitação da lei 8.159 chega ao fim no Congresso Nacional e o ministro da Justiça, nesse intervalo de tempo, exatamente em novembro, faz contato com a diretora que tinha sido recém nomeada e diz que tomara conhecimento do projeto de lei que previa que o Arquivo Nacional passaria para a Presidência da República, e que ele não admitiria que por um projeto de lei o Arquivo Nacional saísse do âmbito do Ministério Justiça; então, que ele indicara à diretora geral do arquivo que, ou se emendaria esses dispositivos da lei no Congresso Nacional, ou a lei não sairia.

Então, Maria Alice levou o ultimato do Coronel Jarbas Passarinho para a equipe inteira que coordenava todas as áreas técnicas da instituição. Nós tomamos, então, uma posição e indicamos à diretora de que o corpo técnico da instituição concordava que era melhor ter uma emenda à lei,
“...era melhor ter uma emenda à lei, mantendo o Arquivo Nacional subordinado ao Ministério da Justiça, do que não ter a lei”

mantendo o Arquivo Nacional subordinado ao Ministério da Justiça, do que não ter a lei, na medida em que o país tinha uma carência bastante grande de um ato normativo que regulasse as questões de gestão.

Situação “exótica” do Conarq

Jaime Antunes
O dispositivo da lei ficou uma coisa insólita, uma coisa como uma certa excrecência legislativa, desculpe o termo, porque o Conselho Nacional de Arquivos foi pensando como uma instituição superior, que seria um órgão político, que defenderia políticas para as questões arquivísticas do país, tanto públicos quanto privados, e, de repente, ele acaba com essa emenda a ser feita dentro do Congresso Nacional, onde dizia que o Conselho Nacional de Arquivos seria um órgão também da Presidência da República. Ficou o Conselho Nacional de Arquivos vinculado ao Arquivo Nacional. A instituição que tinha por função e competência acompanhar e implementar a política nacional de arquivos passa a ser o órgão que vincula o órgão superior, a instancia superior que definiria as políticas. Então, fica uma coisa meio exótica. Assim ficamos, mas era melhor ter a lei do que não tê-la, e, logicamente, isso definiu o perfil que o Conselho Nacional de Arquivos assumiu a partir da sua regulamentação em 1994.

O Conselho Nacional de arquivos é instalado, em início de dezembro de 1994, pelo Ministro da Justiça Alexandre de Paula Dupeyrat Martins. Logo na reunião de instalação criam-se diversas câmaras técnicas que eram fundamentais, que reuniriam profissionais de diversas instituições para dar plena discussão de questões extremamente graves para a questão arquivística.

Governança: atividades meio para o bem das funções finalísticas

Jaime Antunes

Falta gestão dentro das instituições. Você pode ter um profissional com grande conhecimento técnico, mas você tem que saber, efetivamente, como gerir orçamentos, como construir orçamentos, como fazer planejamentos, como definir estratégias, o que que vai ser feito primeiro, ou seja, você tem que ter sensibilidade e perceber que uma instituição que não tiver uma boa área meio funcionando, você não terá uma boa área fim desenvolvendo atividades responsáveis. Portanto, a área meio é fundamental; da mesma maneira que se você não tem uma boa gestão para a documentação primária você vai ter péssimos espólios informacionais para o futuro, porque, com uma boa gestão dá para você

avaliar adequadamente, eliminando aqueles documentos que realmente não tem valor para absorver aqueles que sejam a essência da informação. Portanto, eu acho o tema governança sempre fundamental, haja vista o que ocorreu com o Museu Nacional, que não recebeu da UFRJ os fundos financeiros necessários à sua recuperação e salvaguarda. Eu acho que, de uma maneira geral, os arquivos carecem de informação de um programa adequado de gerenciamento dos seus recursos,
“...tem que ter sensibilidade e perceber que uma instituição que não tiver uma boa área meio funcionando, você não terá uma boa área fim desenvolvendo atividades responsáveis”

um adequado gerenciamento da sua área fim e do adequado gerenciamento para a saída da informação. Porque, se não estão harmonizados o processamento da informação, a entrada da informação, o processo desse conteúdo e a saída dessa informação, os arquivos não se divulgam.

Conarq: resoluções para boa governança

Jaime Antunes

Eu não tenho dúvidas de que nas diversas resoluções do Conselho toda essa filosofia sobre governança perpassava, ou seja, era importante alertar a todos os gestores, e o Conselho regulava não só para o poder executivo federal, mas também para os arquivos de uma maneira geral, e que os arquivos deveriam se apropriar disso. O arquivo para funcionar como uma instituição de guarda e preservação ele não pode ser visto como um deposito só de documentos, mas como uma instituição dinâmica. Ao mesmo tempo, alertar que ela é parte integrante de um processo da gestão do Estado, quer dizer, ela subsidia a gestão do Estado. Tanto é assim que, de uma maneira geral, tivéssemos com mais sistemática empreendido os programas de gestão de documentos dentro da administração pública, nós teríamos menos problemas na implantação da lei de transparência pública. Embora a lei de acesso à informação do nosso país fale de informação, a gente percebe claramente que a informação está contida num documento, em um suporte, portanto, informação aí é sinônimo de documento de arquivo.

Então, eu acho que essas disposições legais reiteradas em mais de uma resolução do Conselho Nacional de Arquivos, no sentido de que as instituições arquivísticas públicas têm de nascer bem, ou seja, ela tem que

estar bem posicionada, ela tem que ter a dotação orçamentaria própria, ela tem que ter autonomia administrativa e financeira para poder fazer uma boa gestão da sua função. Porque a instituição pública moderna deve ser vista como cabeça de um sistema, ela não é uma instituição em si mesma, ela é uma instituição cabeça de um sistema e que deve ter capacidade de orientar de maneira adequada não só os serviços arquivísticos governamentais, mas também
“...tivéssemos empreendido os programas de gestão de documentos dentro da administração pública, nós teríamos menos problemas na implantação da lei de transparência pública”

servir de modelo para outras instituições arquivísticas públicas por todo o país.

Governança e dinâmica partidária: o Arquivo é instituição técnica estratégica

Jaime Antunes

O que eu acho fundamental, primeiro que a instituição seja respeitada pelo seu superior. Se você não conta com um apoio do seu chefe, que, no caso, correspondia a um ministro de Estado, realmente fica muito difícil você ampliar o seu orçamento.

A única vez que o Arquivo Nacional foi usado politicamente, foi quando o ministro da Justiça era o José Eduardo Cardoso, que era ministro da Dilma e que ele dissera que havia uma pressão enorme pelo impeachment da presidente, e que talvez tivesse que se valer de cargos da administração pública para tentar frear a voracidade com que os partidos estavam por cargos públicos e que se eu via... “eu não posso fazer nada, eu sou demissível ad nutum, portanto, eu não tenho o poder de permanecer”. E ele me disse, “se isso tiver efetivamente que acontecer, como é que você quer que saia o seu ato?”, “eu quero que o meu ato saia que eu fui demitido porque eu não estou pedindo pra sair”. Então o ministro assume todos os ônus da demissão, portanto será demitido. Ficamos assim combinados, isso levou ainda um tempo rolando, e no fim, efetivamente, a proposta foi efetivada, mas o governo fora traído porque o partido ao qual pertencia o personagem que assumiu o Arquivo Nacional votou a favor do impeachment da Dilma, portanto, deu o golpe e, no fim, a partir daí, o arquivo passou a ser especulado politicamente.

O Arquivo Nacional é uma instituição técnica altamente especializada que, pelo seu desenvolvimento, cria uma visão estratégica para a construção de um país democrático, responsável pela implantação no país de um programa geral de gestão, de uma articulação efetiva com o governo eletrônico, ao mesmo tempo com as instâncias de governo que norteiam a questão da implantação de sistemas informatizados aplicados à gestão de arquivos. De repente, a instituição passa a ser assumida por pessoas que não têm preparo técnico, que não tem nenhum olhar de gestão e, portanto, logicamente, o arquivo passou incólume durante toda a minha gestão e não foi tensionado por nenhum partido para que assumissem cargos técnicos ou fossem designados agentes políticos para assumirem instâncias técnicas da instituição. Eles poderiam ser ligados politicamente ao PT, mas desde que tivessem aptidão para as atividades institucionais.

A questão é reafirmar o arquivo como uma instituição técnica, como uma instituição estratégica para o Estado moderno. Eu preciso ter uma instituição arquivística forte, com condições de assumir e ser respeitada na sua voz, ter voto e ter voz institucionalmente, mas, para isso, é preciso que a instituição seja restruturada, tenha uma boa estrutura técnica, tenha bons orçamentos etc.

Pelo o que eu acompanho, o Arquivo perdeu orçamentos, perdeu parte da sua atividade. Eu não sei o caminho, eu só sei que sou muito otimista, eu acho que o que foi feito está registrado. Eu não sei quanto tempo isso pode durar, quantas outras gestões de ordem política sem nenhuma ligação com a instituição perdurará.
“...A única vez que o Arquivo Nacional foi usado politicamente, foi quando o ministro da Justiça era o José Eduardo Cardoso, que era ministro da Dilma”

Governança em tempos de crise

Jaime Antunes

Primeiro, num país em crise não é possível que os arquivos passem incólume. Então, o país está em crise, não há continuidade, não há verba suficiente, o Estado tem que entender que o investimento em arquivo também não é barato, investir em preservação digital também não é barato e, portanto, não vejo, pelo menos nesse momento, possibilidade com a crise de gestão que vivenciamos, que as instituições arquivísticas possam estar plenamente satisfeitas com o que vem desenvolvendo. O Arquivo Nacional sofre reveses, mas acredito que a maior parte das instituições brasileiras estejam sofrendo o mesmo, porque se você tem uma visão hoje da administração pública de que tem que economizar, tem de retirar dinheiro e, logicamente, as instituições menos prestigiadas são as que sofrem mais, orçamentariamente.

Se dentro da estrutura do Ministério da Justiça o Arquivo Nacional é a instituição menor, tem vantagens e desvantagens. Tem vantagem porque ficam sempre penalizados de cortar orçamento, do menor orçamento do Ministério e assim sempre foi, porque é uma instituição pequena, é o menor orçamento. Mas, quando há uma determinação de um corte percentual linear no orçamento pequeno, você corta o osso, então, não há o que você retirar para manter. As folhas de pagamento são altas e, ao mesmo tempo, sobra pouco dinheiro para investimento, para você repor equipamento. Durante muito tempo o Arquivo teve muito apoio e conseguiu montar uma boa infraestrutura de tecnologia da informação, pode implantar repositório de documentos digitais, que foi uma fortuna, mas que o ministro disse que era importante fazer e bancou dinheiro para sua instalação.

O lugar dos arquivos

Jaime Antunes

Olha, da mesma maneira dos anos 80 o Arquivo Nacional quando se desenvolvera a minuta do projeto de lei de arquivos, ele já indicava que o lugar do Arquivo Nacional era no órgão central, porque se o Arquivo Nacional tem o híbrido de ente cultural e ente de gestão. Entretanto, de uma maneira geral, os arquivos nascem primeiro para atender uma administração e não diretamente a cultura. Portanto, na minha opinião, o lugar melhor do Arquivo Nacional era, efetivamente, onde esteve de junho de 2000 até 2011, na Casa Civil da Presidência da República, porque lá o Arquivo Nacional, quando ele necessitava ter implantação de uma normativa era dado pelo ministro da Casa Civil, que é o de maior influência no governo no perfil do colegiado de ministros. Portanto, nós produzíamos mais efeitos quando vinculados à Casa Civil da Presidência da República do que ao Ministério da Justiça.

Sequestro de ônibus e reforma no prédio

O Arquivo Nacional obteve recursos no período em que esteve na Casa Civil para reformar o conjunto arquitetônico tombado do Arquivo Nacional, no meio de uma crise de segurança pública no país, que coincide com a morte da professora Geisa e do Sandro, que eu os considero os mártires da reforma do prédio do Arquivo Nacional. Refiro-me ao assaltante e a professora no ônibus 174, que foi sequestrado no Rio de Janeiro, e que, por falta de habilidade da polícia, ambos foram mortos. O que aconteceu? Era governo do Fernando Henrique e ele definiu, por uma medida provisória, pela implantação de um programa de segurança pública para o país. E nas disposições finais desse programa vinha indicado que o Arquivo Nacional e a Imprensa Nacional sairiam do Ministério da Justiça e passariam para a Presidência da República, ou seja, foi numa crise que o Arquivo Nacional foi catapultado do Ministério da Justiça. A partir daí o ministro da Casa Civil, Pedro Parente, visita o Arquivo Nacional e decide que ele vai apoiar a instituição e que vai ajudar a reformar o prédio que era da antiga Casa da Moeda, porque o Arquivo jamais teria recurso para esse fim. Então, ele indaga na reunião, junto com a Associação Cultural do Arquivo Nacional: “se vocês já têm o projeto da reforma - e o Arquivo Nacional já tinha o projeto para a reforma - eu me encarrego de arrumar os recursos financeiros para poder fazer frente a isso”. Com isso, surge a necessidade de ampliação do seu quadro de funcionários, porque o Arquivo ganha o triplo da área que ele ocupava anteriormente e não tinha gente.

“...o lugar melhor do Arquivo Nacional era, efetivamente, onde esteve de junho de 2000 até 2011, na Casa Civil da Presidência da República ”
Na época foi assinado um termo de cooperação internacional entre o Casa Civil da Presidência da República e a UNESCO. A UNESCO entra no cenário e a Casa Civil passa pra Unesco cerca de 15 milhões de reais, isso em 2002, para desenvolver um programa de modernização para o Arquivo Nacional completar a obra.

Precisava de infraestrutura para ocupar o prédio e ao mesmo tempo contratar equipes durante um período, até que se avançasse mais as gestões para realização de concurso público. No final de dezembro de 2005 definiram-se as vagas que iriam para o Arquivo Nacional, eram cerca de 260 vagas de profissionais entre arquivistas, técnicos em assuntos culturais, técnicos em assuntos educacionais, técnicos de arquivos, agentes administrativos, médicos, consultores jurídicos, enfim uma gama de profissionais do grande carreirão de cargos do serviço público, esse concurso foi feito em maio de 2006 e os novos técnicos assumiram em agosto desse mesmo ano.

Nós éramos antes do concurso público, junto com os profissionais contratados por meio da Unesco quase 400 funcionários.

“Muda Arquivo”: governança e gestão de conflitos

Jaime Antunes

Para você gerir uma instituição, embora você seja egresso deste quadro, você tem que saber dizer não, quando eu não concordava com uma coisa eu dizia não, quando eu não tinha certeza absoluta de que algo ia dar certo, eu dizia não, porque o papel do gestor não é só dizer sim a todas as coisas, eu tinha que saber usar e dosar o não, e nem sempre isso era adequadamente identificado. Os meus últimos dois anos de gestão foram muito desgastantes, eu tinha que ter muito savoir faire para poder levar isso adiante, mas isso jamais me esmoreceu porque eu tinha certeza de que eu estava com a consciência tranquila, que eu tinha feito esforço para ser equânime com todos, para dar tratamento igual para todos e quando os servidores, capitaneados pela

Associação dos Servidores do Arquivo Nacional, ASSAN, embora a maior parte dos servidores não integrasse o quadro, deflagravam um processo de greve, eu ia
“...Para você gerir uma instituição, você tem que saber dizer não”

verificar se a greve tinha seguido o rito que tinha sido aprovado, que era de utilizar para o serviço público as mesmas regras da iniciativa privada, porque tinha que haver uma notificação previa, tinha que se definir que quantitativo de servidores iam atender as atividades etc. Se isso não era cumprido eu notificava o Ministério da Justiça e notificava a Advocacia Geral da União que dava tramite para identificar se a greve era justa, se era regular ou irregular e, na maioria das vezes, a greve foi considerada ilegal, porque efetivamente não cumpriam o rito. É um direito de protestar, mas desde que todos sigam o rito, e seja garantido o direito de ir e vir na instituição também deve ser do servidor que não deseja fazer a greve. Nem sempre isso era efetivamente compreendido e logicamente começou um movimento do “muda Arquivo”, porque me consideravam velho demais, ultrapassado demais e que tinha que ser “muda Arquivo”, como se uma negação de que a idade pode ser uma negativa do que você perdeu a capacidade de refletir e raciocinar, e, efetivamente, deu no que deu, o “muda Arquivo”, efetivamente.

Governança: gestão e preservação

Jaime Antunes

A primeira coisa que eu fiz quando o Arquivo Nacional recebeu as chamadas Funções Comissionadas Técnicas (FCT’s), que eram aquelas primeiras gratificações que vieram do Ministério do Planejamento, eu disse que eu ia constituir uma área de gestão forte, então, reservei as maiores FCT’s para a equipe de gestão de documentos. A gestão de documentos é estratégica para a instituição, porque para recolher na instituição tem que saber como será recolhida, nenhum documento entra na instituição sem que ele não esteja devidamente organizado, descrito e controlado. Portanto, eu preciso de uma gestão forte. Efetivamente, transferi uma equipe que funcionava junto ao setor de pesquisa, mas que levantava dados e informações da estrutura da administração pública federal. Eu falei, eu preciso da equipe do MAPA [1] trabalhando em estreita cooperação com a equipe da gestão, porque eu preciso saber qual é a gênese histórica dos órgãos produtores de documentos da administração pública, desde a origem mais remota até o presente.

Isso ocorre em 2002, porque aí toda a equipe de pesquisa do MAPA foi estruturada e as pessoas puderam se juntar; fiz reuniões no que era o então auditório no prédio F, ainda nós não tínhamos ocupado o prédio restaurado, para gente discutir a questão da estratégia da gestão de documentos para a instituição. Porque eu via primeiro a gestão de documentos, pois ela é a face de entrada do arquivo, quer dizer, quem faz contato com os órgãos produtores é a gestão de documentos. Eu precisava de gente com capacidade, articulada, gente com discurso adequado que fosse devidamente preparada, e com isso nós fomos montando essa equipe. Havia gente especializada em avaliação de documentos, gente que

sabia perfeitamente a metodologia da construção de códigos e tabelas de temporalidade e uma equipe que foi sendo montada.
Não houve nenhuma reação contrária, porque todos os profissionais com formação universitária tiveram uma FCT de bom nível. Outras FCT’s de maior valor ficaram com as chefias e com o grupo de pesquisadores que não tinham nenhuma chefia imediata, mas que formavam esse núcleo duro da gestão de documentos dentro da instituição.
“...eu disse que eu ia constituir uma área de gestão forte (...) A gestão de documentos é estratégica para a instituição”

Governança: arquivo como lugar multidisciplinar

Jaime Antunes

Por uma contingência dos fatos, ou do destino, o Arquivo Nacional sempre teve convivência de arquivistas formados e arquivistas não formados, porque muitos funcionários, como agentes administrativos, foram estimulados a fazer os seus cursos universitários e muitos procuravam fazer o curso de arquivista, portanto eram arquivistas de direito, mas não podiam ser enquadrados como tal, porque eram funcionários de nível intermediário. No concurso, embora eu tivesse feito questão que tivesse o maior número possível de arquivistas, entraram também historiadores, sociólogos, químicos, biólogos e estes começaram a conviver. Eu acho que numa instituição, num arquivo histórico, um arquivo público tem que ter a convivência de profissionais de diversas especializações para que o trabalho seja harmonioso. Eu não acho que organização de arquivos seja uma coisa exclusiva do arquivista. E como havia muitos profissionais com uma sólida formação, com tempo de trabalho ou de missões etc., esses jovens profissionais também encontraram na instituição espaços de aperfeiçoamento para o seu conhecimento adquirido na academia.

Conarq como legado

Em nenhum momento eu lastimo que o perfil do Conarq, vinculado ao Arquivo Nacional, fosse técnico, porque o Brasil necessitava de tantas normas, tantas normativas de diversa natureza, que ia desde como avaliar ou de como preservar, ou como salvaguardar documentos já que nós temos hoje um legado considerável de normas e procedimentos técnicos, para organização ou descrição de um documento bem como para a boa gestão e preservação de documentos digitais. Portanto, eu acho que embora com as críticas que eram levantadas para o Conarq, que este não definia as políticas, mas ele discutia e aprovava um corpus de normas de grande importância para o pais. Eu acho também que uma política só com guidelines, ou com diretrizes, ou orientações não se firma em pé se não tem um bom arcabouço teórico metodológico construído, e isso a arquivologia brasileira o tem.

Então, eu acho que isso foi uma excelente contribuição do Conselho Nacional de Arquivos, embora ele seja fruto de um trabalho colegiado, mas eu não tenho dúvida de que uma parte dessas conquistas se
“...Eu não acho que organização de arquivos seja uma coisa exclusiva do arquivista”

deve também à minha determinação em fazer.

O Museu Nacional somos nós

Jaime Antunes

Eu acho que os governos têm que estar sensibilizados para esse fim. Eu li recentemente uma entrevista de que nos planos de governos dos atuais candidatos à Presidência da República o termo ‘museus’, não é nem ‘arquivos’, aparece no programa da Marina [REDE] e do PT, nenhum outro plano de governo se dedica a isso. Então, enquanto os governos não vislumbrarem essas instituições e que estas instituições museus, arquivos e bibliotecas são parâmetros de desenvolvimento, eu acho que os arquivos terão sempre que lutar com muita dificuldade para garantir que eles estejam em condições adequadas, porque muitas vezes as dotações orçamentarias que lhe são destinadas são ínfimas, mal dão para manutenção simplista do órgão e, portanto, neste momento, eu acho que nos arquivos, museus e bibliotecas que não tenham se modernizado, que não estejam em equipamentos modernos, construídos especificamente para esse fim, que já tenham sido dotados de sistemas de detecção e extinção de sinistro, estão todas em risco, literalmente todas em risco. Que a tragédia seja um alerta e que esse alerta não seja esquecido e que essa perda deste patrimônio, que não é só do país, é da humanidade, se perdeu tudo e anos e anos de pesquisa acadêmica desenvolvida por cientistas que se dedicavam, porque é a instituição científica mais antiga do nosso pais. Tem que se se manter essa chaga acessa. O incêndio foi extinto, mas a gente tem que criar movimentos contínuos para que isso não se apague jamais da memória do povo brasileiro, e quem nunca foi ao museu ouviu falar de um museu queimando e que perda tem a perda de qualquer órgão patrimonial. Portanto, eu acho que o museu como missão continua vivo, a partir das cinzas e que, de uma maneira geral, isso sirva de elemento de lembrança aos governantes brasileiros para que as instituições patrimoniais, culturais arquivos, bibliotecas e museus têm que ser dotados de autonomia administrativa e financeira, tem que ter orçamentos, tem que ter equipamentos adequados, enfim tem que ter estrutura que preserve esse patrimônio do presente para o futuro.

Mas eu tenho confiança de que estamos no caminho e espero que seja duradouro para que a gente possa ter, no olhar dos novos governantes, com políticas mais adequadas para preservação de nosso país.

“...enquanto os governos não vislumbrarem essas instituições e que estas instituições museus, arquivos e bibliotecas são parâmetros de desenvolvimento, eu acho que os arquivos terão sempre que lutar com muita dificuldade (...) Que a tragédia seja um alerta”

Notas