Gislene Aparecida dos Santos[1]
Introdução
Sempre ouvi falar muito bem da Professora Eunice Prudente. Em meus anos de trabalho como docente da UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho), já recebia relatos sobre essa importante figura do Direito a quem, se não me falha a memória, somente conheci pessoalmente quando me tornei professora da USP (Universidade de São Paulo), em 2005, e passei a compor o corpo dos professores externos à Faculdade de Direito que orientam e lecionam no programa de pós-graduação em Direito, área de concentração em Direitos Humanos.
A partir desse momento, usufrui da companhia da Professora Eunice Prudente no NEINB – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro da Universidade de São Paulo (quando eu ainda era membro do Núcleo). Também, compus com ela algumas bancas de mestrado e doutorado. Pude aprender muito com ela tanto por sua postura íntegra e correta de docente quanto por sua perspectiva crítica em relação às questões jurídicas em defesa dos direitos e do Direito, de modo geral, e dos direitos negados à população negra e às mulheres negras, de modo particular.
Ao longo desses anos, também pude observar o afeto e admiração de seus alunos pela mestra que conhece em profundidade o seu ofício e transita com desenvoltura pela área acadêmica (teórica) e jurídica (prática).
Em diferentes oportunidades, pude ouvir da professora Eunice sobre o valor que ela atribui aos advogados, no complexo âmbito dos operadores do direito (se é que eu posso falar desta forma). Em uma escala em que os juízes estariam no topo e, talvez, os advogados na base, a professora sempre solicitava nas bancas que tive oportunidade de dividir com ela, para que os alunos e alunas não se esquecessem da importância dos advogados na construção da justiça e em fazer o direito.
Sempre me pergunto como teria sido para ela ser a única docente negra em uma Faculdade associada a valores controversos como o é a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Se lá podemos encontrar baluartes do pensamento democrático, inclusivo e de respeito aos direitos humanos dos negros, das mulheres e de todos os vulneráveis, também lá, podemos observar o apego à tradição que, muitas vezes, foi e é responsável pela opressão desses mesmos vulneráveis. Na USP, de modo geral, sabemos o quão complicado é ser parte do grupo de 21 docentes negros em um universo no qual 5.549 são brancos, segundo informações da própria instituição[2]
Quando aprecio o trajeto de Eunice Aparecida de Jesus Prudente, tanto dentro quanto fora da Universidade de São Paulo, não posso deixar de lembrar das palavras de Toni Morrison (1975) acerca do racismo.
The function, the very serious function of racism, is distraction. It keeps you from doing your work. It keeps you explaining, over and over again, your reason for being. Somebody says you have no language, so you spend twenty years proving that you do. Somebody says your head isn’t shaped properly, so you have scientists working on the fact that it is. Someone says you have no art, so you dredge that up. Somebody says you have no kingdoms, so you dredge that up. None of that is necessary. There will always be one more thing.
A professora Eunice não se deixou ou se deixa distrair pelas armadilhas do racismo e fez e faz o seu trabalho, enfrenta e supera as dificuldades, as micro agressões e luta pelo que acredita.
Isso nem de longe significa que ela não tenha enfrentando dificuldades, discriminações por ser mulher e ser negra em um mundo no qual o poder se concentra nas mãos dos homens e dos brancos. Certamente deve ter vivenciado inúmeras situações de violência racista. Apesar disso, como colega de instituição, nunca ouvi uma única palavra de Eunice Prudente que soasse como reclamação, lamúria ou lamento. Ao contrário, para quem chegou depois dela como eu, sempre e somente ouvi palavras de estímulo, reconhecimento e solidariedad
Nesse espaço que ocupo no livro em homenagem à professora Eunice Prudente, quero registar minha admiração e carinho por alguém que eu enxergo como exemplo de acadêmica e mulher negra dentro de uma Universidade na qual somos poucas. Ela foi a primeira a ocupar esse lugar, abrindo portas para que outras se sentissem menos solitárias nas batalhas diárias pelo reconhecimento de nossos méritos profissionais.
Quero me dirigir a ela atribuindo-lhe algumas identidades: a de feminista negra, a de advogada e a de acadêmica. Nenhuma dessas identidades exclui a outra porque Eunice Prudente tem uma longa história na Comissão da Mulher da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e na União de Mulheres de São Paulo, tem uma brilhante carreira acadêmica e sempre honrou sua identidade como mulher negra que também é. Também é importante salientar que não as tomo como identidades que se estabelecem de modo hierárquico como se uma fosse mais importante do que a outra. O que enxergo em Eunice Prudente é a somatória de talentos e virtudes que se expressam de forma múltipla por meio destas identificações que nos definem no mundo.
O ideal seria chegarmos rapidamente ao dia em que se pudesse falar de Eunice Prudente como a docente da Faculdade de Direito da USP que formou tantas e tantos jovens sem que sua condição de mulher e de negra indicasse o pertencimento a um grupo vulnerável, vítima de desigualdades e violências que desnudam o racismo e o sexismo da sociedade brasileira.
Entretanto hoje, quando pensamos em mulheres negras observarmos a situação de vulnerabilidade social que nos afeta em razão das discriminações por gênero e raça. Temos ciência disso. Mas gostaria de fazer uso das ideias de uma colega queniana, Njoki Wane, para oferecer um outro sentido para o termo mulher negra que, penso eu, mais se vincule aquilo que Eunice Prudente nos inspira.
Wane (2007) conceitua o feminismo negro como um quadro teórico que ilustra as experiências históricas, sociais, políticas, culturais e econômicas das mulheres negras que assumem uma perspectiva diaspórica, internacional.
A partir destas experiências focalizada na sabedoria, habilidades e esforços de mulheres negras, Wane definiu os princípios fundamentais do feminismo negro como sendo: a organização, o coletivismo, a resistência, o respeito mútuo, a produção de conhecimento, o armazenamento do conhecimento, divulgação da cultura, a reciprocidade, a auto-determinação, a resiliência, os cuidados com a comunidade, a maternagem, o fortalecimento mútuo, a auto-confiança e a espiritualidade.
Wane acredita que o termo “mulheres negras” captura uma heterogeneidade e diferenças complexas e dizem respeito a todas as mulheres negras que vivem em uma sociedade racializada e multicultural. Nessas sociedades, há uma intersecção de opressões em um espaço predominantemente branco, eurocentrado onde as mulheres negras são praticamente invisíveis.
No espaço predominante branco da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito da USP, não hesito em dizer que Eunice Prudente conseguiu congregar todas essas habilidades que a definiriam como uma feminista negra.
Além disso, nos lembra outra autora feminista e negra, Patrcial Hill Collins (1990) que uma das características distintivas do pensamento feminista negro é ressaltar que a mudança na consciência dos indivíduos é tão essencial para a transformação social das instituições políticas e econômicas quanto quaisquer outras. O autoconhecimento e o fortalecimento de estruturas subjetivas são importantes para a construção de sociedades justas e sem desigualdades. Por isso, os princípios assumidos pelas feministas negras em suas práticas antirracistas revelam uma preocupação ética que, quando assumidas, transformam as ações antirracistas de modo radical.
As ações da professora Eunice dentro do mundo do direito certamente evidenciam o que é mais importante na luta das feministas negras. Como docente, ela transforma as consciências de seus alunos, paulatinamente, e como advogada, atua para transformar as instituições em espaços nos quais possamos efetivamente encontrar justiça contra todas as formas de opressão e contra o racismo.
Por isso é fundamental sinalizar para o que se tem que enfrentar e superar sendo mulher e negra em instituições predominantemente brancas e masculinas.
A cultura na qual as mulheres negras vivem e são educadas constantemente pratica a descaracterização das culturas africanas e afrobrasileiras, de forma geral.
A situação das mulheres negras foi determinada tanto pelo impacto de sua condição de negras e como por sua condição de mulher. Esta dupla discriminação exige formas específicas de organização social com foco em questões psicossociais (reconhecimento da identidade negra, beleza, corpo), questões educacionais (valorização da tradição e da cultura negra) e questões políticas (reconhecimento de direitos para a população negra e denùncia do racismo institucional – estrutural). Por esta razão, os recentes movimentos sociais das mulheres negras conectam a luta pelos direitos das populações negras (homens e mulheres juntos) com demandas específicas para as mulheres ligadas à denúncia do privilégio da brancura e às injustiças associadas com a negação de autoestima e subalternização dos negros.
Os novos movimentos sociais entendem que nenhuma sociedade pode ser considerada justa ou democrática negando direitos de reconhecimento de qualquer identidade. Este é o objetivo de qualquer política de reconhecimento: primeiro, demonstrando os danos que as formas de negação de reconhecimento trazem para a imagem de algumas pessoas ou grupos, e em segundo lugar, construindo ferramentas epistemológicas e políticas para lutar contra as estruturas sociais que permitam a opressão racial e de gênero.
Uma sociedade que não é construída baseada no respeito e igualdade para todas e todos os cidadãos não é uma sociedade justa. A negação do reconhecimento às mulheres negras no Brasil nos mostra o quão longe a sociedade está de ser um lugar onde haja justiça para todos, porque priva parte deles não só do acesso a bens materiais, mas também de aprender e viver o amor de si, essencial para o autorrespeito e para se sentirem sujeitos de direitos.
Por sua trajetória, Eunice Prudente se colocou entre as mulheres que dedicaram a sua vida e o seu percurso profissional para a construção da sociedade que todas e todos queremos para nós e para nossos filhos e filhas. Uma sociedade que na justiça indique, de fato, o reconhecimento de direitos iguais para todas e todos. Uma sociedade na qual recorrer ao direito seja sempre igual a encontrar a justiça.
Referências
- HILL COLLINS, Patricia (1990) Black Feminist Thought. New York: Routledge.
- MORISON, Toni (1975), Portland State, Black Studies Center public dialogue. Pt. 2”, Maio, 30.
- WANE, Njoki. (2007). Black Canadian Feminist Thought: Imagining New Possibilities: In Massaquoi & Njoki Wane (ed), Theorizing Empowerment: Black Canadian Feminist Thought. Toronto, Innana Publishers.
- [1] Professora do curso de Gestão de Políticas Públicas, dos programas de pós-graduação em Direitos Humanos e pós-graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, todos da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos e Coordenadora do GEPPIS – Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para Inclusão Social – http://each.uspnet.usp.br/web/prof/geppis.
- [2] Dados de agosto de 2016, extraídos de https://uspdigital.usp.br/portaltransparencia/in%ADformacaoServidorRacaCor.