Márcia Hattori e Ana Tauhyl participam de projeto que envolve a análise de 1.049 ossadas humanas que foram descobertas em 1990, após denúncias, em vala clandestina no cemitério municipal Dom Bosco, no bairro de Perus, na capital paulista. O projeto se insere no trabalho de busca por desaparecidos políticos do período da ditadura militar implantada em 1964, após o Brasil ser condenado por leniência pela Corte Pan-americana de Direitos Humanos.
As historiadoras e arqueólogas Márcia Hattori e Ana Tauhyl são parte do grupo que pesquisou durante cerca de oito meses em documentos do APESP, especialmente os livros do Instituto Médico Legal (IML). Elas concederam entrevista à Revista do Arquivo em janeiro deste ano, onde descrevem com minúcia os trabalhos na área da antropologia forense, por meio da análise da ossada de Perus, e fazem importantes reflexões sobre o cruzamento de informações contidas em documentos de tipologias bem distintas e também sobre os arquivos. A Revista do Arquivo transcreveu parte da entrevista com o objetivo de divulgar a inusitada e interessante pesquisa desse grupo de trabalho. A entrevista completa está transcrita e poderá ser acessada em sua íntegra a quem interessar.
Histórico do (re)trabalho com as ossadas
Revista do Arquivo - O trabalho com os ossos remanescentes da vala clandestina de Perus[1] já tinha sido começado na década de 1990, ou seja, já teve todo um trabalho técnico com relação a essa ossada. Por que vocês estão retomando o trabalho? Tem algum descompasso nesse sentido?
Márcia Hattori A iniciativa partiu da pressão dos familiares de mortos e desaparecidos políticos sobre o governo para que essa retomada acontecesse. Até 2014 os remanescentes humanos relacionados à vala clandestina estavam abandonados, na espera de qualquer tipo de ação lá no columbário[2] do cemitério do Araçá. Na década de 1990 teve a abertura da vala, quando havia a possibilidade de as análises serem feitas pelo Instituto Médico Legal de São Paulo (IML), mas os familiares rechaçaram essa ideia justamente pela relação histórica do IML com órgãos de repressão da ditadura. E aí entram em cena os técnicos da UNICAMP e o médico legista Badan Palhares, que assumem a coordenação da análise desse material dos remanescentes humanos. Todos os ossos vão, então, para a UNICAMP, e lá, logo no início das análises, acabam sendo identificados dois desaparecidos políticos que estavam na vala clandestina. Os técnicos da UNICAMP utilizam uma metodologia que hoje é bastante questionada, que é a foto sobreposição de crânio, porque a identificação acaba não acontecendo. A foto sobreposição é uma técnica que precisa acontecer com outras técnicas. Hoje a gente usa o DNA, basicamente, para identificação. Em dado momento, não sabemos o porquê, a UNICAMP interrompeu os trabalhos. Badan Palhares sai da coordenação e a investigação para. Até que em 97 ou 98, não lembro exatamente o ano, os familiares, sem saber se as análises continuavam ou não, vão com o jornalista Caco Barcellos à UNICAMP e fazem uma denúncia. Quando eles chegam lá, os remanescentes humanos se encontravam em estado lastimável, de total abandono: sofreram com enchente, estavam em sacos de lixo hospitalar em grande parte abertos, misturados, tinha caixa com vários crânios sem qualquer identificação, os sacos estavam todos juntos e empilhados com cadeiras de madeira, todas em cima dos sacos.
A partir de então, foi adotada uma solução paliativa, que era a remoção dos ossos para o columbário do Araçá – local que não era o mais adequado. E aí começa uma articulação com o Instituto Oscar Freire e com Daniel Munhoz, professor da Faculdade de Medicina da USP e, à época, diretor do IML. Mas o processo para novamente. E aí só em 2005 o Ministério Público entra com uma ação civil pública para responsabilizar tanto as instituições quanto os coordenadores. A UFMG é a única é responsável pelo exame de DNA no período. A UNICAMP, a USP e os coordenadores, o Badan Palhares, o Daniel Munhoz, todos esses envolvidos são processados nessa ação civil.
Revista do Arquivo - Por negligência...
Márcia Hattori Por negligência, exato. E aí o que acontece é que o Ministério Público começa a tomar a frente disso, pegando a documentação que estava lá, pois havia a possibilidade da identificação de mais um desaparecido, mandando amostras de DNA para um laboratório de genética para tentar fazer a identificação. E nisso eles conseguem identificar um outro desaparecido que é o Flavio Carvalho Molina. Mas, sempre nessas ações bem pontuais. E aí, em 2011, a Polícia Federal faz umas exumações, tanto na Vila Formosa quanto em Perus, para ver se acham sepulturas individuais de algumas pessoas que suspeitávamos estarem enterradas nesses locais. Em 2013 a Associação Brasileira de Anistiados Políticos - ABAP consegue contratar a equipe argentina de antropologia forense para tentar analisar 21 caixas que estavam no Araçá, relacionadas à vala clandestina, e para tentar coletar uma amostra e identificar um dos desaparecidos políticos, que era o Hiroaki Torigoe.
Revista do Arquivo - Essa equipe de antropólogos da Argentina inicia o trabalho a partir de quê?
Ana Tauhyl A partir dessas 21 caixas que já tinham sido previamente selecionadas pela equipe da UNICAMP, com possibilidade de identificar o desaparecido político Hirohaki Torigoi. Eles começam a análise da documentação da UNICAMP e apontam uma série de erros, faltas de preenchimento sistemático na documentação. Muitas das informações ali não puderam ser extraídas, não estavam muito claras, e eles percebem que essas 21 caixas foram selecionadas por suspeitarem que entre elas poderia haver ossada pertencente a desaparecidos como Hiroaki Torigoe. Entretanto, tinha corpos que eram de mulheres, ou seja, era um erro.
Revista do Arquivo - Um erro crasso.
Márcia Hattori Então a equipe argentina faz um relatório afirmando não ser possível confiar nas análises feitas pela equipe da UNICAMP. Ou seja, não fazia sentido a gente usar essa triagem feita pela UNICAMP para tentar identificar os corpos. E aí a recomendação da equipe argentina é de que seja feita a análise novamente.
Revista do Arquivo - Toda, desde o início...
Márcia Hattori Toda a triagem das ossadas vai ser feita novamente.
Revista do Arquivo - São 1049...
Márcia Hattori Além do mais, afirma que a documentação produzida pela UNICAMP não serve, etc. E aí eles apresentam isso na Comissão da Verdade Rubens Paiva numa audiência pública. Uma outra coisa que a equipe argentina constatou é que o columbário era muito úmido e estava degradando as ossadas, então era urgente também que elas fossem retiradas de lá.
Desencontros nas práticas da antropologia forense
Revista do Arquivo - Você cita a antropologia forense e também fala do convite a uma equipe da Argentina... Por favor, nos conte um pouco sobre a antropologia forense. Por que não chamaram equipes do Brasil?
Márcia Hattori Acho que é uma questão de formação. Existem linhas bastante diferentes de como se entende a antropologia forense. Nós nos alinhamos mais a essa linha “latino-americana” de antropologia forense que tem esse histórico “fourfields”, ou seja, dos quatro campos da antropologia, e a arqueologia faz parte disso. Aqui no Brasil a antropologia forense, ou o que se chama de antropologia forense, é muito pautada numa visão médica. Ela é medicalizada, nesse sentido, com uma abordagem bastante voltada para a análise de ossos. A gente entende que a antropologia forense é muito mais abrangente que isso, e quando a gente está lidando com desaparecimento, ele não é só físico, é social também. A partir disso acho que a gente tem que entender que quando está lidando com caso de desaparecimento, não é só o corpo, é tudo que se refere à vida da pessoa. Então, quando a gente fala de documentação, temos que saber que ela é fundamental no processo de antropologia forense, porque ela é a materialização dos registros que evitarão o desaparecimento. Então, tudo que a gente fala aqui tem uma óbvia relação muito forte com a antropologia em si, e a gente entende que a antropologia nada mais é que os conhecimentos da antropologia biológica, antropologia social e da arqueologia, aplicados num contexto forense.[3] A antropologia forense é um campo que traz todo arcabouço teórico, metodológico dessas disciplinas - antropologia, história, arqueologia, aplicadas numa situação jurídica. E pensando no contexto histórico do processo de Perus, desde que a UNICAMP começou a fazer as análises, fica claro que só uma classe médica atua, profissionais médicos, legistas, enfim. Depois disso, tem uma tendência a abrir para uma multidisciplinaridade, isso também tem a ver com o convite dos familiares e das associações de anistiados à equipe argentina, que coloca nesse contexto outros olhares, o de arqueólogos, de antropólogos, etc. Isso entra um pouco nessa linha latino-americana que o Brasil parece que se exclui. A antropologia forense não se restringe a uma análise osteológica e sim a todo um processo que envolve o fato em si, afinal o desaparecimento também é social, como eu disse.
Equipe multidisciplinar
Revista do Arquivo - Vocês formam uma equipe multidisciplinar. No caso dos 1.049 corpos, a questão extrapola a busca dos desaparecidos políticos? Muitos desses corpos eram dos chamados indigentes, pessoas “anônimas”, vítimas do Esquadrão da Morte. Como é que vocês trabalham com isso? Vocês acham que esse trabalho pode contribuir em relação a esses outros desaparecidos?
Ana Tauhyl Bom, a equipe do laboratório é composta por bioantropólogos, bioarqueólogos, profissionais dos IMLs, profissionais de outros estados que vêm pra auxiliar, médicos legistas, dentistas, antropólogos forenses. No Arquivo, especificamente, eu trabalhei como arqueóloga, assim como a Márcia, o Rafael e a Luana. O Felipe trabalhou como historiador.
Márcia Hattori São, basicamente, odontólogos, médicos, arqueólogos, antropólogos e historiadores. Numa fala mais "institucionalizada", a gente tem os IMLs que enviam alguns peritos; nós somos uma equipe que fica fixa no laboratório, todos os dias estamos lá, mas toda semana a gente tem a vinda de um perito dos IMLs, vinculados à Secretaria Nacional de Segurança Pública. O desenvolvimento desse trabalho, o envolvimento dessas metodologias que a gente usa também acaba influenciando os olhares deles para os contextos locais, tanto é que a gente tem um pessoal da Bahia que vem bastante a São Paulo e que já está usando, na Bahia, os métodos que a gente usa no laboratório. Então, acho que isso tem sido bem positivo para pensar a antropologia forense no país e na forma de fazer perícia. Tem o pessoal de Roraima, Bahia, Rio de Janeiro, Ceará, Rondônia, bastante gente de São Paulo... tem uma pessoa da Polícia Federal que é um odontólogo que também participa do processo.
Ana Tauhyl E não é só isso. Toda a ossada é fotografada desde a abertura da caixa, lavada, secada, montada, analisada, em relação ao sexo, idade, traumas, características físicas; dessa forma se levanta uma imensa quantidade de documentação à respeito daquela ossada.
Revista do Arquivo - Então o trabalho de vocês não se limita à pesquisa sobre os desaparecidos políticos?
Márcia Hattori Já nos perguntaram “vocês pretendem identificar 1049 pessoas?” Não, acho isso impossível. Nosso trabalho está focado na tentativa de identificação do nosso universo de busca - 42 pessoas com diferentes graus de probabilidade de estar na vala. Isso também acaba gerando no final do processo um banco de dados gigantesco que depois pode ser utilizado porque a gente sabe a quantidade de desaparecidos no Brasil até hoje. E uma vez que este trabalho seja encerrado, o banco de dados resultante dele ficará acessível, para, quem sabe, serem feitas, por exemplo, chamadas públicas, recepção de demandas de buscas dos desaparecidos do período e confrontamento dos dados.
Ana Tauhyl Fica para depois o legado...
Sobre documentos, corpos e a máquina burocrática de fazer desaparecer
Revista do Arquivo - Muito bem, chegamos a essa questão específica dos documentos, em que vocês alegoricamente definem como “máquina de fazer desaparecer”, ou seja, vinculando o desaparecimento com a falta de informações da documentação dessas pessoas. É nesse ritual que, quando não bem cumprido, você se depara com esse fenômeno do desaparecimento burocrático... queria que vocês falassem um pouquinho disso.
Márcia Hattori Todo esse ritual mencionado, que deve ser feito em relação ao corpo não identificado, é um esforço do Estado para a identificação. Um desconhecido tem muito mais quantidade de documentos do que uma pessoa com identidade. A quantidade de documentação produzida é muito maior, justamente com objetivo de identificação. Aí aparece uma contradição, pois existe uma legislação e toda essa documentação, mas, muitas vezes, esse conjunto de documentos não diz quem é, não identifica ou dificulta o caminho para a identificação. A partir do momento que você não preenche direito todas as informações, você desaparece, você não consegue rastrear o corpo, onde ele foi enterrado. Então, a partir do momento que você não preenche o número do IML, ou não faz a descrição completa do corpo, dificulta o caminho para tentar a identificação e o destino de um corpo.
Ana Tauhyl Às vezes existem muitos documentos, mas as informações se repetem. Outras, as descrições feitas em outro local não batem com a anterior, pois alguém não preenche; aí, esses documentos vão para repartições diferentes e o conjunto documental fica contraditório. Um descuido aqui, um probleminha ali, enfim... às vezes também a quantidade de documentação não quer dizer que a informação vai chegar até o fim.
Revista do Arquivo - Então quer dizer que cada movimento do corpo gera um documento de identificação, de informações e uma quebra nesse fluxo pode... É isso que vocês chamam de máquina burocrática de fazer desaparecer, é esse conjunto de práticas de negligências, essa é a questão... A ditadura, provavelmente, se utiliza dessa máquina oficial burocrática de desaparecimento, seja ele involuntário, ou não, e insere os desaparecidos políticos nesse contexto, é isso?
Márcia Hattori Exato. Acho que era muito simples: bastava falar que se tratava de um corpo desconhecido, ia para o IML como desconhecido, depois para o cemitério Dom Bosco e lá, por exemplo, não tinha a divisão das sepulturas, era enterrado junto com uma quantidade gigante de desconhecidos. O cemitério Dom Bosco é o que mais recebe desconhecidos e você não tem como rastrear, chegar no corpo depois, porque não tem lugar melhor pra desaparecer um corpo do que um cemitério, as chances de se achar o corpo é grande, mas saber quem é, é super difícil.
Revista do Arquivo - Então vocês ampliaram o foco de busca?
Márcia Hattori Nossos trabalhos buscaram compreender o contexto com o qual estávamos lidando. Isso faz parte da pesquisa preliminar na Antropologia Forense. Não ampliamos o foco da busca que é unicamente a busca e tentativa de identificação. O que ocorre é que para estabelecer as hipóteses de identidade, quem poderia estar na vala, temos que entender como funcionava a repressão, qual era o caminho para a ocultação do cadáver em que instituições como o IML colaboravam. Assim nossa pesquisa com a documentação se baseou em experiências feitas no Equador, da equipe peruana que fez um trabalho relacionado a etapa denominada "pesquisa preliminar" num cemitério para captar as mudanças nos diferentes anos em que houve mais mortes. Aqui, as pesquisas, até então, ficaram muito focadas em determinados nomes de desaparecidos políticos, ou em seus nomes falsos. Foi então que resolvemos realizar uma abordagem mais sistemática, que foi a de levantar todos os que eram enterrados como desconhecidos, porque a gente sabe que a partir de 1974, principalmente, temos uma mudança na estratégia da repressão por não haver mais mortes oficiais. O que acontece é que desapareciam com os corpos e, assim, existia uma grande possibilidade das pessoas serem enterradas como desconhecidas, entrarem nessa máquina e nunca mais serem encontradas. Nós fizemos o levantamento de todos os desconhecidos desde o início da década de 70, quando o cemitério foi inaugurado pelo Maluf, até 1980. A ideia era seguir o caminho, então a gente queria ver os arquivos do IML que teriam os laudos necroscópicos, as declarações de óbito, as fotografias de vítimas relacionadas àquelas pessoas. A gente queria fazer o caminho do corpo, porque o que acontece, como disse a Ana, é que as informações se repetem, mas nem todas. Então, lá no registro de entrada você tem a causa de morte, o primeiro médico, a idade presumida, uma descrição bem simples e o número do IML. Quando a gente vem pra cá no Arquivo, a gente pega todos os laudos necroscópicos da década de 70 também, pra fazer justamente essa comparação e aí fazer o caminho do corpo. Quer dizer, o número que está ali no cemitério de Perus, IML 077, a gente tem que achar aqui na documentação do IML, um exame necroscópico, uma declaração de óbito e uma fotografia. Porque senão alguma coisa se perdeu ali no caminho e a gente não consegue rastrear. E a partir desse trabalho é que a gente começou a ver esses buracos, a falta de preenchimento. Quer dizer, como é que eu vou voltar nesse registro se a folha rasgou e não é mais possível ver as informações? Como é que eu volto nesse cara que era um suspeito que a gente tinha, que estava lá na vala, e a foto grudou por causa da umidade? E aí não tiraram a ficha datiloscópica, não tiraram a foto direito...

Revista do Arquivo - Tudo que era óbvio tinha que ser feito, são procedimentos padrões...
Márcia Hattori São procedimentos que justamente fazem você seguir o caminho do corpo e buscar a identificação dele. Então, a partir desse método de comparar essas séries documentais e seguir o caminho do corpo é que a gente foi percebendo... que foi se materializando um pouco mais disso que seria um desaparecimento administrativo, ou seja, a documentação, que buscava identificar, na verdade, fazia desaparecer!
O árduo trabalho no Arquivo do Estado de São Paulo
Revista do Arquivo - Mas como é que vocês vieram parar no Arquivo do Estado? Dentro dessa pesquisa antemortem, se não me engano, parece que tem mais etapas não é?
Ana Tauhyl Foi durante o trabalho de pesquisa preliminar que a gente fez, com dados do antemortem. A pesquisa preliminar busca, basicamente, entender o contexto da política de desaparecimento, fechar o universo de pessoas que a gente está buscando. É na pesquisa antemortem que obtemos os dados da vida da pessoa. O primeiro intuito é entender o contexto, como era a política de desaparecimento e levantar as possíveis pessoas que foram enterradas como desconhecidas, no caso, na vala de Perus. Então, nosso trabalho inicial foi no cemitério Dom Bosco com os livros de registro de entrada do cemitério, então a nossa abordagem foi levantar uma década pra também ver flutuações.
Revista do Arquivo - Aí vocês vieram aqui no Arquivo em busca dos livros do IML. Vocês sabiam que estavam aqui? Que foram recolhidos...
Márcia Hattori Na época a gente não sabia que estavam aqui. Eu lembro inclusive que, conversando com os familiares, eles tinham falado que essa documentação talvez estivesse na Academia de Polícia ou no IML ainda. Mas o IML falava que não estava mais lá, até que a gente soube, por meio do Ivan Seixas, que ela estava aqui no Arquivo.
Revista do Arquivo - Como é que foi a pesquisa com essa série documental, que são esses livros do IML que estão aqui? Vocês se depararam com uma grande quantidade. Como se organizaram para essa pesquisa?
Márcia Hattori Os livros de exames necroscópicos estão dentro de um livro grande chamado “livro de corpo e delito”. Tem um monte de outras coisas, conjunção carnal...
Ana Tauhyl ... tem todo o movimento do IML por dia, então cada livro registra o movimento de três dias no IML. Tinha tudo o que acontecia e o que mais acontecia não eram mortes; o grosso do movimento, acho que até hoje nos IMLs, é lesão corporal, então a gente ficava né...

Revista do Arquivo - Mas como é que vocês se organizaram pra isso? Equipe de quantas pessoas? O Arquivo organizou um espaço especificamente pra isso.
Márcia Hattori Aliás, sem esse apoio do Arquivo, com certeza não teria acontecido na velocidade que um trabalho de antropologia forense exige, porque não é uma pesquisa acadêmica, e isso faz muita diferença no contexto forense. Se vocês não tivessem dado o espaço e facilitado a regra de consulta, a gente estaria aqui com certeza na metade da década de 1970, ainda. Os trabalhos forenses duram um ano, no máximo. Esse projeto de Perus é um dos trabalhos dos mais gigantes de antropologia forense, porque normalmente são trabalhos que são muito rápidos, tem a ver com contexto jurídico, acaba que tem que ser muito rápido, diferentemente de uma pesquisa acadêmica, que tem um outro tempo.
Ana Tauhyl Então, se não tivéssemos o espaço e a equipe toda ajudando, não teria nem como fazermos esse levantamento, e a gente tá falando de 10 anos de IML e não de apenas uma série documental. A gente trabalhou com três séries, que são os laudos necroscópicos – que estão dentro dos livros do corpo de delito –, as certidões de óbito e os livros de fotografias de vítimas.
Revista do Arquivo - E eles estavam bem organizados?
Ana Tauhyl Sim, tinham umas lacunas, problemas de encadernação... a impressão que temos é de que eles eram encadernados um tempo depois que saíam do uso comum. Faltavam alguns livros, mas havia problemas também de umidade, desde a época de produção do documento, mas estavam separados, organizados. Começamos com os laudos necroscópicos, cronologicamente, desde 1971, porque o cemitério foi inaugurado em março, mas às vezes as pessoas morriam antes e ficavam um tempo no IML, acabavam indo pra Perus, então você não pode começar a partir de março. E a gente olhava todos os laudos necroscópicos de desconhecidos, porque estavam todos juntos; além dos outros tipos de exames, tinha também de pessoas com nome, todo movimento do IML, a gente achava aqueles com título de desconhecidos, colocava os dados numa tabela...
Revista do Arquivo - Então vocês elaboraram essas ferramentas de registro, as tabelas Excel...
Márcia Hattori Basicamente Excel, porque a gente poderia depois fazer uma estatística pra levantar todos os dados. A gente processava quase todos os campos, desde o topo ali onde tinha a delegacia, até o do funcionário que fazia. A gente só não fazia a transcrição de todo o laudo.
Revista do Arquivo - Aí esses dados foram pra um banco de dados...
Márcia Hattori Isso, porque o que a gente está fazendo agora é cruzando os dados, fazendo relatório para cada série documental. Então, a gente fez pro cemitério, desde georreferenciar os locais de morte, que fica bem bacana. A gente tem locais, por exemplo, que são bastante suspeitos, então a gente vai levantando essas possibilidades, até dados, quantos morrem e entram por ano, por mês. É interessante ver também que o ano que eles falam que mais gente morreu relacionado ao desaparecimento forçado é 1974. A gente tem um número bem grande de entrada de desconhecidos nesse ano, o que significa que não estamos falando de uma perseguição só aos opositores do regime, mas de uma sociedade que se torna mais violenta nesse ano também. Ajudou bastante a estatística.
O destino dos arquivos produzidos pelo projeto e os riscos de perda da memória
Revista do Arquivo - Esse banco de dados é bastante rico, mas ainda tem muito o que fazer...
Márcia Hattori A possibilidade de coisas a fazer com uma base assim é gigantesca. É que a gente não conseguiu georreferenciar tudo.
Revista do Arquivo - E o que vocês vão fazer com essa base, com essa quantidade de documentos que produziram e acumularam?
Márcia Hattori A salvaguarda disso? Seria da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência.
Revista do Arquivo - Como é que estão os arquivos dessa Secretaria? Porque eu acho que isso deveria ser uma preocupação, isso é fundamental...
Márcia Hattori Um problema muito sério na Secretaria de Direitos Humanos é, de fato, a mudança de pessoas. Acho que lá só tem um funcionário fixo, que não seja consultor, então não tem memória institucional.
Revista do Arquivo - Quem tem melhor estrutura organizacional pra recepcionar essas informações? Eu acho que essa é uma questão crucial...
Márcia Hattori Em relação ao acervo digital a gente até já chorou, já pediu pelo amor de Deus, mas a coisa ainda tem que andar muito. A gente tem um acervo digital gigantesco, para além dessas bases, relacionadas às séries documentais que a gente já analisou, a gente tem uma quantidade gigantesca de fotos, porque imagina todo o processo de abertura da caixa, análise, fotos de todos os traumas, tudo que foi analisado... a ideia do registro é para que, caso tenhamos alguma dúvida a gente consiga recuperar só pela foto. Então tem uma quantidade gigantesca, e os backups são bem rústicos.
Revista do Arquivo - Eu fico pensando em outros movimentos que estão sendo feitos nessa busca por verdade, justiça... Qual seria a instituição que iria coordenar tudo isso, para armazenar pra essas informações de todas as comissões para serem cruzadas? Que dizer, meu temor é de que isso vire pó.
Márcia Hattori Idealmente seria a Secretaria de Direitos Humanos, porque a sua atuação é recomendada para todas as coisas que foram feitas pela CNV, pelas comissões da verdade...
Revista do Arquivo - A minha preocupação é com toda a memória desse trabalho, para que um dia possa ser cruzado...
Márcia Hattori A gente estava discutindo um pouco sobre a memória do projeto, sobre como a gente iria ter os e-mails e todos os relatórios que a gente produziu, sobre como poderíamos ter uma orientação de como fazer esse processamento e organização do acervo. Temos que recuperar todo o histórico de custódia desses documentos, desde a UNICAMP, e, do jeito que está, está difícil.
Revista do Arquivo - Muito bom. Vocês estão falando que já existe sinalização de uma mudança na política na identificação dos desaparecidos e mortos. Vocês conseguem pensar que o trabalho que está sendo feito vai acabar se tornando uma referência, não só no caso de identificação de desaparecidos políticos, mas no de identificação, o trabalho de legistas forenses, o trabalho de perícia no Brasil?
Márcia Hattori Bom, como eu disse, tem sido interessante ver esse nosso convívio com os médicos legistas dos IMLs e dos outros órgãos. Algumas coisas que a gente traz em relação ao levantamento do contexto, do contato com os familiares, o cuidado, as diferentes metodologias que a gente usa, acho que essa troca pode vislumbrar mudanças a médio prazo na maneira de se fazer as perícias.
Revista do Arquivo - Está tendo alguma repercussão?
Márcia Hattori Acho que ele é muito localizado, temos que pensar que Perus é um dos casos de locais de enterramento ou melhor, de ocultação de cadáver. Há inúmeros outros possíveis locais que devem ser investigados e é responsabilidade do Estado brasileiro. E eu acho que no Brasil há uma resistência muito grande também emde uma maneira de fazer perícia que englobe outras áreas para além da Medicina e da Odontologia Essa e é a contribuição que tentamos dar.
Ana Tauhyl É um trabalho muito de formiguinha, que a gente toma contato com os médicos, eles veem o que a gente faz, devem levar para os IMLs algumas coisas, mas eu não sei se....
Márcia Hattori Requer mudança de mentalidade! Tem a ver também com formação, acho que a formação é muito importante.

Notas
-
[1] Sobre a vala clandestina de Perus
A luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos levou à revelação de que no cemitério municipal Dom Bosco, construído em 1971 na gestão do então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, havia uma vala clandestina com 1049 ossadas acondicionadas em sacos plásticos sem nenhuma identificação. Informações do então administrador do cemitério, o funcionário Antonio Pires Eustáquio, davam conta de que para lá eram levados os corpos de indigentes, vítimas anônimas do Esquadrão da Morte, da miséria social e da repressão política, para serem enterrados em covas individuais ou jogados numa vala comum. A partir de então, a prefeita Luiza Erundina resolveu investigar e revelar toda a verdade a respeito de fatos tão graves. Criou-se uma CPI, realizou-se a exumação dos corpos, firmou-se convênio com o Governo do Estado de São Paulo e uma equipe de pesquisadores da UNICAMP identificou nas ossadas do cemitério Dom Bosco sete corpos de desaparecidos políticos no período da ditadura militar, sendo que três deles estavam na vala comum e quatro em sepulturas individuais. São eles: Frederico Eduardo Mayr; Dênis Casemiro; Flávio Carvalho Molina; Sônia Moraes Angel Jones; Antonio Carlos Bicalho Lana; Luiz José da Cunha; e Miguel Sabat Nuet. No início de 2010, a Justiça Federal de São Paulo, a pedido do grupo Tortura Nunca Mais, concedeu liminar determinando que as ossadas da vala comum do cemitério de Perus fossem submetidas a exames de DNA e que a União e o Estado teriam seis meses para promover sua identificação. Para mais informações, acesse:
http://www.dhnet.org.br /verdade /rn /bibliografia /livro_vala_perus_emmanuel.pdf - [2] Columbário: urnas destinadas à guarda das cinzas de cadáveres humanos incinerados.
- [3] A ciência forense é o conjunto de conhecimentos científicos e técnicas que são utilizados para desvendar crimes.