
A implantação do Sistema de Arquivos da Universidade de São Paulo data oficialmente de 1997. Portanto, o relato a seguir é resultado de uma história de quase vinte anos! Período de muito aprendizado, tanto na superação dos desafios iniciais quanto na preparação do terreno para enfrentar os desafios vindouros, que têm se delineado também há um bom tempo. Tais desafios se referem especialmente a quatro momentos distintos e sucedentes, contextualizados da seguinte forma:
- Desafios anteriores à criação oficial do SAUSP, correspondente à fase de elaboração inicial do desenho do Sistema;
- Dificuldades enfrentadas na fase inicial do funcionamento do SAUSP, quando da implantação efetiva do Sistema;
- Desafios pós-criação do Arquivo Geral da USP (AG-USP) e as novas vertentes de trabalho;
- Desafios futuros, já bastante explícitos, e que pressupõem, no momento atual, muita reflexão, eficaz planejamento estratégico, e gestão eficiente, além é claro, de sensibilidade por parte da alta administração da Universidade.
1. Fase de Elaboração do Desenho do SAUSP:
No decorrer das décadas de 1980 e 1990 o Serviço de Protocolo da Reitoria da Universidade de São Paulo desenvolveu uma série de normativas e procedimentos com vistas à padronização da gestão dos documentos gerados pela Universidade. Entretanto, o estabelecimento de tais normatizações era, infelizmente, desprovido de força institucional.
Paralelamente a essas tentativas de padronização, na segunda metade da década de 1980 foi colocado em funcionamento na USP um sistema de protocolo automatizado – o Proteos -, muito bem aceito pela comunidade uspiana na época. Tal Sistema atendia a questões pontuais relativas especialmente à tramitação de processos e de protocolados interna às Unidades da USP e inter-Unidades.
Somente dez anos mais tarde, por volta de 1995 e de modo bastante contundente, a Universidade se deu conta dos problemas gerados pela falta de padrões e normas mais rigorosas com relação ao processo de gestão dos documentos produzidos por ela própria, situação que enfim promoveu o efetivo e imprescindível apoio institucional que até então faltara.
A implantação efetiva do SAUSP somente foi possível graças a essa nova visão e atitude da Reitoria da Universidade - ocupada à época pelo Prof. Dr. Flavio Fava de Moraes -, cuja iniciativa teve de vir “de cima para baixo”, aprovando o projeto apresentado por docentes vinculados ao Curso de Especialização em Organização de Arquivos, fornecido entre os anos de 1986 e 2009 pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA), em parceira com o Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB) , e do qual participaram ativamente as Profas. Dras. Ana Maria de Almeida Camargo, Heloísa Liberalli Bellotto e Johanna Wilhelmina Smit, além da servidora Eunice Ribeiro Borges e equipe, da Reitoria da USP.
Porém, se o devido apoio institucional trouxe consigo maior poder de convencimento junto aos servidores da USP, de outro implicou o compromisso daqueles servidores em elaborar os instrumentos de gestão do SAUSP e em finalizar o Sistema dentro do mandato daquele Reitor, que àquela altura estava reduzido a 22 meses.
Muito embora a execução de um projeto preveja o levantamento e a realização de um diagnóstico, este não foi realizado oficialmente: além de o prazo ter sido absolutamente exíguo, houve muitas alterações na constituição da equipe de profissionais da USP e externos a ela envolvidos no projeto, prejudicando o curso minimamente normal de seu andamento.
Entretanto, o Curso de Especialização sobre Organização de Arquivos - de onde saíram os nomes das idealizadoras e empreendedoras do projeto, além de alunos servidores USP - já havia caracterizado, mesmo que de modo informal, mas tácito, o diagnóstico da situação da Universidade em termos de gestão documental à época.
A elaboração dos instrumentos de gestão[4] tomou a maior parte do tempo da equipe, e desnudou tanto a riqueza da produção documental e de seu conteúdo, quanto a sua quase total falta de padronização e de clareza a respeito de sua temporalidade e destino, pois nesse período era extremamente comum as Unidades da USP criarem seus próprios sistemas, e várias vezes até seus próprios instrumentos de gestão.
Os objetivos do projeto então foram ampliados, pois ao se criar o SAUSP, criar-se-iam concomitantemente os seus instrumentos de pesquisa, proposta que elevaria o Sistema ao patamar de uma política de gestão documental a ser estabelecida para toda a Universidade. A determinação pela adoção de uma política clara tornaria inclusive mais difícil a revogação do projeto.
A elaboração dos instrumentos de gestão envolveu então uma grande parcela dos servidores da USP, quando foram intensivamente coletadas informações a respeito da documentação gerada na USP e acerca de propostas de temporalidade e destino, acrescidas de treinamentos, visitas de orientação e acompanhamento cotidiano das atividades de cada setor de cada Unidade. Os dados levantados foram sistematizados e, daí, gerados os referidos instrumentos. O envolvimento direto da comunidade uspiana produziu não só maior ancoragem das atividades cotidianas e multifacetadas da Universidade, mas fortaleceu sobremaneira o caráter institucional do Sistema de Arquivos dentro da USP, que foi finalmente criado com seus respectivos instrumentos de gestão por meio da Portaria GR 3083/97.
2. Dificuldades enfrentadas na fase inicial do funcionamento do SAUSP:
Uma vez oficializado o SAUSP, foi necessário manter o envolvimento e a motivação da comunidade para seu uso devido e cotidiano. Novos treinamentos e visitas foram programadas, dessa vez porém com um novo enfoque: não era mais necessário o levantamento de dados, mas sim, a integração dos instrumentos de gestão à rotina de cada Unidade, envolvendo todas as suas instâncias internas. Contudo, a aceitação do SAUSP não era unânime: assim como uma parcela dos servidores elogiou a iniciativa, conseguindo enxergar nela a melhoria do grau de segurança institucional e pessoal no trato dos documentos, outra parcela de igual peso apresentou séria resistência, muito provavelmente pelas razões abaixo indicadas:
- Resistência à mudança;
- Resistência a uma aparente perda de “poder” sobre os documentos gerados naquela Unidade/setor;
- Desconfiança com relação aos reais propósitos do SAUSP, resultante de informações equivocadas e totalmente descabidas relativas ao suposto “rebaixamento” ou “menosprezo” por aqueles produtores de documentos de baixa temporalidade[5].
As resistências tornaram-se explícitas quando uma primeira aplicação da TTD foi solicitada, com vistas a um dimensionamento da massa de documentos a ser eliminada e do volume de documentos que seria de guarda permanente.
Simultaneamente a esse desafio, no decorrer da década de 2000 um novo aspecto relativo à gestão documental começou a se delinear. O SAUSP nascera como um projeto abrigado pelo Departamento de Administração da Coordenadoria da Administração Geral da USP, que adotava a descentralização tanto de operações quanto de guarda dos documentos como seu mote. Entretanto a detecção de documentos de guarda permanente deu lugar a uma legítima preocupação relacionada a sua conservação: a guarda e a preservação dessa documentação também seria feita de forma descentralizada? A que custo? E sob as vistas e a supervisão de quais profissionais capacitados na área?
Tais indagações levaram a uma nova reflexão, que culminou na tomada de algumas decisões:
- Reforço do conceito de um SAUSP descentralizado, porém proativo quanto à possibilidade de centralização da guarda de documentos permanentes, pois otimizaria - na Universidade - diversas atividades envolvidas nos processos de gestão, preservação e pesquisa da documentação;
- Necessidade de institucionalização do SAUSP dentro de uma estrutura administrativa, com o intuito de fazer frente ao intenso aumento de atividades relacionadas à gestão de documentos na Universidade. Por sugestão do próprio Departamento de Administração da USP, aquela demanda levou à proposta de alteração de sua estrutura organizacional, com a criação do Arquivo Geral da USP (AG) em 2005;
- Em decorrência da busca pela otimização da guarda de documentos permanentes, decidiu-se pela construção de um prédio próprio para o Arquivo Geral da USP com duplo objetivo: atuar como Órgão Central do SAUSP, e propor condições ideais para a guarda de documentos permanentes.
Tal fase, portanto, resume-se à criação do AG-USP, com espaço físico próprio e sua respectiva equipe funcional.
3. Desafios pós-criação do AG e as novas vertentes de trabalho:
A manutenção de treinamentos e visitas às Unidades da USP continuou e continua sendo uma das tônicas do Sistema, assim como o reconhecimento de seus interlocutores nos diferentes organismos da Universidade por meio da organização das Comissões Setoriais SAUSP. Um boletim mensal fora criado na etapa anterior e mantido - o SAUSP.DOC -, e o site do AG foi criado (http://www.usp.br/arquivogeral). A comunicação constante com os servidores produtores de documentos e, em especial, com servidores alocados nos serviços de protocolo e/ou de expediente das Unidades foi intensificada.
No entanto, a comunicação com duas interfaces da comunidade uspiana era – e continua sendo – mais complexa: a interface com os docentes e com os gestores e produtores de documentos digitais.
No que tange aos docentes pesquisadores, muitos deles interagem pouco com a administração e com suas regras rígidas, e portanto são pouco sensíveis à importância dos arquivos administrativos. E quanto àqueles que ocupam cargos de chefia, ou seja, de cunho administrativo (Chefias de Departamentos, Diretores de Faculdades, de Escolas e Institutos, Presidentes de Comissões, Pró-reitores e Reitores etc.), muitas vezes eles próprios ditam aos servidores que lhe são próximos como os documentos devem ser produzidos, como e onde devem ser arquivados, e quais devem ser eliminados. Nesses casos o risco de descumprimento das normativas contidas nos instrumentos de gestão costuma ser consideravelmente alto, não tanto pelo desconhecimento de sua existência, mas especialmente por não conhecerem a fundo as razões de elas existirem.
Com relação à comunidade dos gestores e produtores de documentos digitais, a luta consiste em relembrá-los diariamente que documentos digitais constituem documentos administrativos, e por isso devem ser regidos pelos mesmos instrumentos de gestão.
Sabe-se que as mudanças nos processos de trabalho – muitas provocadas pela Tecnologia da Informação - impactaram grandemente o conceito de documento arquivístico. Muitos estudos têm sido feitos e ainda o serão com a finalidade de a Arquivologia poder dialogar de igual para igual com a TI, introduzindo em seus workflows procedimentos que visem e garantam a preservação da autenticidade dos documentos digitais.
Uma última questão deve ser mencionada aqui, e ela diz respeito à promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI, Lei 12.527, de 18/11/2011) e ao Decreto Estadual 58.052, de 16/05/2012, que especialmente no Estado de São Paulo atribui uma indelével importância aos Arquivos e à gestão dos documentos no contexto da LAI. A participação da Direção do Arquivo Geral nos trabalhos da CADA (Comissão de Avaliação de Documentos e Acesso) pressupõe também um importante espaço na gestão dos documentos no seio institucional.
Nesse relato cabe ainda acrescentar um desafio há muito existente, mas sobre o qual maior atenção foi dada nesta fase: a interlocução com outros sistemas de arquivos nacionais e internacionais. O SAUSP não sobrevive isoladamente, e nem poderia ter sido concebido de forma isolada. É parceiro do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo e adota as regras por ele emanadas, assim como dialoga com os sistemas de arquivos das outras Universidades Estaduais (UNESP e Unicamp). Atividades mais recentes e em andamento no AG mostram essa integração:
- A elaboração da proposta de um Plano de Classificação de Atividades e de uma Tabela de Temporalidade de Documentos comuns às três Universidades públicas paulistas, e que deverão ser submetidas à avaliação e à aprovação do SAESP;
- A troca de opiniões entre as CADAs das respectivas Universidades, visando à elaboração de algumas respostas comuns com relação ao acesso à informação. Embora todas as três Universidades públicas estaduais sigam a mesma legislação, as culturas respectivas a cada uma são bastante distintas, especialmente quanto a algumas questões, como no caso da preservação do anonimato de pareceristas ou de sua divulgação, ou quanto à restrição no acesso a dados de pesquisas em andamento.
4. Desafios futuros:
Acrescente-se aos desafios do AG anteriormente citados aqueles sobre os quais, somente hoje, temos tido condições de voltar a nossa atenção. A interlocução com todos os servidores da Universidade, inclusive servidores docentes, continua sendo uma política vital para a experiência bem sucedida de um sistema descentralizado, e que sempre demandará comportamentos e atividades que promovam a inserção institucional contínua.
Além de caber ao Arquivo Geral da USP a elaboração e o desenvolvimento de propostas, procedimentos e políticas relativas à produção, classificação, organização, conservação, avaliação, armazenamento, difusão e uso dos documentos - sob quaisquer suportes físicos - produzidos e acumulados pelas respectivas Unidades e Órgãos da USP, e que integram tanto os arquivos correntes quanto os intermediários e permanentes dessas mesmas Unidades/Órgãos, a ele cabe também, e igualmente, garantir o acesso - pelo cidadão - à documentação arquivística produzida na Universidade.
Por tais razões, há quase dois anos o AG criou o serviço de Pesquisa e Difusão, com o objetivo de explicitar e extroverter sua função na USP e junto à sociedade.
O serviço de Pesquisa proporciona o atendimento personalizado a pesquisadores, e integra o serviço de Difusão do AG, pois proporciona o acesso à informação e aos documentos de guarda permanente produzidos na Universidade, dando visibilidade direta a uma das atividades fins do Arquivo Geral. Além das atividades de pesquisa, o AG tem fornecido treinamentos específicos e mensais voltados ao público USP na área de conservação de documentos arquivísticos e na de procedimentos de protocolo relativos à gestão documental, iniciativas que fortalecem a competência do AG junto à Universidade.
Ao lado dos treinamentos, o Arquivo Geral da USP tem promovido palestras mensais abertas ao público em geral em parceira com a Associação de Arquivistas do Estado, ministradas por palestrantes da USP e de fora dela, especialistas em Arquivos ou outros profissionais que, embora não sejam especialistas, lidam com arquivos de algum modo. Seguindo a mesma política das Palestras, o AG também publica bimestralmente online o Boletim SAUSP.DOC.
Ao lado dessas iniciativas, o atendimento intensivo do público em geral e da comunidade USP via email, e a participação do AG em redes sociais - como no Facebook (https://www.facebook.com/arquivogeraldausp) - extrovertem-no, e incitam a uma cada vez maior integração com a comunidade uspiana, com seus pesquisadores, e com o público em geral.
Desde 2013 o AG tem trabalhado na atualização da TDD, e pretende finalizá-la até o final deste ano. E o diálogo com os produtores e gestores de documentos digitais continua sendo um grande desafio a ser enfrentado e aprofundado, tendo em vista a crescente informatização dos procedimentos administrativos e a consequente produção híbrida de documentos.
Em resumo, o passado, o presente e o futuro desafiam-nos e continuarão nos desafiando, obrigando-nos a uma constante avaliação da situação atual, e do que é preciso fazer para o AG caminhar em direção à concretização de um sistema excelente de gestão documental na USP, que envolva desde o processo de produção do documento até o processo de armazenamento e utilização.
- [1] Doutora em Ciências da Comunicação. Chefe Técnica do Arquivo Geral da USP.
- [2] Bibliotecária responsável pela área de Pesquisa e Difusão do Arquivo Geral da USP.
- [3] Professora Sênior ECA/USP. Consultora do Arquivo Geral da USP.
- [4] Tabela de Temporalidade dos Documentos (TTD), Plano de Classificação de Atividades (PCA), e Glossário de Espécies, Formatos e Tipos Documentais.
- [5] Lembremos que a reengenharia dos procedimentos estava em voga naquela época, associada a boatos de demissões.