A Revista do Arquivo teve a honra de entrevistar a Dra. Jaqueline Martinelli, Procuradora do Ministério Público de São Paulo, em uma conversa muito agradável em que ela demostrou muita sensibilidade e lucidez em relação ao tema dos arquivos.

Você concorda que o Ministério Público e o poder judiciário de modo geral têm dado maior atenção à Lei n. 8159/91, conhecida como Lei de Arquivo?
Concordo. Diante da enorme carência que temos em todos os setores das áreas sociais, de justiça e de segurança pública, a questão de se cumprir as normas de arquivo público é, aparentemente, de menor importância diante de tantos outros dilemas sociais. Mas na medida em que não se tem uma gestão documental adequada, como está previsto desde 1991, há dificuldade de implementação de todos esses direitos. E com essas questões recebendo tanto destaque da mídia atualmente, percebe-se a importância de tal atenção. Se essa gestão for implementada com seriedade e de forma efetiva, como determina a própria lei, pode haver uma contribuição melhor. O que precisa é de uma formação educacional e cultural da importância da gestão documental, e isso vem sendo feito, mas é algo lento, como toda mudança cultural e de visão da importância das questões públicas.
Como você vê a questão dos arquivos vinculada com o tema da democracia e dos direitos básicos dos cidadãos?
Eu constatei uma vinculação direta entre os arquivos e a democracia. Não por mera coincidência que a Constituição de 1988 já previu a necessidade imperiosa de que todas as instituições governamentais tivessem seus arquivos, e a legislação que veio regulamentar essa matéria foi editada em três anos. Ou seja: o constituinte percebeu que, para a efetivação de todos aqueles direitos, era imprescindível haver uma preocupação efetiva não só com gerir, documentar e registrar todos os feitos, mas principalmente com programar uma gestão, porque a base da democracia é o acesso à informação, e não adianta você ter direito ao acesso à informação se ela não é registrada ou, ainda que registrada, não é guardada ou gerida de forma segura e organizada. Essa é a importância da gestão documental em todas as esferas de governo; sem ela é impossível implementar de forma eficaz e sólida a nossa democracia.
Como foi o seu contato com o Arquivo público do Estado? Como você despertou para os problemas dos arquivos?
Isso aconteceu mais ou menos no fim da década de 1990. E tudo isso se iniciou, porque houve um provimento do Tribunal de Justiça dizendo que processos com mais de cinco anos, se não fossem reclamados pelas partes, iam ser encerrados. Houve, então, uma representação contra essa medida e o MP atentou para toda a legislação, obtendo decisão para que esse provimento do tribunal fosse suspenso. A partir desse momento, foi feito um termo de cooperação entre o MP e o Arquivo do Estado, sendo que a preocupação inicial do MP era fazer um centro de memória, mais no sentido histórico do que envolvendo a questão da gestão documental. Eu estava na assessoria do Procurador Geral de Justiça e, apesar de sempre ter atuado na área criminal, fui chamada para ajudar, pois sempre tive a preocupação em preservar a história da instituição para poder ser revelada às novas gerações quais e como foram alcançadas nossas conquistas. Passei a ter contato com a professora Ieda Bernardes e com a Lei do Arquivo, vindo a perceber que antes de me preocupar com a questão da memória, era necessário cuidar, antes, da sua preservação hoje. Dessa constatação, resultou que os primeiros trabalhos junto com a professora Ieda para montar o centro de documentação histórica do Ministério Público fossem relacionados à elaboração de um programa de gestão documental inicial para o MP, uma tabela de temporalidade e a formação da primeira comissão de avaliação de documento.
Como alguém da área de direito vê a produção de um documento quando ele vai firmar alguma relação entre pessoas ou entidades? Como é o seu olhar?
A preocupação em relação ao documento é sempre obedecer ao que está na lei. Então eu devo, em primeiro lugar, analisar a legislação sobre aquela determinada relação, e a partir dali eu construo o documento em obediência ao que dispõe a lei, pois se, durante a sua produção, houver desrespeito à lei, ele poderá ser invalidado ou anulado. A lei traz não só o que o documento deve conter, mas também o procedimento a ser seguido na sua produção. Para as instituições públicas e mesmo para as pessoas em geral, o principal para a produção de um documento é analisar antes o que diz a lei a respeito da relação que se está querendo formalizar. Obedecer à lei, essa é sempre a preocupação.
Quando chega um processo na sua mão, quais são as suas primeiras preocupações ao examinar esse processo?
Rasura é sempre um problema nos documentos, pois sempre levanta suspeita de que ele pode ter sido adulterado. Além disso, há a questão da numeração sequencial, que deve ser respeitada sem nada ter sido inserido após ter sido passada determinada etapa, para se provar que nada foi produzido de forma extemporânea. Caso algo fuja do procedimento normal, como rasuras ou renumerações, sempre deve haver uma certificação explicando o porquê disso. Em um processo é sempre importante também verificar a legitimidade. O que isso significa? Que a pessoa que assinou tem poderes ou atribuição dados pela lei de firmar aquele documento.
Houve mais praticidade para a formatação da tabela de temporalidade do MP por ser um setor mais disciplinado?
Eu acho que não. Sempre existe uma vaidade grande em todos os setores, e o sistema de justiça, do qual o Ministério Público faz parte, não é diferente. Começou assim: ou guardava tudo ou descartava tudo, e é muito difícil chegar ao meio termo, do que é corrente, do que não tem valor, do que tem um prazo determinado e do que tem valor permanente. Acho que as dificuldades são iguais para qualquer setor, porque as pessoas têm muito medo de vir a serem responsabilizadas. Por exemplo, hoje tudo é digital, mas todo mundo continua imprimindo. Por que isso? Porque até nos adaptarmos totalmente a essa nova era, as pessoas acham que o documento impresso é que vai assegurar a prova daquilo que ela realizou.
Falando sobre os documentos eletrônicos, você, particularmente, se sente mais insegura em relação à documentação digitalizada?
Sim. Na minha opinião, é possível falsificar um documento físico, mas é mais difícil de perceber a falsificação no digital. Há um monte de controvérsias e questões. É uma etapa, isso não tem volta, eu acho que os documentos serão todos digitalizados, é uma fase de transição, mas nós vamos enfrentar os mesmos problemas. Eu sinto dificuldade com um documento digital, especialmente quando ele é muito volumoso. E a forma como ele é montado dificulta bastante: ter que rodar página por página, sendo que a página do documento digital não confere com o número que está no documento digitalizado, tornando mais complicado encontrar algum documento por seu número de página. Essas questões, acredito eu, serão minimizadas com o tempo, mas por enquanto eu ainda demoro mais para fazer um processo digital do que para analisar um processo físico.
Notas