Marcelo Assis hoje é diretor do Centro de Gestão Documental, mas na sua trajetória profissional teve a oportunidade de reorganizar um setor crucial para o Arquivo Público do Estado de São Paulo: trata-se do Centro de Arquivo Administrativo, responsável pela complexa atividade da avaliação documental. Quando foi diretor do Centro de Arquivo Administrativo do APESP, Assis pôs em movimento as atividades de classificação, avaliação documental e aplicação da tabela de temporalidade à massas documentais acumuladas, conforme prevê a legislação vigente. Isso no turbilhão provocado pela mudança de prédios do Arquivo. Naquele momento, foram movimentadas cerca de 90 mil caixas de documentos, ao mesmo tempo em que se desenvolveu procedimentos de avaliação de documentos e estruturação do espaço físico. Segundo Assis, durante o período de 1 ano e 8 meses, foram avaliadas cerca de 7.000 caixas de documentos.
Assis concedeu esta entrevista para a seção Intérpretes do Acervo.
Partindo-se do pressuposto de que o conceito de avaliação documental ainda é assunto do domínio de poucos técnicos especialistas, como você descreve a prática da avaliação documental?
“Primeiro, seria bom conceituar o que é avaliação documental: atividade que identifica os valores dos documentos, estabelece os prazos de guarda, bem como a destinação dos documentos (eliminação ou guarda permanente). O resultado deste processo é a elaboração da Tabela de Temporalidade de Documentos Para elaboração dos instrumentos, o Centro de Gestão Documental (CGD) realiza reuniões técnicas com as Comissões de Avaliação de Documentos e Acesso (CADA) e com todas as áreas, técnicas e administrativas, de um determinado órgão. Então, para propor um trabalho de avaliação, é necessário conhecer o órgão como um todo, conhecer as suas atribuições, estrutura organizacional, a legislação que o rege, e, a partir delas começar a identificar a produção documental. A gente conversa com as áreas produtoras de documentos para entender qual é o fluxo para executar determinadas ações que são inerentes à atribuição daquele órgão/setor. Precisamos identificar todos documentos produzidos, os avulsos e os que compõem esse fluxo. Mediante a identificação dos documentos, análise de legislação específica, código civil ou legislação referente aos prazos prescricionais e precaucionais podemos propor uma temporalidade e determinar se o documento é de guarda permanente, se pode ser eliminado, também é necessário identificar o período que o documento precisa ficar na sua unidade produtora por ainda ser útil para subsidiar os gestores, se ele pode ser encaminhado para o arquivo intermediário para cumprir os prazos precaucionais e prescricionais e o período legal para sua eliminação”.
Então, a avaliação pressupõe um estudo minucioso dos documentos?
“Sim, precisamos fazer uma profunda reflexão sobre a produção e acumulação dos documentos, sobre a composição dos documentos, verificar se aquele documento é um expediente, um processo, documento avulso, dossiê, prontuário, estabelecer espécie e tipologia documental, definir a atividade que o gerou etc. A produção documental reflete diretamente a estrutura e o formato funcional administrativo dos órgãos. O trabalho realizado pelo Centro de Arquivo Administrativo consiste na aplicação dos instrumentos de gestão documental (Plano de Classificação e Tabela de Temporalidade) na massa documental acumulada a partir de 1941. Todo órgão administrativo que existiu no passado ou que ainda funciona, realiza compra, contratação de recursos humanos, controle de patrimônio etc. O que muda é a forma como isso é feito. A legislação também vai se atualizando no decorrer do tempo. As atividades de avaliação e classificação têm um caráter científico, pois, de forma criteriosa, se realiza um grande estudo da estrutura funcional e legal da instituição. Fazemos estudos de procedimentos e de fluxos de documentos em diversos períodos históricos. Por exemplo: mapear o fluxo de como era feita uma contratação de pessoas e serviços na década de 1940, quando ainda não tinha a lei 8.666[1]. Então, a gente consegue mapear o fluxo dos documentos que compõem aquele processo de contratação, identifica todos os documentos que compõem aquele processo e conseguimos localizá-lo no modelo de classificação atual para aplicamos os mesmos prazos estabelecidos pelos instrumentos de avaliação existentes”.
As informações desses estudos dos documentos ficam registradas em formulários ou coisa parecida?
“Cada documento que analisamos gera uma ementa: é analisado o trâmite; qual a motivação para produção daquele documento; a composição do documento; o conteúdo, as datas limites, a legislação atual ou da época para aquela ação específica. Analisamos as características formais, diplomáticas, que o documento possui para fazer essas definições. Com a experiência acumulada pelo Departamento foram criadas fichas de registros de análise documental que trazem maiores detalhes desses estudos feitos sobre o documento. Estas fichas estão em fase de teste desde maio de 2016. São fichas para vários momentos: uma ficha para elaboração ou atualização de tabela de temporalidade; uma ficha específica para classificação de massa documental acumulada; e nós temos uma ficha específica para quando uma secretaria que produz determinado documento que não tem na tabela e precisa identificar a destinação, eliminação ou guarda permanente. Fizemos isso, porque não queremos que esses procedimentos no domínio exclusivo de pessoas específicas, mas que sejam objetivados para uso coletivo. Estruturar uma metodologia de trabalho clara para que esse conhecimento se reproduza e seja aplicado. Estamos elaborando uma espécie de guia prático de aplicação da tabela-meio, que ainda não está oficializado, para aprofundar os estudos sobre determinadas séries documentais”.
É um estudo científico do documento, mas bem diferente do olhar do pesquisador?
“Quando olhamos para o conteúdo do documento, o que queremos é apenas identificar a função, a ação para qual ele foi criado. Essa ação está refletida na estrutura administrativa do órgão. Os aspectos diplomáticos do documento é um deles; queremos é entender o contexto de produção. Ele reflete a estrutura administrativa do período em que ele está sendo produzido. Das regras legais que regem aquela produção documental. É uma atividade de investigação complexa mas diferente do olhar daquele pesquisador que busca os mais variados sentidos documento e seu conteúdo.Entretanto, esse processo não é estanque, depois de elaborados os instrumentos podem ser aplicados na produção documental atual e na massa documental acumulada, uma vez que, a função analisada não tenha sido extinta da ação estatal. Ao avaliarmos, o nosso olhar precisa ser ampliado. Quando avaliamos uma massa documental, temos a preocupação de tentar entender o que acontecia na sociedade naquele momento. Por exemplo, fizemos uma avaliação e encontramos o processo administrativo de Plínio de Arruda Sampaio quando perdeu os direitos políticos. Então, sentimos necessidade de contextualizar e entender aquele período histórico, pois isso nos ajuda a entender melhor o documento. Teve o caso em que encontramos processos da educação em que o governo pedia auxílio financeiro para as famílias. Era no período da segunda guerra mundial em que se buscavasubsídios para enfrentar a situação de guerra. A gente acaba tendo essa preocupação. A produção documental atual está mais colada à administração, mas na massa acumulada a gente tem essa preocupação de entender o período histórico e por esse motivo as comissões de avaliação requerem equipes multidisciplinares”.
O que acontece quando se localiza documentos que não se enquadram em um plano de classificação existente?
“Cada série documental que surge de uma massa documental em análise precisa ser entendida.Há documentos que nos colocam muitas dificuldades para o colarmos na estrutura administrativa concebida. Muitas vezes não conseguimos chegar na série documental, porém, a atividade está ali refletida: função, subfunção, atividade, série documental. Às vezes, chegamos a reconhecer que aquela atividade está refletida ali, aí classificamos o documento na atividade e não na série. E quando vamos aplicar a avaliação, adotamos o maior prazo de guarda previsto na atividade. Porém, muitas vezes, o maior prazo indicado na tabela é a guarda permanente e nem sempre o documento tem uma relevância para esse prazo. Aí o Arquivo tem essa atribuição de propor um tratamento adequado para aquele caso específico”.
Quais os critérios que são utilizados par a avaliação. Como fazer para se afastar de critérios subjetivos e se aproximar da objetividade?
“Há, sim, alguns critérios gerais. Em síntese: definimos, primeiramente, se aquela série documental é pertinente a atividade-meio ou fim; depois avaliamos todos os aspectos legais possíveis que tornam aquela série reserva de obrigações e direitos; perguntamos se as informações típicas daquela série podem ser encontradas em outra série documental; avaliamos se aquela série documental é depositária de informações densas sobre as atividades essenciais da instituição. São questões dessa natureza. Assim, evitamos os casuísmos”.
Notas
- [1] Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Art. 1o Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Fonte: Planalto.gov.br - Link: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L8666cons.htm