O título desta seção instiga-nos à questão: ao analisar, avaliar e classificar documentos há algum esforço de interpretação do arquivista em exercício de suas funções?
Ana Maria Camargo é uma das estudiosas que nos fornece reflexões instigantes a respeito das características profundas dos documentos de arquivo. Partindo da constatação de que os documentos de arquivo são produzidos por imperativos de ordem prática, sem qualquer intenção de se transformar em fonte para a história, Camargo contrasta essa característica peculiar do documento de arquivo com os exercícios de semiose realizados por aqueles que exercem o “esforço de ultrapassagem” dos aspectos formais e de contexto do documento. Vejamos esse trecho extraído de uma dessas reflexões[2]:
(...) os documentos de arquivo aspiram à monossemia e à estabilidade de sentido. Daí a economia que preside a feitura de espécies e tipos documentais: o apego a convenções dotadas de grande força ilocucionária, o recurso a fórmulas redutoras de ambiguidade, a explicitação das circunstâncias em que foram produzidos. Pode-se mesmo afirmar que os documentos de arquivo promovem, via de regra, o entendimento literal de seu conteúdo, até quando adotam formas discursivas ou discricionárias.
Coerente com a sua construção e ao se referir à atividade de avaliação arquivística de documentos, a historiadora faz uma conclusão contundente:
A procura de “reserva de sentido” nos documentos de arquivo pode ser um belo exercício de imaginação ou futurologia, mas não tem nenhum cabimento no processo de avaliação, sobretudo de material cuja propriedade de autocontextualização é notória.
De fato, quando o profissional de arquivo se posiciona diante de uma disforme “massa documental” para triagem, organização e avaliação, ele já terá realizado estudos aprofundados e minuciosos sobre a instituição produtora/acumuladora, restando-lhe, então, a análise empírica dos documentos cujo esforço “interpretativo” terá um único sentido, qual seja: o de reconstituir, no limite do possível, a estrutura funcional da instituição.
Nos dizeres de Ana Camargo, o seu contexto de produção, ou seja, as razões pelas quais o documento é produzido - sempre para fins de prova – deve ser preservado a todo custo, sob pena de fazê-los perder a capacidade de refletir a instituição de origem. Ainda segundo ela, qualquer intervenção no sentido de romper seu equilíbrio originário acaba por “implodir” o próprio arquivo.
Porém, a instituição produtora/acumuladora, por sua vez, responde a um contexto histórico sociopolítico determinado, em que decisões de gestores públicos são tomadas e veiculadas por essas mesmas instituições, respeitando-se (mais ou menos) as determinações legais de suas atribuições. Decisões que podem, de alguma forma, se refletir nos documentos por ela produzidos/acumulados.
Nesse sentido, a historiadora deixa margens para que pensemos o tal contexto de produção de forma mais ampla e profunda:
Fica mais ou menos óbvia, a partir das ponderações feitas, a importância dos arquivos para a reconstituição das realidades do passado. E essa importância é tanto maior quanto mais amplo, profundo e duradouro é o grau de intervenção das instituições no âmbito da sociedade (como ocorre com as Câmaras municipais, as Prefeituras, os Tribunais de Justiça etc.), fazendo com que seus arquivos sejam capazes de espelhar não apenas o modo como funcionaram, mas também, por extensão, as realidades com as quais, de um modo ou de outro, se envolveram.
Feitas essas considerações, cabe justificar que a apresentação de depoimentos de técnicos em avaliação documental na seção Intérpretes do Acervo serve como uma provocação instigante, posto que, ao analisar o documento para fins de avaliação, o arquivista buscará, exatamente, se eximir do exercício interpretativo.
Pois bem, convidamos o leitor continuar essa reflexão, agora a partir de relatos de alguns profissionais da área de gestão documental.
Notas
- [1] O Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano define hermenêutica como qualquer técnica de interpretação. Trata-se de termo muito utilizado para aqueles especialistas na interpretação de livros sagrados.
- [2] As passagens citadas do texto de Ana Maria Camargo, expressas em itálico, foram extraídas do artigo Sobre o valor histórico dos documentos, publicado na revista Arquivo Rio Claro, Rio Claro (SP), nº 1, 2003, p. 11-17. Este artigo pode ser consultado por meio do link abaixo: http:// www.aphrioclaro.sp.gov.br/ site/ wp-content/ uploads/ 2016/ 07/ Revista-do-Arquivo-n%C2%BA-1-2003.pdf