Márcio Amêndola de Oliveira [*]
Foto/Márcio Amêndola

Arte sobre Reprodução de página do Dicionário Aurélio/Márcio Amêndola
Houve um rei que desprezava todo o passado, toda lembrança, toda memória que pudesse carregar mais brilho que suas realizações, seus grandes feitos. Mas a todo momento, em cada esquina de seu vasto império, havia um testemunho de gerações e gerações que deixaram marcas, cicatrizes, pois “de tudo fica um pouco”. [2]
O déspota ansiava lutar contra o passado, mas para tanto necessitava de uma eficaz estratégia. De início buscou amedrontar, matar, aterrorizar... não sendo isto suficiente, pensou em algo ainda mais sórdido, tirar os filhos de seus pais e mães, doutriná-los, fazê-los renegar o ventre que os gerou. Seria uma nova casta de homens e mulheres, sem passado, sem história, com um imenso e glorioso futuro pela frente.
Não foi ainda suficiente. Muitas destas crianças aprendizes não se mostravam cruéis e livres o suficiente para seguir adiante. Nos imensos alojamentos dessas futuras bestas-feras, mesmo diante de severa disciplina e doutrinação, podia-se ouvir nas madrugadas frias, lamentos e choros de pequenos que insistiam em amar, lembrar, suplicar por um afago de uma mãe, uma avó distante...
Então, o grande líder usou de toda a sua força e violência para causar essa ruptura definitiva com o passado. Passou a queimar os livros de história, os romances, as poesias, e até livros de medicina, geometria, física quântica...
Sendo ainda infrutíferos seus esforços para criar a nova raça, inventou distrações para seus forçados discípulos, com mimos, jogos, interações em circuitos fechados, redes de comunicação, com a máxima interatividade fria que impede o contato pessoal e físico. Para isso, usou da mais alta tecnologia. Os jovens, confinados um a um em seus aparelhos eletrônicos, trocavam frenéticas mensagens entre si, mas que a cada dia eram apagadas, sem deixar vestígios. Então, o amigo de hoje se perdia amanhã, mas a cada dia surgiam tantos e tantos outros amigos, que mal se concebia que havia solidões em meio a tantos e tantos clicks...
Ainda sendo estas medidas insuficientes para sepultar o passado, recordações foram confiscadas pelos centuriões do rei, que vasculhavam casas à busca de cartas familiares, de amor, fotos dos avós, dos bebês... o uso do papel e da tinta foram terminantemente proibidos, e as comunicações rigorosamente controladas.
Foram-se as bonecas, brinquedos, perfumes, sapatos e casacos antigos, qualquer cheiro ou imagem de afeto que se pudesse encontrar. Agora as casas eram limpas e livres de qualquer referência sentimental, livres, enfim, do “insuportável mal cheiro da memória”. [3]
Foi então que o déspota mandou buscar e destruir todos os documentos de todos os arquivos, as certidões de nascimento, casamento, óbitos, os registros escolares, de terras, os papéis da antiga burocracia, as imagens, os filmes, os bilhetes, agendas, calendários, prontuários de hospitais, de trabalhadores...
Depois de todo esse esforço para gerar uma nova sociedade, um novo tempo, sem dor, sem falsas piedades, um tempo limpo, claro e iluminado, chegou a primeira noite nos alojamentos coletivos de meninos e meninas, em que nenhum sussurro, nenhum gemido, nenhum pesadelo, nenhuma voz se ouviu.
Então, diante do Grande Silêncio, o déspota viu que sua obra estava completa; as crianças, na distorcida interpretação do sonho de Locke, [4] estavam de volta à tabula rasa, prontas para que seus sistemas fossem reiniciados para a nova sociedade que se construiria, sem sentimentos, sem mágoas, sem amor ou ódio, sem substância, sem angústias ou legado. E o mais completo e absoluto silêncio se fez.
DISSOCIAÇÃO 1. Ação ou efeito de dissociar-se; separação, decomposição, desagregação; 2. Processo ao longo do qual os conjuntos coerentes de pensamentos, ações e comportamentos se desintegram em seus elementos e esses fogem ao controle do indivíduo.
DISSOCIAR 1. Desfazer uma associação; 2. Desunir, separar, dissolver.
DISTOPIA 1. Lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia; 2. Qualquer representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual; antiutopia [famosas distopias foram concebidas por romancistas como George Orwell (1903-1950) e Aldous Huxley (1894-1963)].
QUEIMAR 1. Ato ou efeito de queimar; 2. Ato, processo ou efeito de ser consumido pelo fogo; combustão, cremação, incineração; 3. Queimada, queima.
QUEIMA DE ARQUIVO 1. Ação criminosa com o fim de eliminar provas e/ou testemunhas de um delito; 2. O efeito dessa ação; 3. Sinonímia de combustão.
Notas
- [*] Executivo Público, Historiador
- [2]Do poema “Resíduo”, de Carlos Drummond de Andrade.
- [3]Idem ant.
- [4]John Locke, filósofo inglês (1632-1704)
REFERÊNCIAS
HOUAISS, Antonio. Villar, Mauro de Salles. Franco, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Objetiva,2009, p. 697, 698, 699, 1589.