Urbanismo, tempo, espaço e trabalho e movimentos sociais se encontram no Arquivo
“O passado é um país estrangeiro”
Observar Clara Gouraud, jovem estudante francófona, recém chegada ao Brasil, debruçada a ler e interpretar um documento antigo em língua portuguesa arcaica, para o qual nós, lusófonos, muitas vezes precisamos da ajuda do paleógrafo, instiga à pergunta: “como é que foi o contato com essa documentação de um outro tempo, em uma outra língua?”, ao que Aurélia, orientadora de mestrado da Clara, prontamente respondeu com sotaque bem mais acentuado que o do seu colega geógrafo: Pois, acho que os historiadores têm a obrigação de enfrentar essa dificuldade. Há uma frase que diz: ‘’O passado é um país estrangeiro”. Acho que, para nós, o passado brasileiro vai ser mais estrangeiro ainda, mas é a mesma lógica como estudar história medieval japonesa. Mas, a nossa atividade de historiador exige familiaridade com o documento, Isso é a base do trabalho.
América latina sob olhar multidisciplinar
O geógrafo Sylvain Souchaud esteve no Brasil pela primeira vez, a passeio, em 1993 e, em 1997 fez dos fenômenos da imigração e processo de urbanização na América Latina seus objetos de pesquisa que duram até os dias atuais. Chegou a morar aqui no Brasil por cinco anos, entre 2005 e 2010, numa época em que, segundo ele, havia muita esperança de mudanças políticas. Sylvain fez seu doutorado no Paraguai sobre a imigração brasileira. Como bom geógrafo, sempre realizou pesquisas em trabalhos de campo, e, ultimamente, incluiu os arquivos nas suas pesquisas empíricas em busca de documentação relativa à imigração em São Paulo. Para mim foi neste Arquivo que começou também a minha experiência com um arquivo histórico, afirma Sylvain.
Aurélia Michel, historiadora da América Latina, garimpa o arquivo textual do APESP como fonte para alimentar suas pesquisas que abrangem vários temas da história social, como ela mesma explica: Desde o meu doutorado trabalhei no México; não conhecia o Brasil, nem São Paulo, nem a língua portuguesa, mas na minha trajetória universitária decidi começar com pesquisa da história do Brasil e especificamente com linhas temáticas com as quais já trabalhava, que são história urbana, história social e com um forte interesse para a história da urbanização e da sociedade urbana. Decidi pesquisar em São Paulo e encontramos vários colegas interessados nas mesmas temáticas e decidimos montar um projeto com a Universidade de São Paulo e colegas da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP), outros colegas de Paris, sem saber exatamente como poderíamos organizar a pesquisa, a partir de quais documentos. Tinha colegas que não eram historiadores, como o Sylvain, e tinha colegas como eu, historiadores que não conheciam o Brasil e trocamos experiência.
Imigração sem fronteiras
Sylvain atuou com demógrafos vindos da geografia e da sociologia em pesquisas nas fronteiras da Bolívia, do Paraguai, da Argentina e do Brasil, onde realizou entrevistas, aplicou enquetes quantitativas e questionários em busca daquelas informações que os estudos teóricos e bibliográficos não eram capazes de fornecer. No processo de migração interna na Bolívia vimos que uma parte dos bolivianos chegavam até fronteira, tanto que chegavam até o lado brasileiro. Então, estudamos a migração boliviana para Corumbá, do lado brasileiro, como um desdobramento da migração interna na Bolívia, e o meu interesse também era estudar imigração boliviana no Brasil. Então, a partir de Corumbá pude perceber também que havia um desdobramento do fluxo de migração para o Brasil, uma parte chegava na fronteira, Corumbá, e outra parte seguia até São Paulo. A partir das perguntas sobre migrações regionais, cheguei à questão urbana. Eu percebi que eu não ia entender a migração, a questão demográfica, sem entender a cidade, então, comecei a me interessar pela questão da cidade, povoamento e crescimento, essas coisas que fazem parte da geografia urbana.
O fato social por outras perspectivas
A evidente questão da mobilidade populacional no mundo atual em crise de diversos matizes, certamente, também estimula os estudos de Aurélia Michel. Porém, ela busca enxergar esse fenômeno em perspectiva histórica e a partir de ângulos diferentes daqueles mirados desde o centro da Europa.
Aurélia ministra curso de graduação que, segundo ela, trata mais da América Latina e menos do Brasil. Agora está empenhada em desenvolver projetos de pesquisa sobre imigração sob a ótica da história social, como a evolução das normas, das práticas jurídicas, a história política, demográfica, urbana e evolução material da cidade.
E quando meus alunos demonstram interesse pelo Brasil, tento fazer com que se interessem por São Paulo, porque sei que, se eles quiserem fazer uma pesquisa, poderão vir aqui e encontrar ajuda, interlocutores e vai ser muito mais eficaz, afirma Aurélia
Experiência no APESP e a construção interdisciplinar do conhecimento

Desde 2016, Sylvain e Aurélia pesquisam no Arquivo e indicam colegas e alunos a fazerem o mesmo. A equipe de editoria os questionou sobre como foi a estadia na instituição durante suas pesquisas. São exemplares e reveladoras as palavras deles, pois mostram que essa relação pesquisador/atendimento é complexa.
Foi aos poucos, porque ao mesmo tempo que definimos cada vez melhor a nossa pesquisa, também os interlocutores que temos aqui no APESP entendem-nos melhor; e as perguntas vão melhorando e temos as respostas que nos permitem também melhorar, reformular e reorientar a pesquisa, não somente em função do que existe no arquivo, mas também em função de questões e ideias que surgem com a leitura dos documentos. Então, a prática ela mesma define a pesquisa; por isso o projeto de pesquisa hoje ele é muito diferente do que era inicialmente. Mas, foi uma construção mútua entre o arquivo e nós, pesquisadores. Quando interagimos com a equipe do Arquivo, ficou muito melhor, mudou muito, porque souberam, em função das conversas que tivemos, entender o que queríamos e o que era possível achar aqui. Aurélia segue na mesma linha e nos dá mais detalhes: Acho que o pesquisador chega aqui com um desejo que não está articulado com as possibilidades do documento e, ao contrário, o arquivista está por dentro do documento, porque sabe como funciona a lógica de sua organização e guarda. Então, esse diálogo entre o desejo do pesquisador e a realidade do arquivista é muito importante e é assim que se faz a pesquisa, é uma construção compartilhada.
Trajetória até o Arquivo

O Arquivo Público do Estado de São Paulo foi um dos pontos de encontro dessa equipe multidisciplinar. Nas palavras de Sylvain, eu não tinha nenhuma experiência no trabalho arquivístico, mas, juntamos um projeto, cada um com sua especificidade; então, fomos trocando informações e o lugar de trabalho, que foi muito bom para nós, onde todos nos encontramos e pudemos conversar foi justamente aqui no Arquivo.
O fundo hospedaria dos imigrantes do APESP foi, inicialmente, o que atraiu Sylvain e Aurélia.
Tempo e espaço em diálogo e encontro no Arquivo

Mas, como conciliar os olhares da historiadora, com seus métodos e hábitos de pesquisa peculiares, ao do geógrafo, muito mais focado na observação especializada territorializada do fenômeno histórico? Para Aurélia, foi fácil, pois os interesses mútuos eram muito fortes, mas claro que nos primeiros anos as dificuldades que tivemos eram para colocar uma metodologia comum. Isso foi uma aprendizagem que tivemos. Por exemplo, eu como historiadora sou obcecada pelos processos, sequências, então, eu vou querer seguir uma serie de dados no tempo; o Sylvain geralmente tinha a necessidade de ter um conjunto de dados antes de poder interpretar qualquer informação. Então, a pesquisa no arquivo era orientada pelos mesmos motivos e teve um tempo para conhecer mais ou menos o que cada disciplina exigia.
Por seu lado, Sylvain revela que foi bom porque foi um lugar de encontro, quer dizer, sempre temos uma solicitação para ter mais interdisciplinaridade. No caso, o Arquivo foi a ocasião onde confrontaram-se os métodos, objetivos, problemáticas formuladas de forma muito diferentes sobre questões semelhantes.
Permanece o interesse pelo Brasil como objeto de pesquisa dos franceses
A influência francesa sobre a academia brasileira, e paulista em particular, é evidente na história. Pensemos na chamada “segunda missão francesa” presente na fundação da Universidade de São Paulo, no início da década de 1930. Sobre essa questão, os pesquisadores franceses apresentam respostas similares.
Há interesses. É sempre uma luta para manter o espaço científico de uma pesquisa que não seja europeia ou francesa, mas tem essa tradição e acho que é muito importante para o mundo acadêmico europeu e estamos muito convencidos da necessidade de sair e de ter conhecimento com profundidade de outros países. Então, o meu laboratório que organiza pesquisas na França está especializado em pesquisa fora da Europa, África, Ásia, Médio Oriente. Essas são palavras da Aurélia, cuja ideia é reforçada por Sylvain, nesses termos:
No meu laboratório, mais da metade é trabalho de fora da Europa, e uma boa parte na América do Sul, e justamente a questão central temática é a migração internacional.
Seguindo a trajetória de Pierre Monbeig
Sylvain se assume como representante de uma terceira geração de geógrafos “brasilianistas”, desde a atuação aqui do famoso intelectual francês Pierre Monbeig, um daqueles que formaram essa “missão francesa” na USP.
Sempre houve e ainda há uma parte dos geógrafos franceses, que são poucos, especializados sobre o Brasil; é ainda hoje uma preocupação das instituições. Pierre Mombeig estudou a migração, a frente pioneira do café de São Paulo, ele teve um aluno que se chamava Raymond Pebayle, que fez também um estudo do front pionnier do sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, e eu fui aluno de Raymond Pebayle e, portanto, pertenço a essa “terceira geração” de geógrafos interessados no Brasil. Pebayle me mandou para o Paraguai estudar os últimos passos da colonização agrícola. Então, eu sigo nitidamente essa linha que o Mombeig colocou sobre os estudos que ele chamava sociedade de movimento, essa colonização agrícola que ele denominava a frente pioneira, chamava estudos de uma geografia em movimento, uma sociedade em movimento, isso ficou bastante forte na geografia francesa.

Pierre Monbeig: Geógrafo e professor, formou-se em Paris em 1931. Chegou ao Brasil em 1935, contratado pela recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, para assumir a cátedra de Geografia Humana, substituindo o professor Pierre Defontaines. Em sua permanência na USP (1935–1946), orientou toda uma geração que se iniciava nos estudos geográficos, estimulando em especial a investigação sobre cidades e áreas de colonização. Com outros professores, criou a Associação dos Geógrafos Brasileiros (1945). Retornou à França em 1946, onde lecionou em várias instituições de ensino, entre elas a Sorbonne. Foi agraciado com vários prêmios e títulos como o da Fundação Nacional de Ciências Políticas de Paris e o Auguste Logerot da Sociedade de Geografia da França. É autor de importante produção bibliográfica, na qual destacam-se Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, La croissance de la ville de San Paulo, Ensaios de geografia humana brasileira e Novos estudos de geografia humana brasileira. Verbete extraído do Guia do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), disponível em: http://www.ieb.usp.br/pierre-monbeig/. Fonte: Pierre Monbeig. Fonte/Foto: Extraída da Revista Franco-brasileira de Geografia, nº 1, 2007
Pesquisadores destacam a organização e estrutura do APESP
Os pesquisadores franceses destacaram ainda a estrutura, organização e o alto padrão do atendimento no APESP: eu tenho pouca experiência, obviamente, sobre arquivos, mas, nem mesmo em outros lugares no estado de São Paulo se encontra, e ainda menos em outras cidades do Brasil, então, realmente aqui notamos, óbvio, que é um serviço de uma riqueza muito bem valorizada e disponibilizada. Eu acho que o Estado, em geral, tem que sempre ter um papel muito importante no conhecimento, na produção, preservação, transmissão de maneira geral e obviamente nem precisa dizer na parte histórica que é muito importante, conclui, Sylvain.
O Arquivo como fonte de pesquisas
É consenso entre os historiadores a importância dos documentos de arquivo para a narrativa na produção da história, como enfatizou a historiadora Aurélia Michel na sua entrevista. Entretanto, vale destacar a expressão do geógrafo Sylvain Souchaud em relação a isto:
Eu gosto de uma geografia feita com base em fontes primárias e as nossas fontes são o trabalho de campo, são os dados estatísticos, são observações, são entrevistas, trabalho empírico, e para mim é novo o uso de documentos históricos para realizar o nosso trabalho. Como geógrafo eu sou acostumado a ter muitos dados e quando não os tenho produzo-os, sei fazer uma observação, um levantamento de campo, isso eu aprendi a fazer, agora pude aprender a lidar com os dados de arquivo e isso me causou um impacto.
Frutos da pesquisa

Aurélia e Sylvain demonstram muita satisfação com os resultados de suas pesquisas no Brasil. Sylvain cita uma publicação com um grupo de professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenado pela professora Ana Lanna, que também coordenará uma publicação pela EDUSP, reunindo textos dos membros pesquisadores que participaram do projeto. Segundo Sylvain, uma parte será sobre São Paulo, outra parte sobre o Rio de Janeiro, mas os textos são sobre o recorte do projeto que é a urbanização e metropolização no início do século XX nessas duas cidades.
Vale menção, também, ao caso da estudante Clara Gouraud, orientanda de mestrado de Aurélia Michel, que veio no ano passado para estudar o tema maternidade durante o final da escravidão no Brasil, no processo de abolição. Clara consultou muitos documentos, em especial o fundo juízes de órfãos. Conforme palavras de Aurélia, ela chegou aqui e se encontrou com a equipe do arquivo e foi um encontro muito rico para ela, voltou muito feliz, encantada por essa colaboração, pois era algo muito concreto. Antes de sair para o Brasil, ela pensava em deixar a investigação, porque era toda realizada sozinha com os livros, não sabia o que fazer. Mas, quando chegou e encontrou com vocês foi muito dinâmico, percebeu que tinha muito mais a pesquisar, outros fundos e muito mais, era tudo uma aventura para ela, gostou muito e fez um trabalho maravilhoso.
A sua pesquisa abre questões que não tinham sido abertas nos membros da banca do mestrado e eles ficaram muito impressionados e até os fazia pensar em projetos para eles, e o trabalho foi muito bem avaliado.
A partir da sua dissertação, defendida em setembro de 2017, [1] Clara produziu artigo já publicado pela revista francesa Problème de l’Amerique Latine, [2] no número 108 do periódico. E, como fruto dessa cooperação, a Revista do Arquivo recebeu a autorização da congênere francesa para publicação, do artigo de Clara Gouraud, traduzido para o português nesta edição (ver: “Artigo de autora convidada”).
Outros alunos e colegas virão
A passagem interativa dos pesquisadores franceses, pelo APESP foi muito gratificante e reforça a necessidade de investimento no tratamento do acervo desta instituição e também na sua política de atendimento. Além disso, ficamos felizes quando temos o retorno positivo dos usuários, conforme depoimento de Aurélia: aqui encontramos essa interface muito eficaz, muito agradável e sempre levamos mais perguntas, mais desejo de pesquisar, isso é muito importante, porque tem um nível internacional; queríamos também valorizar quando damos aulas na França e claro que queremos que os estudantes e colegas conheçam este Arquivo em São Paulo. Espero que esse nosso intercâmbio com universidades e com este Arquivo continue a dar frutos.
- [1] Clara Gouraud, Filiation maternelle et liberté: stratégies d’émancipation des mères esclaves et affranchies dans la ville de São Paulo en période de transition (1871-1897).
- [2]https://www.cairn.info/revue-problemes-d-amerique-latine-2018-1.htm