Intérpretes do Acervo

Filipe Moreno Horta

Arquivos: conhecimento social, garantia de direitos e resistência

Primeiro contato com o Arquivo Público do Estado (APESP)

Felipe Moreno Horta

Meu primeiro contato com o APESP foi neste ano de 2019, e tem sido extremamente positivo. A estrutura, a organização e o conhecimento de todas e todos que compõem o corpo do Arquivo auxiliaram de forma relevante para a realização da pesquisa, principalmente naqueles casos em que o tempo é mais curto do que nós gostaríamos de possuir junto a documentos tão ricos. Apesar de realizar esta pesquisa sem recurso de agência de fomento, com o apoio de minha irmã que residia nesta cidade, no período compreendido entre janeiro e março, pude realizar 42 visitas ao Arquivo. A realidade estrutural do APESP permitiu um grande ganho qualitativo e quantitativo para a preparação do campo e da pesquisa, e os auxílios que recebi de Alexandre Eymard de Souza e Márcia Beatriz Carneiro Aragão contribuíram de forma precisa e enriquecedora com os meus trabalhos.

Pesquisas de campo e nos arquivos

Em 2001, quando criança, tive o privilégio de conhecer o Parque Estadual da Ilha Anchieta (PEIA) e minha conexão com as ruínas da antiga prisão foi imediata. Após dez anos, minha pesquisa de Iniciação Científica teve início no “arquivo morto” do PEIA, abordando o cotidiano prisional e eventos que lá ocorreram durante as décadas de 1940 e 1950. Devido às características geográficas e estruturais da ilha, dependendo de maré e luz solar, o ato de pesquisar sempre apresentou desafios e surpresas, mas com um rico diferencial: a consulta no próprio local de produção, hoje ocupando as antigas salas de “Arrecadação” e “Alfaiataria”.

Já no doutorado, em 2017, pude realizar longa pesquisa de campo, desta vez com o recorte histórico do Presídio Político (1931-1934; 1939?-1942) e Colônia Correcional (1934-1939?), trazendo à tona as primeiras informações sobre os cidadãos privados de liberdade e da própria trajetória de um arquivo prisional ilhado e em um regime de exceção. Agora, em 2019, iniciei a segunda e última etapa de pesquisa, no APESP.

O APESP, seu material e pessoal mostraram diversos caminhos novos e outros desdobramentos possíveis, o que, sem dúvida, é um marco para a tese a que me dedico e para a minha aprendizagem e meu desenvolvimento enquanto pesquisador.


Um diferencial do APESP é que ele permite a criatividade, pois o acervo engloba múltiplos fundos e, para minha pesquisa em particular, é o local que concentra parte considerável da documentação oficial produzida em torno daquela prisão. Portanto, não foram raras as vezes em que recorri a outras fontes, na tentativa de elucidar fatos mencionados em outros documentos, como, por exemplo, fazendo busca por relatórios de inspeção de saúde, atestados de óbito do IML, ou de obras públicas realizadas sem Ubatuba, tendo em vista ser uma estrada de rodagem feita com mão de obra de sujeitos privados de liberdade.

Dificuldades e estratégias na busca de documentos relacionados ao tema

Foto: arquivo pessoal

Pavilhões do presídio da Ilha Anchieta destinados ao serviço de saúde e rouparia.

Pavilhões do presídio da Ilha Anchieta
destinados ao serviço de saúde e rouparia.

Um primeiro ponto, indico que esta é a primeira pesquisa sobre o Presídio Político da Ilha dos Porcos, atual Ilha Anchieta. Um segundo é que esta pesquisa vem sendo conduzida sem auxílio das agências de fomento. Localizei no PEIA cerca de 4 mil documentos que abrangem 1933-1942 que, assim como alguns arquivos da Academia de Polícia Civil de São Paulo (ACADEPOL) apresentam vertiginosas lacunas documentais nos anos de maior conturbação política, como 1932, 1935 e 1937. O ponto de partida documental é o livro de matrículas dos indivíduos encarcerados, que apesar de avariado por incêndio e com páginas arrancadas, registrou os casos de 1933 e 1938, trazendo algumas menções biográficas. A estes somei aqueles mencionados em radiotelegramas, traçando entradas e saídas daqueles indivíduos. Um obstáculo é que não há, neste recorte do PEIA, indicações claras de que houve “presos políticos”, o que corroboraria a versão de memorialistas, narrativas orais e, inclusive, de recentes publicações historiográficas. Entretanto, a importantíssima coleção “Inventário DEOPS”, coordenada pela Profa. Maria Luiza Tucci Carneiro, há quase duas décadas nomeou alguns personagens políticos que tiveram passagens pela ilha.

Esforço concentrado em pesquisa no APESP: garimpagem em mar de informações

Por todo o exposto, os meus objetivos no APESP foram dois: o primeiro foi diminuir as lacunas prospectando documentos contextuais (relatórios, portarias, livros de registro, sindicâncias, estatísticas etc.); e o segundo, a partir de uma lista inicial com mais de 500 nomes levantados no PEIA, identificar quem eram aqueles cidadãos, brasileiros e estrangeiros – número que quase dobrou após a pesquisa. Portanto, para compor a trinca, os prontuários do DEOPS e os ofícios expedidos pela Delegacia Regional de Santos foram cruzados de forma a complementar as trajetórias, descartar homônimos, localizar o número de Registro Geral (RG) e, de novo, “garimpar” os nomes nas fichas, em busca de novos prontuários. Muitos nomes não possuem prontuários ou fichas remissivas correspondentes, reforçando a necessidade de pesquisa nos ofícios da Regional, vez que, em alguns destes mencionados ofícios, havia dados biográficos informando às autoridades receptoras quando o citado havia passado por aquela delegacia.

No APESP, trabalhei quase exclusivamente com o fundo da Segurança Pública, consultando o acervo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS-SP) e o acervo da ACADEPOL. Por haver poucas menções literais ao presídio, inclusive em relatórios da Secretaria de Segurança Pública, foram, ao mínimo, mais de 32 mil páginas consultadas, de forma a localizar rastros que auxiliassem a construção de uma história possível. Consultei 239 prontuários, mais de 25 mil ofícios expedidos pela Delegacia Regional de Santos e, ainda, 13 processos da Justiça relacionados às instituições prisionais. Ao todo, foram 66 caixas da ACADEPOL, 12 do fundo da Secretaria Educação, 7 da Secretaria de Transportes e 3 do Instituto Médico Legal (IML), contando ainda 5 relatórios encadernados que constam no Núcleo de Biblioteca e Hemeroteca (NBH). O levantamento final consiste em 6.532 fotografias para análise posterior.

Produtos da pesquisa nos arquivos

Meu primeiro contato com arquivos foi no PEIA, em meu último ano de graduação. Aquela breve pesquisa resultou em monografia (2011) e dissertação (2013), sendo estes primeiros produtos e desafios, que possuem tema histórico, em minha formação enquanto cientista social. À época, apesar da impossibilidade pessoal de consulta no APESP, que conserva um importante Inquérito Policial Militar sobre a rebelião de 1952, ocorrida na Ilha Anchieta, pude contrapor a lacuna histórica e a parcialidade, privilegiando as narrativas de interlocutores, as matérias jornalísticas e os documentos da antiga administração do Instituto Correcional (1942-1953), estas que permanecem no PEIA.

A pesquisa no APESP resultará em tese de doutoramento com previsão de defesa para fevereiro de 2020. O objetivo central é expor uma história possível sobre o funcionamento do presídio político, que operou de forma intermitente no litoral de Ubatuba, entre 1931-1942, como local de controle social e também político, por mais de dez anos. A pesquisa permite reconstruir trajetórias, observar o papel daquela prisão em contextos de exceção ou em contexto de certas garantias democráticas, assim como observar os mecanismos e as dinâmicas da repressão acionados e centralizados nas Delegacias de Ordem Política.

As análises das vidas e de suas cronologias, perpassadas pelo filtro daquela prisão, funcionam também como um recorte da repressão daquele período, principalmente em Santos e na capital paulista, atravessando questões presentes à época, tais como: comunismo, organização política, cotidiano urbano, emprego, imigração, deportação e outras.


Importância dos arquivos para a produção do conhecimento, para a cultura e direitos

Os arquivos nos dizem tanto que até mesmo as suas lacunas e ausências revelam segredos. As convicções presentes não passam de considerações socialmente construídas, e, quando lidamos com objetos e agentes históricos, há uma distância entre a multiplicidade dos fatos, das visões sobre estes e de como elas foram conduzidas até a versão sobrevivente, enraizada, sustentada geralmente pelo discurso oficial vencedor, discurso este que é repleto de poder e intenções próprias. As falas e as vidas silenciadas são resgatadas, também, junto às pesquisas em arquivos, muitas vezes repletos de confidências de agentes que, acredito, não imaginariam que suas produções fossem lidas posteriormente – como em um manuscrito de um comissário de polícia informando a prática da tortura. Portanto, ainda mais quando se trata de documentos provenientes de instituições e de agentes estatais, o acesso público às informações contribui diretamente para o conhecimento social, para o resgate e para a reparação histórica, reforçando garantias nacionais e internacionais dos direitos reservados a cidadãs e cidadãos. Caso os arquivos não fossem mais preservados e a nossa história não pudesse ser reanalisada constantemente, os mecanismos do arbítrio, que nunca cessam, teriam uma resistência a menos.

Quais dicas você daria para um pesquisador que pretende iniciar suas pesquisas no APESP

O APESP proporciona excelente estrutura e a facilidade de manuseio das ferramentas disponíveis no sítio eletrônico ajudam na fase de preparação da pesquisa de campo. O primeiro movimento é a consulta aos fundos no “Guia do Acervo”, observando as descrições dos grupos e subgrupos de acordo com a temática de interesse, aliando-a com a “busca avançada”. Um segundo movimento é consultar presencialmente algumas apostilas de descrição arquivística, que auxiliam no recorte das caixas que serão selecionadas para consulta.

No caso do DEOPS, a busca online pelos números de prontuários em “Fichas e Documentos” deve levar em consideração as grafias dos nomes, que podem ser diferentes do registro daqueles que os possui, devendo tentar diferentes combinações e, inclusive, escrevendo, na pesquisa, de forma incompleta, fugindo aos múltiplos “erros” ocasionados pelos trâmites burocráticos da época.

Durante uma consulta, paciência, persistência e atenção devem ser constantes, tendo em vista que, às vezes, em um conjunto de 600 páginas, por exemplo, apenas um resultado será de interesse para a pesquisa e poderá conter informação que será de enorme valia para o trabalho. É preciso também manter o foco, resistindo às tentações que o arquivo oferece, no que tange à busca por outras informações, alheias à pesquisa em questão: às vezes, documentos de grande valor aparecem e a curiosidade nos move a iniciar subpesquisas, mas que não serão pertinentes para a pesquisa atual. Portanto, caso o tempo seja curto, sugiro que, em tais casos, haja fotocópia e anotação da localização para caso haja tempo ao final ou em oportunidade futura, possa haver o retorno àquele ponto que despertou tanto interesse.

É preciso manter o foco, resistindo às tentações que o arquivo oferece, no que tange à busca por outras informações, alheias à pesquisa.


PARA SABER MAIS

  • Sobre o presídio da Ilha Anchieta, em Ubatuba, litoral norte do Estado de São Paulo, local que abrigou “múltiplas formas de encarceramento entre 1908-1955”, consulte a dissertação de Filipe:
  • HORTA, Filipe Moreno. Dia de rebelião: as margens do Estado no cotidiano civil-prisional da Ilha Anchieta (1942-1955). 2013. 161 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

    Disponível em:

    http://www.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2017/06/Dissertacao_Filipe-Horta.pdf