Intérpretes do Acervo

Fábio Dantas Rocha

Os arquivos guardam verdadeiras disputas pela história

“...o trabalho científico tem dessas coisas, na maior parte do tempo o historiador testa hipóteses e, quando entende um pouco mais da realidade, depara-se com novas perguntas que outras fontes podem ajudar a responder”.

As histórias que brotam das caixas de arquivo

Fábio Dantas Rocha

Em 2009, entrei para a Faculdade de História da Universidade Federal de São Paulo. Tive o privilégio de começar meus estudos em uma universidade que vincula, desde o início, a formação de seus alunos com as práticas de ensino e pesquisa. Por isso, desde 2011 frequento as salas e os andares do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), sempre em busca de diferentes tipologias documentais sob a guarda da instituição.

No início, pouco entendia sobre o plano de classificação da documentação e sobre o arranjo arquivístico – impasses de começo de carreira. O tempo foi passando, as explicações e os auxílios dos arquivistas e do restante da equipe se acumulando, até que a lógica arquivística se tornou evidente para mim. De lá para cá, percebi a impossibilidade de falar sobre a história da cidade e/ou do estado de São Paulo sem vasculhar as caixas e os papéis do APESP.

Já passei meses dos meus anos abrindo e fechando caixas dos mais diversos fundos e, para isso, sempre contei com o auxílio da equipe do Arquivo.

Negros e brancos na formação social de São Paulo

Sou historiador interessado em entender o processo de formação social da cidade de São Paulo, levando em conta os conflitos étnico-raciais que envolveram sujeitos negros e brancos durante a lida diária do início da Primeira República. Portanto, o período do pós-abolição muito tem me interessado. Mas, para chegar aos meus temas de estudos atuais, tive que passar por uma série muito grande de temas, arquivos, instituições e fontes.

Muito já se falou sobre a impossibilidade de se estudar o período do pós-abolição na cidade de São Paulo, devido à falta de fontes e, principalmente, à ausência da categoria “cor” dentro da documentação pertinente ao início do século XX. Uma recente historiografia sobre o pós-abolição paulistano tem demonstrado o contrário, ainda assim, a busca, como em toda a pesquisa, é árdua.

Estratégias de pesquisa e busca de novas fontes

Por isso, consultar os acervos do Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo e do Núcleo de Documentação e Pesquisa da Fundação Energia e Saneamento foi fundamental para que, aos poucos, eu fosse percebendo quais as estratégias metodológicas para melhor entender a documentação que trata das trajetórias, trabalhos, moradia e escolhas de vida das pessoas negras em São Paulo durante a primeira metade do século XX.

Valendo-me de fotografias, plantas da cidade e de processos-crime, tive acesso a informações pouco discutidas na bibliografia sobre a cidade. Foi assim que, em busca de mais vestígios sobre como noções de branquitude impactaram as vidas de mulheres e homens negros, voltei minha atenção para a documentação do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nela, pude identificar os locais de moradia e trabalho da população negra paulistana e, mais do que isso, perceber como se desenrolaram os conflitos entre brancos e negros.

Variedades de fontes de pesquisa no APESP

O tema central de minhas análises tem sido as experiências de classe da população negra de São Paulo, entre os anos de 1890 e 1930. Pretendo entender quais foram os padrões ideológicos que informaram suas ações e os contextos de conflitos entre eles e a populações branca e pobre da cidade. Ao examinar essas experiências, pude perceber que os anos da Primeira República em São Paulo estiveram relacionados a um processo de construção oficial de uma identidade paulistana pautada pela presença branca na cidade. E que esse processo, além de se reformular constantemente durante os anos republicanos, herdou padrões ideológicos informados pelos anos de desestruturação da instituição escravista.

Uma empreitada dessa monta só foi possível graças aos jornais da imprensa negra e aos livros de registros de sociedades civis do 2º Tabelião de notas de São Paulo, presentes no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Junto com eles, outras fontes foram primordiais para a elaboração de meu trabalho. Particularmente, o fundo da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo me foi muito importante; dele, vali-me dos grupos da Secretaria de Polícia da Província (conjunto: Processos de formação de culpa e inquéritos), da Repartição Central de Polícia (conjuntos: Correspondência do Chefe de Polícia, do Secretário da Segurança Pública e da Repartição Central de Polícia) e o da Assistência Policial (conjunto: Registro de ocorrências da Assistência Policial).

Estratégias para enxergar os invisibilizados nas histórias das cidades

Desde o início da trajetória, meu objetivo era entender como a população egressa da escravidão vivenciou o pós-Abolição na cidade de São Paulo. Estudante jovem, sem muita ciência das dificuldades que encontraria pela frente e sem conhecer muitas das tipologias documentais, passei a procurar por mulheres e homens negros entre as fontes sobre a cidade no início do período republicano. Não os encontrei de primeira e, aos poucos, fui acreditando que não os encontraria. Topei com uma infinidade de gente italiana, espanhola e portuguesa. Os nacionais, que apareciam entre os jornais e registros oficiais, chamavam minha atenção, mas não conseguia saber se eram brancos ou negros.

Para enfrentar esses limites, tive que lidar com uma documentação variada, sem a qual não seria possível alcançar as interpretações aqui referidas. Utilizei correspondências policiais capazes de informar a situação pela qual a província de São Paulo passou durante os anos finais da escravidão. Jornais como A Província de São Paulo (depois, O Estado de São Paulo), Correio Paulistano e alguns títulos da imprensa negra foram essenciais para acompanhar os debates acerca da situação social e política da cidade nos anos próximos da Abolição. Sobre isso, Atas da Câmara Municipal, relatórios de governadores, anuários estatísticos e a legislação municipal também me foram úteis.

A saúde como “caso de polícia”

Os pouco mais de 11.000 boletins de ocorrências médicas gerados pelo Gabinete de Assistência Policial da Secretaria da Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo, entre 1911 e 1930, foram essenciais para que eu pudesse identificar os locais de moradia da população negra paulistana e em que ela trabalhava. Por se tratar de uma fonte médico-policial, e tendo em vista os princípios racializados de organização dos processos investigatórios policiais, esses boletins de ocorrências médicas são essenciais para levantamentos demográficos da cidade de São Paulo, cujo recorte seja também a classificação racial que a Polícia fazia dos habitantes.

Sob a ótica do controle social, o decreto nº 1.892, de 1910, estipulava que à polícia também caberia a assistência pública dos hospitais, asilos, casas de caridade etc. A partir daí, em 1911, foi instaurado o Gabinete de Assistência Policial da Secretaria da Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo. Na verdade, esse gabinete promovia atendimentos médicos em postos policiais. O Gabinete de Assistência Policial fazia uma espécie de triagem de pacientes na cidade, uma vez que, dentro dele, os pacientes envolvidos em acidentes, acometidos por moléstias ou por uma infinidade de motivos, recebiam tratamento básico e, em seguida, eram encaminhados para a Santa Casa, para farmácias, para as suas residências ou, em alguns casos, para o xadrez.

A administração da saúde na capital, em alguma medida, também passou a ser vista como caso de polícia. Num contexto de quase inexistência de um sistema de saúde, os moradores da cidade, membros das mais diversas classes e nacionalidades, residentes nos vários bairros paulistanos, tinham que passar sob o crivo policial para receber auxílio médico. Era nos momentos de atendimento que esses sujeitos tinham que fornecer seus nomes, idades, cor de pele (muito provavelmente atribuída pelos agentes de polícia), nacionalidade, profissão, naturalidade (indicação da cidade natal), estado civil, local de acidente, moradia e motivo do socorro. Com o fornecimento desses dados, os postos médicos das delegacias e subdelegacias preenchiam boletins de ocorrências médicas que, embora não possam dar respostas completas para o contexto social da São Paulo dos anos 1910 em diante, fornecem importantes indícios demográficos que apontam para a análise dos modos de viver na cidade naquele momento.

Laços sociais, os modos de vida e as experiências de classe da população negra e pobre

De fato, a pesquisa mais consistente que realizei dentro do APESP foi para minha dissertação de mestrado. Às voltas em como solucionar o problema da ausência de fontes que indicassem a cor dos sujeitos, tive que aprofundar meu conhecimento sobre o antigo e o novo plano de classificação da instituição para que eu pudesse ter uma melhor noção de quais fundos, grupos e conjuntos documentais poderiam conter os indícios históricos que eu buscava. Digo poderiam, pois, o trabalho científico tem dessas coisas, na maior parte do tempo o historiador testa hipóteses e, quando entende um pouco mais da realidade, depara-se com novas perguntas que outras fontes podem ajudar a responder.

Tendo a cidade de São Paulo, entre as décadas de 1890 e 1930, como locus, busquei identificar os laços sociais, os modos de vida e as experiências de classe da população negra e pobre, e como essas experiências foram marcadas pela consciência de que os brancos pobres também tiveram identidades raciais.

Saber sobre o passado é uma tarefa árdua, é mais do que dizem os mitos, é maior do que nossos espíritos, cheios de verdade e ódio, anseiam. Antes, é preciso refletir sobre o que se vive e sobre o que viveram nossos antepassados. A vida é um amontoado de gerações que nos legaram estruturas culturais, saberes e práticas sociais, mas, também, possibilidades políticas de mudança.

A importância dos arquivos para a produção do conhecimento, para a cultura e direitos

Ter consciência sobre os processos históricos e sobre a operação historiográfica dos que produzem a historiografia é, portanto, desconstruir a naturalidade de tudo o que está vigente.

É por isso que as instituições arquivísticas são fundamentais para a sociedade. Elas guardam e oferecem indícios, quase sempre dispersos, mas valiosos, sobre quais lutas contribuíram para a formação do nosso tempo. Nelas, estão guardadas as disputas pela história. Às vezes, lendo-se à contrapelo um documento oficial, podem-se ouvir resquícios de vontades que podem não ter sido de todo esquecidas. São elas que, de alguma forma, coletam, tratam e disponibilizam materiais que contribuem para a construção de uma memória sobre a sociedade, sobre uma região ou sobre um grupo social específico. E é disso que estamos falando quando nos referimos aos direitos à memória e à história.

Os arquivos, tanto quanto os museus, bibliotecas, escolas públicas e universidade, são órgãos que contribuem para a construção de conhecimentos e que podem fundamentar políticas públicas, ideais de educação e, sobretudo, concepções de memória e patrimônio.

Desse modo, apresentam e constroem intensões de manutenção e/ou transformação da sociedade. Resta-nos saber, portanto, se esses ideais incluirão uma diversidade de experiências, de sujeitos, de histórias ou se não respeitarão o direito à memória de toda uma sociedade.

O APESP é uma instituição exemplar, nesse sentido. Apesar de toda a dificuldade, ao garantir um acesso democrático aos seus fundos e coleções documentais, contribui, sobremaneira, para o diálogo com a sociedade e para a garantia do direito ao conhecimento.

PRODUÇÕES INTELECTUAIS COM ASSINATURA DE FÁBIO ROCHA

  • ROCHA, Fábio Dantas. Saindo das sombras: classe e raça na São Paulo pós-abolição (1887-1930). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2018.
  • ROCHA, Fábio Dantas. E depois do 13 de maio?: tendências historiográficas para o estudo do pós-abolição no Brasil (2001-2010). 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade Federal de São Paulo – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, 2014.
  • ROCHA, Fábio Dantas Rocha; ZANELLI, Fernanda Fragoso. Guia dos Itinerários da Experiência Negra: um passeio histórico por São Paulo. Coletivo Crônicas Urbanas e Prefeitura de São Paulo, 23 de setembro de 2017.
  • ROCHA, Fábio Dantas. O “ronda da meia-noite”, ou um mundo que se queria branco: Silvio Floreal e as representações e condições da população negra na São Paulo pós-abolição. Revista Hydra, Guarulhos/SP, vol. 2, nº 3, p. 133-160, junho 2017.

  • Dicas para um pesquisador que pretende iniciar suas pesquisas

    Nem sempre os caminhos das pesquisas são fáceis. Foi na lida diária nos arquivos que aprendi a ter paciência. É preciso abrir, ler e fechar caixas e mais caixas de documentos até encontrar aquele conjunto documental ou aquela fonte específica que tanto lhe interessa. Mas é impossível que todo esse processo comece do zero. Por isso, sugiro aos que iniciarão suas pesquisas ao acervo do APESP, que busquem referências bibliográficas sobre seus temas e nelas percebam como as pesquisadoras e pesquisadores lidaram com as encruzilhadas metodológicas de seus trabalhos.

    Amparado por esses trabalhos, pude melhor entender o plano de classificação do APESP. A partir daqui, sugiro que o pesquisador em início de carreira, torne-se amigo íntimo do guia do acervo da Arquivo do Estado – http://icaatom.arquivoestado.sp.gov.br/ica-atom/destaques.php. Vasculhe os fundos documentais, dentro de cada um deles, perceba quais são os grupos que melhor se adequam ao seu recorte temporal e temático e, assim, notem quais conjuntos documentais respondem à suas questões.

    Foto: Arquivo Pessoal

    Publicação de autoria de Dantas

    Foto: Arquivo Pessoal

    Imagem do evento de lançamento da publicação "Itinerários da experiência negra"


    Como se vê, a pesquisa em arquivos segue um caminho tortuoso, árduo e metódico, mas isso não exclui a sorte de quem pesquisa. Mas nenhuma sorte do mundo é suficiente para quem não sabe onde e como procurar. Por isso, o pesquisador que se utilize do acervo de qualquer instituição arquivística deve, antes de tudo, conhecer bem o plano de classificação de cada um dos Arquivos importantes à sua pesquisa.