O mistério de estimação da molecada da casa era a escrivaninha do Seu Joãozinho Eletricista.
Tínhamos ganas de revirar às escondidas as gavetas e devassar aquela papelada toda. Haveria fotos antigas? Segredos? Esquemas elétricos
dignos de Nikola Tesla...mini engenhocas causadoras de choque? Iquenhequesabia?
Os meninos queriam achar foto de mulher pelada e mapa do tesouro, porém, nunquinha houve colhões. Em idade avançada, foi o Seu Joãozinho alumiar outras paragens, e ficou a escrivaninha.
Chamou a atenção, na última gaveta, uma pasta de plástico. Eu, historiadora não praticante, já mandei logo tirarem o zóio, fiz refúgio no outro sofá e bisbilhotei os arquivos da pasta marrom; os avós mortinhos que me perdoem, vi tudo.
Entre outros achados arqueológicos, compunham o acervo: recortes de jornal, em especial um com a foto do Seu Joãozinho, do Seu Ercílio e mais uns camaradas bigodudos; bilhetes que marcavam reuniões secretas, talvez os conspiradores mais idealistas do Cambuci; correspondências bem humoradas do amigo, que presumo eu, combateu na Revolução Constitucionalista de 32 e confessava uma total ausência de talentos bélicos; cartas da Itália para o "Bisô" com o timbre da “Barbiere di Rotonda”; uma comovente solicitação de transferência da escola particular para a pública, onde Seu Joãozinho findou seus estudos elétricos, a fim de exercer nobre ofício de alumiar. Chorei e pronto.
Tinha, ainda, uns dobradinhos de papel amarelo-folha-dura, que compunham uma trilogia de cartas: na primeira, com letra de formiga desencaminhada, e gramática sofrida, Belinha da Fazenda Esmeralda declarava saudades e amor; a segunda, em apaixonada caligrafia magistral, Joãozinho Eletricista da Capital prontamente respondia saudades apocalípticas e amor por toda vida; e na terceira, a impetuosa caipira, mandou a resposta da resposta que não recebeu e esculhambou. Talvez explica melhor expor a cronologia da coisa toda: Carta da Belinha, 11-03-1946: “.... tenho saudade ... a Helena até fica brava comigo porque só falo de você ....”;
Em seguida, o suposto rascunho da carta do Joãozinho - sem data, à lápis, era tanto dengo que até dava choque: ".... Relembro os doces momentos em que estamos juntos... "; "... Belinha volte o quanto antes..."; Carta da Belinha (aquela esculhambando), de 16-03-1946: "Estou cançada de esperar a resposta da carta que mandei dia 11 por isso quero saber se e falta de tempo ou mal vontade e assim que voce gosta de mim?...... " ... " vou no correio todos os dias só a espera de uma carta e volto muito triste ando 2 quilometros e nada...”.
Especulo que as cartas seguiam da Capital, via algum cata-jeca, até aportar em São José do Rio Pardo, talvez na Estação Paula Lima, onde minha impaciente futura avó superestimou a agilidade dos Correios. Aposto que meu avô respondeu, mas a carta extraviou, e por galhofa ele guardou o rascunho entre as duas outras cartas.
Naquela tarde de profanação, foram lembrados também os quitutes sem igual e o peculiar pavio curto da D. Belinha.
- [*]Bacharel em História pela Universidade do Estado de São Paulo. Executivo Público da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo e caçadora de causos. http://blogdaencardida.blogspot.com/