Teresa Oliveira [*]
Apenas uma filha separada
Nascida Maura Regina, tornei-me Maria Teresa
Desde o momento em que nasci fui obrigada a não conhecera história de minha família biológica devido a uma lei desumana e cruel. Aos 4 meses de vida, já em orfanato, fui colocada para adoção em meio a mais de 500 crianças com idades semelhantes à minha, que estavam, provavelmente, no Reino da Garotada, em Poá/SP .Meu irmão afetivo levou com ele no túmulo essa informação que ele nunca quis confirmar. Com riqueza de detalhes, contou-me que eram muitas, centenas e centenas de crianças em berços à espera de um destino, e ele, aos 17 anos, acompanhando meus pais afetivos neste dia, presenciou o encantamento de minha mãe no meu berço. E assim, nascida Maura Regina, tornei-me Maria Teresa. [1]
Cresci em uma família de classe média alta, estudei em excelentes colégios, fiz 3 faculdades (Serviço Social, Pedagogia e Administração de Empresas), mas, faltava-me algo, alguma coisa me incomodava, me transtornava no coração, alguma necessidade que não se definia. E havia um pesadelo recorrente, com mulheres segurando uma outra mulher e uma criança chorando.
Seria uma história como outras de adoção, não fosse o real motivo que a encobriu. E é este momento da história de São Paulo e dos demais estados brasileiros, que começo a lhes contar.
Andarilhos tocam alarmes provocados por doença silenciosa
Tudo começa com o início de tempos milagrosos na economia agrícola de São Paulo, onde a cultura do café já perdia há décadas os negros escravizados, que foram substituídos por mão de obra barata, composta por imigrantes europeus, em sua maioria italianos, espanhóis e portugueses. Os novos trabalhadores haviam perdido as correntes e os postes para chibatadas, mas esses imigrantes continuaram literalmente explorados pelos donos da terra e viviam em fazendas, muitos convivendo com famílias numerosas em um quarto apenas.
Perto da década de 20 do século passado, os jornais da época noticiavam os muitos andarilhos pelas estradas e trilhas, entre uma cidade e outra, anunciados por sinetes que eram obrigados a tocar, para avisar sua passagem. Assim que se aproximavam, alguns bons moradores esticavam comida e dinheiro por uma vara e os ajudavam. Meus pais biológicos fizeram parte destas romarias de excluídos: os doentes de hanseníase, à época ainda identificados como “leprosos”.
Confinamento e caça aos suspeitos de Hanseníase
Na falta de estrutura do governo e de políticas públicas adequadas, a Hanseníase espalhou-se com facilidade, principalmente entre os agricultores. Fez também muitas vítimas entre as famílias dos grandes fazendeiros, mas estes, pelo preconceito e desconhecimento sobre a doença, davam destinos até hoje pouco conhecidos aos seus parentes. Hoje se sabe, a Hanseníase se prolifera em ambientes fechados, de pouca luz e arejo, após exposição prolongada, passando para outras pessoas pelo ar viciado de cômodos sem assepsia. Doença silenciosa, se mostra ao paciente em 2 ou 10 anos e, mesmo que este não seja afetado, pode transmitir o bacilo à frente, em uma progressão assustadora. Desta forma, o governo se vê pressionado pela sociedade dominante a tomar medidas urgentes.
Não demora para que vastas quantias em dinheiro, vastas terras distantes de qualquer zona habitada, fossem doadas para a construção de colônias e a caça a laço, literalmente, dos pacientes ou suspeitos de hanseníase, que são forçados a desaparecerem de qualquer pedaço de chão habitado ou não, de São Paulo e do Brasil.
A crueldade era tamanha que existia a Polícia Sanitária, que caçava em furgões pretos pessoas no meio da rua e as levava, sem distinção, para essas colônias, onde a maioria não conseguia, ao menos, comunicar a família que ali estava presa.
Bilhetes anônimos eram enviados a essa polícia e serviam de comunicação oficial para que pessoas fossem retiradas de suas casas à força, jogadas nesses carros e, muitas vezes, suas casas incendiadas, perdendo qualquer direito à sua vida civil, inclusive à propriedade.
Filhos de “leprosos”: nova legião de excluídos
Minha mãe foi retirada de sua casa aos 23 anos dessa forma. Meu pai também.
Não se conheciam. Mas dentro da colônia, no desespero de vidas interrompidas, com uma doença para a qual não se vislumbrava cura ou tratamento naquele momento, dores, sequelas e amputações, abandonados; ainda assim, todos os pacientes nessas condições encontraram esperança para sobreviver e muitos formaram novas famílias dentro dessas colônias e, dessas famílias, sem que o governo tivesse algum plano de ação eficiente e humano, começamos a nascer, e novo problema surgiu. Esconderam os pacientes, mas estes, guerreiros pela vida, faziam filhos, traziam novas vidas para o mundo.
Para que não ficássemos expostos ao bacilo, mas sem pensar nas consequências da exposição ao preconceito e abandono, nascíamos dentro das colônias e imediatamente éramos retirados dos braços de nossas mães e enviados para orfanatos, aos cuidados de religiosas despreparadas para nos receberem e nova legião, agora de “filhos de leprosos”, surgia.
Uma segunda geração de excluídos se formava no Brasil e, tenham certeza, assim como eu, muitas crianças foram adotadas e até vendidas irregularmente. Como éramos “filhos de leprosos”, alguns orfanatos começaram a ceder para as senhoras da sociedade meninas de 9 a 12 anos para servirem de empregadas nas casas, sendo estas submetidas a estupros, maus tratos, tratadas como animais de serviço. A referência afetiva dessas crianças eram os orfanatos. Então, muitas fugiam dessas casas e retornavam para o orfanato e ali eram expostas a castigos por terem sido indisciplinadas. Não li nada disso em lugar algum. Quando minhas duas irmãs foram encontradas por mim, relataram passo a passo tudo que sofreram.
O Estado fez o papel de algoz e fechou os olhos para tudo
Muitas fotos e notícias em jornais relatavam visitas de Getúlio Vargas a essas colônias, fazendo uma propaganda enganosa sobre instalações e cuidados. Muitas senhoras da sociedade se interessavam em ajudara todos os encarcerados, mas tudo era uma grande farsa, pois a hipocrisia social faz você sair bem na foto acariciando um leproso ou filho dele, mas que se considera justo que se permaneça incomunicável e longe de todos. O isolamento compulsório não cessou a hanseníase no Brasil. Ainda somos o segundo país em incidência da doença e nem estamos próximos da sua eliminação pelo mesmo motivo: preconceito.
Longe do inferno e o caminho de volta
Hoje posso contar a história, porque interpreto que Deus me tirou do inferno para que, quando eu soubesse a verdade, eu fizesse meu caminho de volta. Isso aconteceu em 2002, quando eu tinha 47 anos.
Minha adoção foi preparada para esse retorno e mantemos nossa confiança de que um dia a justiça será feita para todos nós, filhos separados, porque todos os nossos direitos foram retirados e sofremos as consequências da exclusão para sempre. Ações individuais estão sendo impetradas na justiça para que possamos ter direito à reparação. Os Ministérios Públicos Estadual e Federal também trabalham neste sentido e não desistiremos.
Campos de concentração onde não existe guerra, mas apenas ignorância e preconceito
Os nossos documentos que ainda estão dentro desses orfanatos precisam ser preservados e devolvidos ao poder público, para que se conserve nossa história e tenhamos direito de pesquisar e obter cópias de vestígios de nossas vidas; vidas escritas em torno de um bacilo que na verdade poderia ter sido eliminado logo após a descoberta das sulfonas[2] , na década de 1940, mas que a ganância pelo enriquecimento de alguns com essas colônias e orfanatos não permitiu que isso ocorresse e que perdura até hoje.
A partir de 1986, as colônias foram abertas. Mas, para quem chegou lá na infância, adolescência ou juventude, como enfrentar o mundo externo?
Essas pessoas ainda existem e muitos pacientes desse tempo de horror residem em colônias até hoje e podem contar a vocês, solho no olho, o que foi viver em campos de concentração onde não existia guerra, apenas ignorância e preconceito.
Foto: arquivo pessoal
Para saber mais
- O portal da Fundação Oswaldo Cruz disponibiliza material técnico, científico e pedagógico sobre o tema.Consultar: http://www.fiocruz.br/historiadahanseniase/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=13
- Conheça o Projeto Hansenpontocom: http://facebook.com/hansenpontocom
- Veja, também, matéria emocionante do encontro das irmãs, produzida pela TV Record:https://youtu.be/qKsoCOeeO9Q
Notas
- [*] Teresa é fundadora do Projeto Hansenpontocom. Contato: (11) 9.7455-9021 (whatsapp)
- A instituição Reino da Garotada foi constituída juridicamente em 1944 pelo padre holandês Simon Switzar, com objetivo de “amparar, educar e formar crianças desvalidas, que, através de um tratamento pedagógico adequado e uma assistência moral e religiosa”, conforme pode ser consultado em: http://www.reinodagarotada.org.br/biografia.html
- A descoberta das sulfonas, na década de 1940, transformou o tratamento da hanseníase. Esse avanço científico proporcionou debates que puseram em questão o tratamento da enfermidade pelo método do confinamento. No Brasil, o término oficial do isolamento compulsório só ocorreu em 1962, mas a prática perdurou até o final da década de 1970
- [4]John Locke, filósofo inglês (1632-1704)