Quem visitou a exposição do Arquivo Público do Estado de São Paulo, a qual celebrava os 250 anos do governo de Dom Luiz Antônio Botelho – o Morgado de Mateus –, e viu os documentos originais expostos, não imagina o trabalho de restauro executado para que tais documentos estivessem em condições de ser apresentados.
Uma das atividades mais importantes desenvolvidas pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo é a efetuada pelo Núcleo de Conservação. Responsável pelas ações que conservam os materiais de arquivo, suas atribuições vão muito além da simples manutenção dos documentos recolhidos, passando pela análise do estado de conservação, higienização e recuperação de documentos, bem como a proposição de medidas técnicas que auxiliem a preservar tanto os documentos transferidos que ainda estão nas fases corrente e intermediária – os chamados arquivos administrativos – quanto aqueles sob guarda permanente do APESP.
É um trabalho com características múltiplas, que exige a colaboração de diversas áreas de conhecimento e a pesquisa e formação constante dos profissionais que enveredam por essa esfera de atuação.
O Núcleo é dirigido por Norma Cianflone Cassares – especialista em conservação, preservação e restauro de acervos e autora de publicações que são referência nessa área – e conta com uma equipe multidisciplinar de 6 profissionais com diversas formações e duas estagiárias. Para a exposição foram quatro os integrantes que tiveram participação ativa no processo: Anna Candida Silva Martins de Carvalho, Carlos Eduardo Sampietri, Lilian de Souza Pagano e Marcos Vilela da Costa.

Em entrevista concedida para a Revista do Arquivo, participaram, além da diretora Norma, a bióloga Anna Candida e o historiador Carlos Eduardo Sampietri, que nos falaram um pouco sobre sua trajetória.
“Eu não conhecia a área de restauração e conservação”, disse Anna. “Aqui no APESP me iniciei neste trabalho. Vir para o Núcleo de Conservação teve como principal motivação minha formação em ciências biológicas. Foi uma abertura de perspectivas que só descobri no Arquivo, aprendi não só as técnicas, conceitos de conservação, como também de história e arquivologia. No início, já encantada, a maior preocupação foi saber se eu teria a habilidade para desenvolver esse trabalho. Depois que comecei a trabalhar na Conservação ficou mais fácil, pois minha formação básica auxiliou. Trouxe comigo muito material e conhecimento da parte biológica – pragas (cupins, brocas, baratas, ratos e traças) e fungos, por exemplo –, que são fundamentais para controlar os fatores de degradação dos documentos, juntamente com o controle de temperatura e umidade.”
“Enquanto historiador, o mais interessante para mim é o contato direto com as fontes primárias”, disse Sampietri. “Isso é um privilégio, já que é difícil para os profissionais dessa área chegar aos documentos originais. O trabalho de restauro começou a me interessar no desenvolvimento de minhas atividades aqui no Arquivo. Isso envolveu a busca por muitos outros conhecimentos além daqueles de minha formação básica de historiador. Foi necessário me aprofundar em diversas áreas como química, matemática, biologia, artes plásticas, entre outras, para poder desenvolver o trabalho com cada uma das peças tratadas.”
“Isto porque”, complementa Anna, “o trabalho de conservação não é apenas um trabalho de técnicas e conhecimentos artesanais ou artísticos, é interessante mostrar seu caráter científico e laboratorial, ou seja, o conhecimento técnico e científico envolvido, que são fundamentais para a realização da conservação e restauro dos documentos. Trata-se de um trabalho extremamente especializado e nem sempre visível aos olhos leigos.”
“Em resumo, podemos dizer que houve necessidade de capacitação técnica e não só artística, baseada em muita pesquisa e conhecimento científico”, esclareceu Norma Cassares.
Do trabalho técnico desenvolvido
A exposição, que comemorou os 250 anos do governo Morgado de Mateus, contou com um total de 44 documentos e, segundo Norma Cassares, foi efetuada uma avaliação em sete obras que abrangiam um período entre os séculos XVI e início do século XIX.
“Essa avaliação foi efetuada para detectar o estado em que cada um dos livros se encontrava e, a partir daí, pensarmos quais tratamentos eles aguentariam. É preciso entender que algumas vezes queremos efetuar tratamentos que, por melhores que nos pareçam, não podem ser executados, pois muitos deles envolvem desmanchar os livros, ou seja, descosturar, descolar e desmontar a encadernação”, explicou Norma Cassares.

O tratamento básico realizado antes de qualquer medida é o da retirada de fita adesiva, grampos, clips, entre outros materiais estranhos ao documento original. “Muitas vezes o procedimento é só esse, pois nem todos os documentos aguentariam um tratamento mais invasivo”, complementa a diretora.
Após essas medidas, a intervenção básica para recomposição consiste na utilização do papel japonês, material muito solicitado para restauração devido a sua maleabilidade, textura e possibilidade de tingimento. “No caso dos livros restaurados para a exposição, esse foi o trabalho realizado pelo Marcos, e também pela Lilian, que precisou ainda desmontar a encadernação. O material trabalhado por ela seguiu as etapas básicas para o processo, que foi desmontar, reparar e reencadernar”, explicou Norma. “É um trabalho minucioso, realizado folha a folha para garantir que não houvesse perda nem da informação, nem da originalidade. Isso exige investimento e apoio, pois alguns processos são demorados e o acesso e custo de determinados materiais são relevantes. Por essa razão, nossa prática procurou diminuir ao máximo os custos, evitando o desperdício e utilizando sobras de outros projetos. Para garantir a conservação, a primeira medida é sempre concentrar esforços para interromper o processo de deterioração dos documentos. Só então poderemos prosseguir para a etapa seguinte, que será a de efetuar a restauração. Para essa segunda etapa são feitos os consertos e um processo de lavagem, que implica principalmente em verificar as cores, se elas não se perderão na lavagem. Todas as etapas realizadas serão sempre registradas e documentadas fotograficamente, dando origem a um relatório específico sobre a conservação daquela peça.”

Perguntamos ainda se a famosa tinta ferrogálica é, de fato, uma grande vilã da preservação dos documentos e Norma respondeu que, “Em partes, sim. Mas como esta era um tipo de tinta artesanal, cada pessoa produzia a sua. Assim, temos fórmulas com diferentes conteúdos de ferro que, consequentemente, tem efeitos diferentes quanto à deterioração.” E completou: “A tinta ferrogálica é basicamente uma tinta à base de ferro que, por sua reação com a umidade, enferruja, provocando danos ao papel. Um exemplo foi o que ocorreu com os livros das Sesmarias, que deveriam, inclusive, ser reencadernados, mas optou-se por não reencadernar. As tintas variam muito e sempre buscamos um tratamento que todas elas aceitem, ou não será possível fazer. Ou seja, um mesmo documento pode conter diferentes tipos de tinta, e algumas delas aguentam diversos processos químicos sem se desfazerem, enquanto outras, praticamente, nenhum.”

Todos os processos adotados têm uma preocupação central baseada em princípios éticos que garantam a manutenção da originalidade do documento. Por essa razão, cada passo do tratamento deve ser documentado por foto. Por todos esses elementos podemos ver que não existe uma receita, mas procedimentos permitidos eticamente, e, a partir daí, cada documento tem sua particularidade.


Sobre essas particularidades, perguntamos à equipe quais foram os procedimentos adotados no caso dos documentos selecionados para a exposição. Anna disse que, “O que houve de especial em meu trabalho foi o tratamento do revestimento tanto na lateral quanto na frente e no verso. Havia desenhos com o nome da obra. Para manter a integridade da gravura foi utilizado um detergente aniônico (especial) para tirar a sujidade (sujeira) e as manchas. Havia também crostas de gesso que foram retiradas com bisturi. Essa foi a parte que, por ser um trabalho de muito detalhe, teve que ser realizado com um cuidado de artesão. Houve ainda a restauração da área de dobra com papel japonês tingido. A capa exigiu reposição do couro, que foi trabalhado para que adquirisse a textura do couro original. Podemos ver aqui uma quantidade de diferentes técnicas, bem como conhecimentos (biológicos, químicos, físicos) utilizados para se restaurar um único livro. Após tudo isso é que se procedeu a remontagem. Creio que o mais especial foi efetivamente o tratamento do revestimento, em que utilizei também uma cera chamada cire, para lustrar o couro no final. Destaque-se também o cuidado com detalhes como o tingimento do papel japonês, para que chegue o mais próximo possível da cor original”.
O trabalho realizado por Carlos Sampietri envolveu outras particularidades: “No meu caso o tratamento foi o mesmo, o problema maior foi chegar à cor do couro, tive que tingir para que ficasse o mais próximo possível. Tive também que restaurar o detalhe da costura, refazer os detalhes do acabamento, também em couro. Por essa razão, não há como ter pressa, levamos em média 3 meses para fazer cada um dos livros. Utilizei ainda a Máquina Obturadora de Papel (MOP), essa máquina tinge e preenche os espaços danificados dos documentos (causados por traças, rasgos etc.). Esse equipamento exige uma série de cálculos matemáticos para chegar ao tom exato da cor do material e também à densidade e espessura das fibras para poder fazer a reenfibragem. O processo todo é matemático. É importante frisar que o tratamento químico não é capaz de recuperar as partes do documento que perderam a informação, mas a legibilidade melhora porque os furos atrapalham a leitura por se confundirem com as letras. Sumindo os furos, melhora a possibilidade de entendimento da informação, mesmo com as falhas”, explicou.
Todos esses procedimentos garantem a estabilização e a conservação dos originais e, consequentemente, viabilizam o acesso aos documentos pelos pesquisadores que procuram a instituição, e são esses cuidados que evitam que a informação muitas vezes acabe perdida para sempre.
Interessado em entender os procedimentos técnicos de conservação? Veja o artigo “Obras Raras, do Restauro à Difusão: O Trabalho do Centro de Preservação na Mostra Em Nome D’el Rey” de Norma Cassares nesta edição.