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Carta rara de ex-escravizado denuncia preconceito racial na cadeia em 1888

Publicado em 14/03/2023 | Fonte: APESP/Comunicação

Uma carta rara do ano de 1888 denuncia os preconceitos sofridos na cadeia por um ex-escravizado. A descoberta feita pelo historiador Flávio Gomes no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo foi tema de reportagem do jornal ‘O Globo’ na última quarta-feira (8).

A carta foi escrita pelo ex-escravizado João de Queirós, sete meses após a decretação da Lei Áurea. O documento, transcrito pelo Núcleo de Paleografia da instituição, possui duas páginas. Nele, João de Queirós denuncia as diferenças raciais e condições rígidas da Cadeia Pública de São Paulo, onde estava.

Mesmo após a abolição, Queirós relata a discriminação sofrida e as diferenças de tratamento para brancos e negros na prisão, como em horários impostos para trabalhar e permissão para recebimento de visitas.

A reportagem aponta que no fim do século XIX, pouco mais de 15% da população brasileira se dizia alfabetizada e que eram raros os documentos escritos pelos escravizados nas Américas. No caso de homens escravizados, apenas dois em cada mil possuíam a habilidade de ler e escrever, salientando a importância da descoberta e apontando as raízes do racismo estrutural.

Confira abaixo a transcrição paleográfica da Petição de João de Queirós, escravo. Edição com grafia modernizada, elaborada conforme o Acordo ortográfico da língua portuguesa. Transcrições pelo Núcleo de Paleografia do Arquivo Público de Estado de São Paulo).

 

 

PETIÇÃO denunciando a diferença de tratamento entre negros e brancos na Cadeia Pública, São Paulo, 01 de dezembro de 1888

 

Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Doutor

Alferes de Polícia

Capital. São Paulo.

 

Cadeia Pública. Reclamação legal.

 

Senhor. Vem este triste, pobre e miserável sentenciado à galé perpétua, queira a Vossa Excelência, pela sua humanidade de justiça a fim de dar as mais divinas providências a este Regulamento de absurdo, que há aqui, nesta Cadeia Pública.

Em primeiro lugar são estes: depois da Lei 13 de maio que extinguiu a escravidão há agora que tem aparecido os meus parentes e parceiros que estavam no triste bravo cativeiro, mas aqui na Cadeia Pública há um Regulamento de absurdo, que foi depois que o Sr. Cardoso de Melo tem estado governando e junto com o Sr. Carcereiro, para se admirar!!

O Regulamento marca este fim, as horas de se entrar na Cadeia são estas que nós bem sabemos. É das 10 horas até as 12 e das 3 às 4 horas da tarde, mas aqui há um absurdo, que a cor preta não pode parar até o meio-dia, e a cor branca para até o meio-dia. Portanto, que até a cor preta tem sido tocada daqui como cachorro. E portanto peço para a Vossa Excelência que seja atendida esta Reclamação pois é um absurdo que há aqui nesta Cadeia o que nós tem sofrido tem sido demais, que tanto é que as mulher de nós que somos escravos, o Carcereiro não deixa passar nem nos dias de as visitas, que nunca houve este sistemas, e portanto nós desejamos que a Vossa Excelência tome observação nestes absurdos que há aqui. Para a mulher do estrangeiro não tem dia nem hora e para as mulher do pobre galés andam corridas.

Portanto que se pede para a Vossa Excelência seja convertido este absurdo pela sua mais divina humanidade de justiça.

E que também a Vossa Excelência não carece pedir a informação porque aqui tudo o que é para ser reclamado para nossas autoridades é proibido e portanto que só se pede a Vossa Excelência que seja vigorado o sistema que era antigamente.

E espero pela humanidade de Vossa Excelência que nos faça as nossas justiças de humanidade.

 

E Para Receber Mercê

Cadeia. São Paulo, 1 de Dezembro de 1888.

O preso pobre e escravo

João de Queirós

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