Uma carta rara do ano de 1888 denuncia os preconceitos
sofridos na cadeia por um ex-escravizado. A descoberta feita pelo historiador Flávio
Gomes no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo foi tema de reportagem do jornal ‘O Globo’ na última quarta-feira (8).
A carta foi escrita pelo ex-escravizado João de Queirós, sete
meses após a decretação da Lei Áurea. O documento, transcrito pelo Núcleo de
Paleografia da instituição, possui duas páginas. Nele, João de
Queirós denuncia as diferenças raciais e condições rígidas da Cadeia Pública de
São Paulo, onde estava.
Mesmo após a abolição, Queirós relata a discriminação sofrida
e as diferenças de tratamento para brancos e negros na prisão, como em horários
impostos para trabalhar e permissão para recebimento de visitas.
A reportagem aponta que no fim do século XIX, pouco mais de
15% da população brasileira se dizia alfabetizada e que eram raros os
documentos escritos pelos escravizados nas Américas. No caso de homens
escravizados, apenas dois em cada mil possuíam a habilidade de ler e escrever,
salientando a importância da descoberta e apontando as raízes do racismo
estrutural.
Confira abaixo a transcrição paleográfica da Petição de João
de Queirós, escravo. Edição com grafia modernizada, elaborada conforme o Acordo
ortográfico da língua portuguesa. Transcrições pelo Núcleo de Paleografia do
Arquivo Público de Estado de São Paulo).
PETIÇÃO
denunciando a diferença de tratamento entre negros e brancos na Cadeia Pública,
São Paulo, 01 de dezembro de 1888
Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Doutor
Alferes de Polícia
Capital. São Paulo.
Cadeia Pública. Reclamação legal.
Senhor. Vem
este triste, pobre e miserável sentenciado à galé perpétua, queira a Vossa
Excelência, pela sua humanidade de justiça a fim de dar as mais divinas
providências a este Regulamento de absurdo, que há aqui, nesta Cadeia Pública.
Em primeiro
lugar são estes: depois da Lei 13 de maio que extinguiu a escravidão há agora
que tem aparecido os meus parentes e parceiros que estavam no triste bravo
cativeiro, mas aqui na Cadeia Pública há um Regulamento de absurdo, que foi
depois que o Sr. Cardoso de Melo tem estado governando e junto com o Sr.
Carcereiro, para se admirar!!
O Regulamento
marca este fim, as horas de se entrar na Cadeia são estas que nós bem sabemos.
É das 10 horas até as 12 e das 3 às 4 horas da tarde, mas aqui há um absurdo,
que a cor preta não pode parar até o meio-dia, e a cor branca para até o
meio-dia. Portanto, que até a cor preta tem sido tocada daqui como cachorro. E portanto
peço para a Vossa Excelência que seja atendida esta Reclamação pois é um
absurdo que há aqui nesta Cadeia o que nós tem sofrido tem sido demais, que
tanto é que as mulher de nós que somos escravos, o Carcereiro não deixa passar
nem nos dias de as visitas, que nunca houve este sistemas, e portanto nós
desejamos que a Vossa Excelência tome observação nestes absurdos que há aqui.
Para a mulher do estrangeiro não tem dia nem hora e para as mulher do pobre
galés andam corridas.
Portanto que
se pede para a Vossa Excelência seja convertido este absurdo pela sua mais
divina humanidade de justiça.
E que também a
Vossa Excelência não carece pedir a informação porque aqui tudo o que é para
ser reclamado para nossas autoridades é proibido e portanto que só se pede a
Vossa Excelência que seja vigorado o sistema que era antigamente.
E espero pela
humanidade de Vossa Excelência que nos faça as nossas justiças de humanidade.
E Para Receber
Mercê
Cadeia. São
Paulo, 1 de Dezembro de 1888.
O preso pobre
e escravo
João de Queirós