Prata da Casa
A PALEOGRAFIA NO ARQUIVO
Revelando o Indecifrável

O Arquivo Público do Estado de São Paulo conta em seu acervo com inúmeros documentos de valor histórico, sendo o mais antigo datado de 1578. Por essa razão, um dos trabalhos mais especializados realizado pelo seu corpo técnico é o de paleografia, ou seja, o trabalho destinado a estudar e auxiliar na compreensão das escritas antigas desses documentos. Entre outras funções, essa atividade é fundamental para auxiliar na identificação, organização e acesso aos documentos.

Para isso, o Arquivo conta em sua estrutura com um Núcleo de Paleografia, que tem como atribuições principais efetuar leitura e transcrições paleográficas, fazer análise tipológica e descrição documental, capacitar o corpo técnico, bem como emitir certidões de inteiro teor. São hoje quatro técnicos que compõem a equipe: Odair Rodrigues, Roseli Aparecida Ferraresi, Sérgio Hideki Kanomata e Judie Kristie Pimenta Abrahim, diretora do Núcleo. São funcionários com bastante experiência e que se especializaram ao longo de sua trajetória na própria instituição.

Equipe da Paleografia: da esquerda para a direita: Odair Rodrigues; Judie Kristie Pimenta Abrahim; Roseli Aparecida Ferraresi; e Sérgio Hideki Kanomata.
Equipe da Paleografia: da esquerda para a direita: Odair Rodrigues; Judie Kristie Pimenta Abrahim; Roseli Aparecida Ferraresi; e Sérgio Hideki Kanomata.

“Quando comecei a trabalhar no APESP, fazia atendimento aos pesquisadores e, depois de um tempo, comecei a ajudar os técnicos que faziam as transcrições; nesse processo, me identifiquei com o trabalho. Naquela época, a atividade, especificamente dentro do Núcleo de Paleografia, estava se iniciando. Quando o Núcleo se estruturou de fato, a partir da mudança para o novo prédio (2012), passei a trabalhar aqui. Minha função era principalmente fazer as certidões”, nos contou Roseli Ferraresi. E acrescenta: “com o passar do tempo, o Núcleo foi adquirindo melhores condições de trabalho e agregando outros profissionais. Houve também atualizações com relação às normas utilizadas, o fato de haver uma chefia com formação em paleografia e também em diplomática facilitou a expansão e estruturação técnica dos trabalhos.”

Odair Rodrigues, por sua vez, lembra que, com mais de vinte e cinco anos de trabalho, em vários momentos teve contato com a paleografia.

“Minha primeira experiência com paleografia foi ainda na década de 1980”, disse ele. “Naquele momento, não tínhamos contato com uma normatização bem definida, pois as normas técnicas para transcrição e editoração de documentos só foram publicadas em 1993. O APESP era uma divisão da Secretaria Estadual de Cultura. Fazíamos transcrições de inventários e outros documentos. Hoje trabalhamos com técnicas mais apuradas. Por um tempo me afastei e voltei ao Arquivo depois de 14 anos, passando por outros afazeres até me reencontrar com a paleografia, porque é o que gosto de fazer. Hoje tudo é mais profissional. O que me ajuda bastante é a experiência com documentos públicos há muito tempo.”

Sérgio Hideki é o mais novo integrante da equipe, e disse que “foi a partir de um curso dado pelo próprio APESP, feito em minhas férias, que passei a me interessar pelo assunto. O trabalho é muito interessante, mas ainda me considero um aprendiz.”

Nos preparativos para a montagem da Exposição “Em nome Del Rey – 250 anos do governo Morgado de Mateus em São Paulo (1765 – 2015)”, o apoio dessa equipe foi fundamental, já que os documentos expostos datavam de um período entre os séculos XVII e início do século XIX, e necessitavam de leitura e transcrição para a elaboração de legendas e construção dos verbetes que fariam parte do catálogo.

“Para fazer uma descrição fidedigna do documento, que na exposição se tornou um pequeno resumo (verbete) para o catálogo, a equipe inteira participou”, comentou Judie.

A equipe conversou conosco para que entendêssemos melhor os meandros desse trabalho tão importante para a preservação da memória paulista. De maneira geral, quando o documento chega, passa por análise e depois por leitura e transcrição.

Apesar da responsabilidade assumida por um técnico sobre determinado documento e do caráter aparentemente solitário da atividade, a equipe nos contou que o trabalho é feito em várias etapas, que dependem de diferentes olhares. O responsável pela transcrição faz uma primeira leitura, transcreve e depois parte para uma segunda leitura; em seguida, outro profissional realiza uma primeira revisão. Na última etapa, a diretora Judie se encarrega de uma revisão final da transcrição, pensando principalmente na consolidação dos padrões técnicos exigidos. Isso faz com que cada trabalho envolva pelo menos dois funcionários e, algumas vezes, a equipe inteira.

“Durante esse processo, a necessidade de pesquisa passa a ser uma constante”, explicou Judie. “Obras de referência como dicionários especializados antigos, repertórios, vocabulários e manuais são materiais que precisamos utilizar no dia a dia”, completou a diretora. “Há grande prazer quando desvendamos o que parecia ilegível. Nossa satisfação aparece nos pequenos detalhes, quando o indecifrável se revela”, continuou ela.

“Às vezes começamos a desenhar cada letra do documento para poder entender e conseguir chegar ao conjunto de uma única palavra e seu significado”, acrescentou Odair. “Um dos maiores desafios são as assinaturas, tanto nos documentos textuais como nos mapas e plantas. Muitas vezes temos que auxiliar os técnicos dos outros setores apenas nesse detalhe, que é fundamental para atestar o período dos documentos, sua procedência ou sua autenticidade”, lembrou ele.

Ainda sobre o processo de trabalho, a diretora Judie explicou que “uma transcrição completa efetuada por nós pode levar uma média de três meses ou noventa dias úteis, mas isso depende do estado de conservação do documento, datação, tipo de letra, volume, entre outras variáveis. Para certidões, o prazo é a partir de 15 dias úteis, e, por isso, é um trabalho prioritário. No ‘Auto de sequestro dos Jesuítas’, que fez parte da exposição, foi feita a transcrição paleográfica para mostrar como o trabalho efetuado pelo Núcleo de Conservação é fundamental para facilitar a leitura. Nesse caso foi feita, além da transcrição paleográfica, outra transcrição que também modernizou a grafia, ou seja, utilizou os padrões ortográficos e gramaticais atuais”, lembrou Judie.

Com relação à exposição, Judie complementou: “Começamos a trabalhar em outubro. incluindo a escolha dos documentos que seriam expostos, foram selecionados 44 documentos, mas, para que isso pudesse acontecer, realizamos a leitura e transcrição de muitos outros. As transcrições começaram em novembro de 2014.”

“Logo em seguida realizamos a Oficina de Paleografia, em que utilizamos os mesmos documentos expostos e, a partir de observações dos próprios alunos, fizemos, inclusive, revisões de algumas transcrições”, disse ela.

Era a minha Cidade

Para a equipe uma motivação fundamental está na pesquisa constante – histórica, filológica e arquivística. Os profissionais acabam sendo instigados a pesquisar, aprimorar conhecimentos, buscar outras informações e, por essa razão, o trabalho deixa de ser mecânico, há sempre questões novas e interessantes.

Roseli Ferraresi nos contou que, “enquanto lidava com os materiais para a exposição, me deparei com o documento que Morgado de Mateus havia enviado a Antônio Furquim Pedroso para que se fundasse a ‘Vila de Faxina’, que deu origem ao município de Itapeva, onde morei na minha infância. Foi muito interessante, pois aquilo que era uma informação distante de quando era criança, uma data comemorativa do calendário e da escola em Itapeva, de repente ganhou outra dimensão e materialidade.”

“São novos conhecimentos e novas descobertas pessoais e do grupo”, acrescentou Sérgio Hideki.

“Muitas vezes ficamos nos imaginando naquela época, as dificuldades que havia, as diferenças do modo de vida das pessoas, e isso é importante para o trabalho, pois auxilia na contextualização e no entendimento de termos e situações descritas nos documentos”, disse Roseli.

Assim, esse grupo, sem perder de vista as técnicas e o conhecimento científico, trabalha para que os escritos do passado possam ser analisados, fornecendo as condições necessárias para sua compreensão e resgate.