Noemi Zein Telles [*]
As pedras que pisais no presente, passo a passo....
Serão as mesmas que pisaram teus antepassados?
Caminho pelo centro da cidade de São Paulo, não para fazer compras, nem mesmo ir ao trabalho, simplesmente como turista. Meu trajeto sai da Praça da República em direção ao Viaduto do Chá, cruzando de lá para o Largo São Francisco, passando pela praça da Sé e pelo Pateo do Collegio, vindo a terminar no Mosteiro de São Bento.
Nesse trajeto ordinário, conhecido de muitos paulistanos, diversos estímulos brincam com meus sentidos: sinto o cheiro do pãozinho quente com café, misturado ao fétido chorume do lixo abandonado na calçada; ouço a voz grave de um locutor que anuncia ofertas na loja de calçados, acompanhada pela batida de violão da artista de rua; recebo encontrões de pessoas apressadas, movimentando-se alheias a tudo; e, às vezes, paro para observar os detalhes curiosos dos prédios e casarões mais antigos da cidade.
Diante de tantos interesses e chamarizes, quem andaria por aí olhando propositalmente para o chão? Nem mesmo uma turista (como eu) numa caminhada descontraída, preocupada apenas com sua câmera fotográfica, fazendo seus registros, interessar-se-ia pelas pedras por onde pisa. Mal sabia ela quese olhasse atentamente para as calçadas de São Paulo, poderia passar um bom tempo se divertindo, tal como quem monta e remonta um quebra-cabeça.
E foi assim que comecei a prestar mais atenção no chão. Agora, surgem muitas perguntas em minha cabeça. Quais histórias guardam ou revelam esses pisos por onde tanta gente passa, passou e passará? Quantos tipos de blocos existem e de onde vêm? São muitos tamanhos, diversos materiais, distintos desenhos e cores variadas. Em qual momento, no pretérito, foram assentados neste ou naquele trecho da rua?
É do conhecimento de todos que o calçamento na cidade costuma ser constantemente refeito, remendado ou substituído, principalmente quando sua principal função – suportar a passagem dos pedestres – fica comprometida devido aos buracos, rachaduras e outras interferências, em geral, causadas por chuvas, raízes de árvores que crescem ou pelo mau uso da população. É por razões econômicas, políticas ou até festivas que o poder público investe na reorganização dos caminhos destinados às pessoas.
Um bom exemplo disso, contado pelo arquiteto Chico Homem de Melo , é o das calçadas com o desenho geometrizado do Estado de São Paulo, reproduzido em ladrilhos e pedras portuguesas. “Resposta paulista ao brilhante projeto da calçada de Copacabana, seu desenho austero é fruto de uma solução engenhosa. Com apenas três peças quadradas – uma branca, uma preta e uma branca e preta, dividida na diagonal – cria-se um padrão de repetição infinito”.
No entanto, poucos conhecem a criadora do “piso paulista” – que ganhou as calçadas de São Paulo e expandiu seus domínios, para transformar-se em um padrão gráfico usado nos mais diversos suportes. Mirthes Bernardes, hoje com mais de 80 anos, era desenhista da Prefeitura de São Paulo e venceu um concurso lançado pelo prefeito Faria Lima em 1966. Mesmo sem nunca ter recebido nada de direitos autorais pela reprodução de seu desenho, ela se lamenta pela falta de conservação das calçadas:
“Qualquer piso desses que está aí em São Paulo está esculhambado. Vão passando por cima, vão tapando buracos ao invés de restaurar”
Pois nessa caminhada, meu novo interesse ao rés do chão não se restringiu pelo “lado de fora” da cidade, ou seja, ruas e calçadas. Comecei a observar também o “lado de dentro”, o piso que pertence às construções, aos prédios comerciais, públicos, habitações etc. Percebi que em algumas entradas de edifícios icônicos, em galerias e até mesmo em igrejas, conservam-se pisos originais, bastante antigos e em geral limpos. O mesmo não ocorria com as calçadas que ninguém tem a preocupação de limpar ou a consciência de conservar e nas quais só repara quando incomoda ou tropeça-se numa pedra solta
O que poderia ser feito para despertar o interesse dos cidadãos pela preservação desses arquivos em formato de calçadas? Uma ideia – que já existe – é fotografar e postar com a #calçadasp criada pela página CalçadaSP no Instagram, cujo lema diz: “Olhar apreciativo é o primeiro passo para caminhar e ocupar a cidade”. Empolguei-me e saí clicando o chão, criando mosaicos compostos por fotos dos pisos que encontrei pelo caminho.
Fotos:



Notas
- *Jornalista e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Contato: noemi.zein.telles@gmail.com MELO, Chico Homem de. Crônica de um ícone paulista. Vitruvius. Minha Cidade, v. 075.02, ano 07, São Paulo, 2006. Disponível em http://vitruvius.com.br/revista/read/minhacidade/07.075/1937
- SOUZA, Felipe. Criadora do ‘piso paulista’ diz que nunca recebeu dinheiro pelo desenho.Folha de S. Paulo, Cotidiano, 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1648845-criadora-do-piso-paulista-diz-que-nunca-recebeu-1-centavo-pelo-desenho.shtml