De repente, abri os olhos. Mais que isto, acho que acordei.
As luzes tênues de mescla artificial e lunar mostravam-se sem forças para vencer a escuridão a indicar a persistência da madrugada. Três em ponto, confirmam os medidores do imensurável.
Não havia vestígios de sofrimento. O que teria acontecido? Que linimento d’alma teria sido aplicado à revelia. Por qual ser? Baco, certamente, estaria por trás disso, afinal, foram muitas as taças.
Nada disso vem ao caso. Apenas o fato de que, mais que abertos os olhos e insone, eu estava bem e lúcido, mesmo com a tua imediata presença a continuar impregnando meus pensamentos. Parecia incrível, depois de dois dias de puro sofrimento d’alma como há muito tempo. Prova cabal de ser esta (a alma) nada mais que fluidos materiais do nosso corpo. Sim, meu corpo estava tomado por ti, em castigo de distância, nesses dias, desde que me senti preterido.
A lucidez se aprofundou e fez-me um verme. Sim, senti-me homem como nunca, no pior sentido masculino desse substantivo também masculino. Muitas vezes, enojo-me de ser homem. Ei-lo ali a causar-me vergonha!
Chamei-te, com justeza, de egocêntrica. Normal! Em estágio de sofrimento, o nosso corpo busca proteção de si. Por isso, também fui egocêntrico ao, mais que desejar, querer teu corpo. Como assim? Que abrigo poderia o meu dar ao teu corpo? Que promessas? Recusas instantes. Queres permanências (cuidado!). Nada posso fazer.
Vens de uma guerra insana com teu passado, com teu meio (que abomino), com tuas prisões. Precisas de acolhimento, portanto. E eu, teu companheiro, negar esse tantinho de amizade e, por mesquinhez egocêntrica, querer teu beijo? Que exigência estúpida para quem se diz amigo! Estás numa boa guerra. Guerra de mulher. Cercada e maltratada por mentalidades masculinas, muitas delas vestidas de mulher. Muito de inveja de quem se vê condenada à eterna prisão e sofre ao perceber a possibilidade de libertação de outra. Mulher que pretendo ser, tenho mais é que te apoiar nessa luta. Sem nada em troca querer, apenas partilhar tua vitória. Continua, mulher, tens a mim.
Ela mesma, a lucidez, me informa que quase nada temos em comum. Não gosto de muito do que percebo em ti. Uma partilha de tanto cotidiano de luta não basta. Tomou conta de mim um desejo não compartilhado. Ponto.
Testei minha lucidez de insone: lembrei-me que outros braços, certamente, te acolhiam naquela hora. E não eram os meus. Um fiozinho de dor funda e aguda. Nada que lembrasse aquela tortura da paixão, sentimento de baixa estatura humana. Continuava inteiro. Lúcido.
Tens uma guerra no teu corpo (expressão íntegra do que chamamos de alma), sei. Dou-te meu ombro. É a parte de mim de que precisas. Abençoarei a língua a rodear teus mamilos e as mãos em pluma a desenhar o teu corpo, até as entranhas. Adotarei teu(s) amante(s). Dar-te-ei meus ouvidos, por saber que deles precisarás. Falar-me-ás das batalhas perdidas e também das vencidas, com a fina dor altruísta de quem tem que se dar, como bom amigo. Lutarei contra mim, em teu favor.
A noite retornara aos meus olhos.
A luz chuvosa do dia pôs-me à prova.
A minha lucidez recusou-se a permanecer com a noite. Acompanha-me.
Fique bem. Estou do teu lado e com ouvidos dispostos a escutar tuas lamúrias e gemidos; também teu sorriso. Tudo permitido e abençoado, inclusive a minha (já fraca) dor. Sinto-me bem às quase dez da manhã deste sábado. A luz do dia não incomoda minha repentina lucidez. Até quando?
Referências bibliográficas