Bom dia a todos e a todas aqui presentes, muito obrigado ao Arquivo por esta oportunidade de compartilhar algumas perguntas com vocês. Eu tenho uma grande vantagem na minha profissão, pois eu sempre falo, sou pago pra dizer o que penso e para fazer perguntas para as pessoas. Então, é um pouco do que eu quero fazer hoje aqui, fazer algumas perguntas, levantar algumas questões que, de uma maneira, possam contribuir para essa reflexão maior que a gente pretende fazer.
Sou muito grato tanto ao Fernando Padula e à Ieda Pimenta Bernardes pelo convite, pela oportunidade de estar aqui. Eu sou professor do curso de Gestão de Políticas da USP, que fica na Escola de Artes, Ciências e Humanidades, mais conhecida como USP Leste, e a gente já tem um trabalho de colaboração com o Arquivo, com o curso, atividade que temos feito, que tem nos enriquecido muito e para nós é muito importante estar aqui.
Hoje é um dia importante também, porque é dia 25 de abril e se falava há pouco sobre Portugal, um país tão ligado ao Brasil nas questões relacionadas aos arquivos e à história. Hoje é um dia muito importante em Portugal, pois é o dia que marca o fim da ditadura salazarista; é uma festividade que nós como brasileiros também devemos estar comemorando.
Nós vivemos um momento de transformação tecnológica que talvez não esteja sendo percebido por muitos de nós, porque a gente vinha pensando num tipo de transformação tecnológica até agora ainda muito baseado em materialidade, então, nós estávamos simplesmente saindo de um suporte pro outro, de uma mídia pra outra, mas essas mídias todas ainda cabiam nos nossos bolsos, nas nossas gavetas, elas eram todas ainda muito visíveis e palpáveis. Além disso, a emergência de novos artefatos tecnológicos que foram se popularizando ao longo das últimas décadas não produziam, necessariamente, alterações tão significativas na maneira como nós trabalhávamos. Mas, a gente neste momento está vivendo um novo salto - eu não gosto muito de usar este termo “novo salto” - mas, um novo contexto tecnológico, que é um contexto onde a tecnologia assume uma outra dimensão, e a gente entra naquilo que muitos vão chamar de computação ubíqua. Vejam, os recursos computacionais estão por toda parte: podem estar na cadeira onde nós estamos sentados, na forma de um sensor de presença e de peso que comunica quem será a pessoa que está sentada naquela cadeira ou naquela outra cadeira, então, é uma maneira de usar a tecnologia penetrando, muito mais invasiva na vida das pessoas e na vida das organizações e trazendo novas formas de como as pessoas pensam a respeito da tecnologia. E pensar hoje sobre o uso de tecnologia não é igual a como se pensava sobre a tecnologia há dez anos, seguramente. Não é só a tecnologia, os artefatos tecnológicos e as suas aplicações que mudaram, é a maneira como os seres humanos e a vida social pensam na própria tecnologia.
Além disso, nós ainda estamos prisioneiros de formas de decisão que, muitas vezes, consideram um horizonte muito mediato, muito no curto prazo. Eu costumo dizer que a lógica, do ponto de vista gerencial, a lógica de decisão micro econômica, ela é, muitas vezes, muito danosa ao serviço público, porque eu penso na economia que eu farei hoje, neste ano, porque eu preciso cortar meu orçamento. Mas, o impacto dessa decisão ao longo do tempo é muito grande, porque destruir uma capacidade pública é rápido, construí-la leva décadas e esse é um desafio importantíssimo que está colocando hoje sobre as nossas decisões de tecnologia que, de alguma maneira, se relacione à gestão de documentos e gestão de informações. O risco desse imediatismo nas decisões às vezes são muito mais complexas.
Eu pensei em conversar sobre quatros coisas com vocês: a primeira é fazer uma breve reflexão sobre como que a tecnologia é construída pela sociedade, isso parece uma discussão muito teórica ou talvez devaneio sociológico, mas, na verdade, se nós não entendermos como as decisões tecnológicas acontecem, como uma determinada tecnologia se afirma ou não, se eu não entender porque esse computador tem essa configuração e não uma outra, eu não posso tomar decisões adequadamente. Então, eu preciso entender como a tecnologia se constrói. Vou falar também, relacionado a isso, sobre o contexto tecnológico e os impactos disso, um pouco do que eu já adiantei nesse começo. Depois queria refletir com vocês sobre algumas disputas, conflitos, tensões que este contexto tecnológico está colocando para nós hoje, e os termos que eu estou usando são termos fortes mesmo, em alguns casos são disputas, em alguns casos são conflitos e no melhor do caso são tensões que nós temos que resolver; tensões que podem estar entre organizações e podem estar na cabeça da gente, eu vou nessa direção ou vou para outra, nesse contexto de mudança? E, por fim, como disse, me pagam pra eu dar minha opinião, felizmente o governo do estado e o povo do estado de São Paulo podem contar com uma universidade como a USP, onde a gente pode pensar e refletir, vou, modestamente, apontar umas coisas que eu considero desafios e possíveis caminhos, no sentindo de contribuir para a gente melhorar as decisões a serem tomadas.
Começando, então, a falar sobre a construção social da tecnologia, a primeira e mais evidente a dizer é que a tecnologia não cai do céu, ela não aparece do nada e nem aparece como um processo inexorável, ela é fruto de decisões. Um sujeito um dia decidiu que ia vender sistemas de operacionais de uma maneira ou de outra, vender computadores de uma maneira ou de outra; talvez algum de vocês aqui já tenham se defrontado com decisões sobre alternativas tecnológicas na hora de adquirir um produto, e por trás dessas decisões tem atores jogando um jogo, o que é absolutamente legitimo e natural, tem os fabricantes de dispositivos, os produtores de softwares, no caso, falando de tecnologias da informação, mas podíamos usar isso para falar de sapatos, bicicletas, o que quiséssemos. A tecnologia ela se constrói a partir das ações daqueles que estão, de alguma maneira, interessados e também das decisões e dos comportamentos daqueles que adotam as tecnologias. Vejam, por exemplo, o que aconteceu com o ícone destes tempos em que vivemos, o nosso amigo smartphone, quem construiu o smartphone? Quem fez com que o smartphone fosse o que é? Há vinte anos atrás, nós sabíamos que isto ia acontecer, era uma questão de tempo; há quinze anos atrás tínhamos as primeiras coisas que pareciam os smartphones atuais, agora, uma boa parte da construção do smartphone se deu pelo fato de as pessoas, por exemplo, adorarem usar redes sociais. Vocês já pararam pra pensar sobre o papel da foto do macarrão que fez pro almoço de domingo, sobre a transformação da tecnologia? O fato de as pessoas fotografarem as coisas e quererem compartilhar com os amigos? Fez com que, de uma certa maneira, este dispositivo, que é um dispositivo central na vida moderna, se configurasse como é? E boa parte, ou um dos maiores negócios do mundo hoje, é, por exemplo, o facebook, o que é isso? Ele não foi pensando pra ser exatamente o que ele é, ele não é somente um fruto de um planejamento, ele foi sendo experimentado, como toda tecnologia, ela vai sendo experimentada, testada, vai sendo submetida àquilo que que a gente chama de contraprovas e a partir dessa interação em que a sociedade também vai transformando a tecnologia, a tecnologia transforma a sociedade, a gente chega numa determinada estabilização.
O que eu quero dizer com isso, gente, é que as decisões tecnológicas elas não são apenas uma resignada aceitação de um determinismo tecnológico, não é isso. Isso é apenas uma maneira de olhar o mundo, que interessa para quem quer, talvez, vender sua tecnologia e diga “olha essa aqui é mais moderna do que a anterior, compre a minha”, mas, não necessariamente será a melhor. Aqueles mais antigos hão de se lembrar de um equipamento chamado vídeo cassete, para os mais jovens eu vou explicar o que era, o vídeo cassete era um dispositivo que você ligava numa TV e ele gravava ou tocava vídeos, numa coisa que era uma fita magnética. No começo, nos anos 70, 80 só tinham duas grandes tecnologias na disputa na indústria do vídeo cassete, a tecnologia a betamax e a tecnologia VHS, qual foi a que se consolidou, que foi a vencedora? Foi a VHS. E o que que os aficionados diziam? Que a betamax era melhor. Então, ganhou a pior? Mas, eu tinha entendendo que a tecnologia é um negócio que sempre melhora, a nova sempre é melhor que a anterior, é igual quando você troca de namorada, “agora que eu estou feliz, agora sim acertei minha vida”. Então, pode não ser. Melhor pra que? Melhor pra qual contexto? Então, a primeira coisa que eu gostaria de marcar aqui com vocês é que é preciso fazer uma certa relativização, para que a gente não mistifique a tecnologia, ela é também produto de uma construção social. Tem o estudo clássico da bicicleta, que vai mostrando como que aquelas bicicletonas, com aquelas rodonas, viram bicicletinhas pequeninhas, e é claro que isso tudo vai depender de uma série de fatores que não são necessariamente tecnológicos e muitas vezes o nosso caso, o setor público, nós vamos ver confrontado o interesse público e o interesse de setores específicos na tomada decisões. Não estou falando de ninguém mal intencionado aqui gente, tem interesses, tem gente que defende um determinado tipo de tecnologia, um determinado tipo de padrão de arquivos, uma determinada forma de organização das entidades que tratam disso, de organização do governo, são interesses legítimos, eles influenciam, mas não são, necessariamente, fatores tecnológicos.
Portanto, a gente não pode pensar essa evolução da tecnologia como uma coisa linear, a chamada evolução tecnológica ela não é um processo necessariamente inexorável; e existem soluções tecnológicas que involuem. Por exemplo, há quinze anos atrás eu usava um dispositivo que não era um smartphone, eram aqueles paumitoquizinhos, os mais antigos devem se lembrar, ele reconhecia minha letra tão bem, eu escrevia; depois eu comprei um smartphone que eu tinha antes desse, que vinha com esse negócio de escrever que é uma porcaria pra reconhecer a letra, aquela tecnologia involuiu, porque, provavelmente, alguém tinha uma patente que não seguiu adiante. Então, não necessariamente um artefato novo será melhor e afinal de contas o que que é a tecnologia melhor? Melhor para quem? Quem arbitra isso, quem arbitra? Essa arbitragem também vai ser um objeto de disputa, e as disputas em torno de adoção de tecnologias são disputas, como falei, entre artefatos, padrões tecnológicos, de legitimação, dos tipos de padrões de uso, e, claro, em recursos; e nas burocracias as categorias profissionais também disputam as tecnologias. Porque tecnologia evolui e ela pode afetar a forma como determinada categoria profissional, determinada burocracia construiu o edifício intelectual e organizativo sólido que, de uma certa maneira, pode ser afetada por uma evolução tecnológica, isso neste nosso campo é claro, isso é bastante forte. Muitas vezes as disputas estão em torno dos modelos de negócios, vejam toda a discursão de software livre e de software proprietário, tem uma disputa aí de modelo de negócios. Tem empresas que têm modelo de negócio baseado na venda de licença sobre propriedade intelectual; têm empresas que têm o modelo de negócio baseado na venda de serviços associados e tem empresas que têm modelos baseados de negócios baseados na ideia de venda de software como serviço, são modelos que estão disputando e, muitas vezes, a tecnologia é apenas a parte, uma parte da estratégia dos atores em disputa mais amplas.
E, é claro, a gente tem as condições de estabilização. Quando é que uma tecnologia estabiliza, quando tem barreiras tão grandes que ninguém consegue entrar, ou uma outra tecnologia não consegue entrar; quando o custo de mudar se torna proibitivo. Essa é uma questão importantíssima para nós, porque os nossos investimentos em tecnologia, especialmente nessa questão de gestão documentos, são investimentos que têm uma autonomia de discernimento, um horizonte de impacto de décadas, e eu não posso trocar isso toda semana. Não são decisões que “ah! ficou ruim, não gostei desse smartphone vou comprar um novo” e vou ficar no prejuízo”. Não dá, são décadas de investimentos, muitas vezes o custo de mudança é proibitivo, então, aquela tecnologia se estabiliza. Ou, quando ambos setores aceitam como a mais adequada aos seus propósitos, pensem, por exemplo, no copo, que beleza de tecnologia, que artefato maravilhoso, existe há milênios, eu já tentei inventar um copo assim [mostrou copo invertido] não funcionou, ninguém quis comprar um copo assim. Aqui está uma tecnologia estável.
Esse contexto que a gente vive, o que eu gostaria de destacar nele é a ideia de que todo processo de descentralização que se coloca a partir da noção de nuvem, de onipresença de rede, ele vem acompanhando com uma demanda por maior abertura de padrões, ou seja, se tudo está espalhado, tudo está acessível eu preciso ter padrões que permitam essa comunicação. Mas, ao fazer isso, eu abri espaço para uma outra coisa, que é para coprodução da tecnologia. Então, formas de pensar a tecnologia muito proprietárias que nós vivenciávamos até agora, começa a não fazer mais sentido. Ontem mesmo eu estava na banca de um aluno orientando meu mestrado, que está estudando exatamente como que os governos estão fazendo o processo de coprodução da tecnologia. Esse aspecto central, levando pra ideia de governo como plataforma, porque cada vez mais vamos disponibilizar grandes plataformas e onde nós vamos ser responsáveis por partes do que é colocado lá. Mas, outra parte não vai ser o estado que vai colocar, vai ser a sociedade, empresas, os indivíduos e essas coisas vão ter que se conversar de alguma maneira e pra isso nós vamos ter que ser cada vez mais chamados a sermos construtores de padrões, de sermos aqueles capazes de integrar distintos tipos de documentos de informações que não somos nós que produzimos, não somos nós que necessariamente os mantemos, mas nós temos que ser os arquitetos das condições de integração e de interoperabilidade disso. Isso é uma questão que para a gestão da tecnologia isso é vital hoje; e vai ser cada vez mais vital para gestão de documentos e de informações.
O que eu quis destacar é do contexto mais técnico, agora, se formos pensar em termos dos processos, a gente tem uma mudança da cultura dos padrões de uso, as pessoas estão pensando diferente, as pessoas exigem outras coisas, elas exigem altos padrões de disponibilidade, de interatividade, você já quer interagir com tudo, tudo as pessoas querem curtir e comentar, de integração de dados. E aí, que a gente tem esse paradigma da desmaterialização cada vez mais expandido; a ideia de que cada vez mais eu vou desmaterializar, sem que muitas vezes a gente tenha clareza do que significa esse fim da dependência de acesso físico aos suportes. Além disso, a gente tem uma mudança por uma maior reivindicação a acesso a dados por parte da sociedade, isso não se deve reverter.
Esse contexto nos leva a pensar em algumas disputas, conflitos e tensões que eu gostaria de destacar para vocês. Primeiro, no campo da desmaterialização. Nesse campo, nós temos que pensar é claro, - isso acho que aqui tem muitos especialistas que entendem muito mais que eu – que os riscos estão associados a novos suportes digitais, isso já é uma questão bastante conhecida. Agora, a gente precisa medir melhor esses riscos e transformar essa medição de risco em instrumentos gerenciais para auxiliar na tomada de decisão. Como que a gente quer que um gestor tome decisão se a gente não consegue medir adequadamente risco, se a gente não cria ferramentas de avaliação de riscos, esse é um desafio nosso para subsidiar os processos de decisão.
E a outra disputa/conflito/tensão que está colocado é a questão relacionada à preservação e acesso e à obsolescência dos suportes digitais - que essa também é uma discussão que aqui temos muitos especialistas. E aí, acho que onde a coisa realmente pega, do meu ponto de vista, é que a gente ainda tem uma tensão entre as políticas de gestão de documentos e informação e as políticas de modernização da gestão, pensadas numa base unicamente tecnológica, pensadas apenas na lógica do curto prazo, “bom eu vou aqui modernizar isso, resolver esse processo”, mas não necessariamente fazendo conexões. Vejam, todas essas políticas que envolvem tecnologia no setor público, elas precisam de um nível muito maior de integração do que o que nós já conseguimos fazer. Isso vale para as políticas de uso tecnologia, para as políticas de acesso à tecnologia. Eu passaria o dia aqui falando; eu começaria com as políticas de gestão de documentos e terminaria com as políticas de acesso a informação e de desenvolvimento local. Essas coisas todas mediadas pela inovação tecnológica, isso cada vez mais vamos ser demandados para isso. Nós vamos aproximar as pessoas destas coisas.
Outra questão importante, outra tensão diz respeito a proliferação das bases de dados como suporte digital predominante. A gente tem e terá cada vez mais grandes massas de dados coletadas pelas mais distintas operações. Um evento destes pode gerar uma massa de dados, por exemplo, muito facilmente, se vocês estivessem todos aqui conectados há algum tipo de dispositivo avaliando cada momento do evento, vocês já estariam gerando aqui uma nova massa de dados. E o que a gente vai fazer com isso? E como é que a gente vai combinar as questões relacionadas a padrões tecnológicos de interoperabilidade? Porque, do ponto de vista tecnológico o eu preciso é eu tenho grandes massas de dados eu preciso interoperar elas nesses sistemas, fazer com que tecnologicamente as chaves sejam comum e eu consiga levar os dados de um lugar pro outro, independente do que ele seja. Como é que eu vou fazer isso sem escapar ou respeitando padrões de gestão documental que sejam necessários e que tem vários termos questões semânticas, de conteúdo, de temporalidade? aqui também temos uma necessidade de aproximação.
Depois, tem uma outra ordem de disputas, tensões e conflitos que diz respeito a desintermediações. Porque a gente tem ouvido falar muito da ideia de acesso direto, que de uma certa maneira, confronta as práticas de gestão da informação que tradicionalmente tinha uma visão mais centralizada; a gente tem ouvido falar de disputa da queda do monopólio dos repositórios e do risco, que é verdadeiro, da fragmentação, em que cada um pode cuidar dos seus dados; é fácil se fragmentar e virar uma confusão. Os riscos, muito bem colocados aqui, de se abandonar padrões de excelência documental em nome da modernidade tecnológica, isso nós já vimos gente; se vocês olharem os anos 90, quando você tem a explosão de microcomputadores o que que acontece nos anos 90, prolifera um monte de aplicações malfeitas. O cara tinha um “micreiro” da firma e ele ia e fazia aquele sisteminha e que um não conversava com o outro e, no final, você abria mão de coisas melhores e virava uma confusão. Isso já aconteceu na história recente, há uma geração, ou melhor dizendo, dentro da nossa geração. Esse risco aqui está muito colocado, e a gente fala de desintermediação, mas talvez a gente esteja entrando numa era de distantes novos intermediários. Quem são os novos intermediários? Os donos dos algoritmos, aqueles que são capazes de deter algoritmos que permitem a organização e a recuperação de informação, esses passam a contar com poder muito significativos. E os donos de serviços de computação e nuvem. Se a gente vai caminhando pra nuvem, e se vocês forem olhar pelo ponto de vista econômico, esse é um negócio de economia de escalas, então, ele naturalmente, pelo menos nesta etapa, vai se concentrar, e já se concentrou em grandes players neste jogo. É muito difícil um órgão público, um governo competir, então, você tem, na verdade, uma re-intermediação, talvez, não exatamente uma desintermediação com a qual nós precisamos preparar pra lidar.
E, outra ordem de tensões, está no ritmo de implantação de mudança, acho que isso já está meio claro, não vou me alongar demais, mas aqui a gente tem o problema que é uma tensão que está colocada: o gestor precisa oferecer resultados no curto prazo, pra isso que ele é cobrado; ele está lá pra isso e é legítima essa aspiração do gestor público, ele precisa resolver o problema. Agora, ao mesmo tempo, nós temos que preparar toda uma transição. Então, como é que a gente faz o ritmo adequado, como que a gente constrói resultados intermediários que justifiquem as nossas ações, que não pareça que as coisas não estão acontecendo, mas, ao mesmo tempo, não coloquem em risco os legados positivos que nós temos.
Por fim, para terminar, alguns desafios e possíveis caminhos. Eu gostaria de primeiro olhar pra vocês do ponto de vista da capacidade de gestão e tem uma pergunta: será que é possível descentralizar sem construir capacidades localmente, descentralizadamente? Me parece difícil. Então, a gente tem uma demanda de construir capacidades de gestão de tecnologia e de gestão de documentos e informações descentralizadas nos vários órgãos. E, com isso, a gente consegue ter práticas de melhores qualidades, porque o modelo muito centralizado tende a ser enfraquecido pelo próprio desenrolar da tecnologia.
Junto com isso, vem a demanda por novas capacidades de coordenação. Então, as organizações arquivísticas cada vez mais vão ser chamadas a serem coordenadoras de sistemas e de sistemas cada vez mais complexos, o que traz novos papéis para os profissionais também Do outo lado a gente precisa construir capacidades tecnológica nas organizações, porque nós vamos ter uma crescente dependência de fornecedores de serviços neste campo, e o que me parece é que as capacidades tecnológicas que nós vamos reunir são cada vez menos a capacidade do ponto de vista da produção propriamente dita, e cada vez mais capacidades de conseguir construir visões estratégicas sobre o uso da tecnologia no contexto do estado, porque a gente ainda compra serviços de tecnologia como se compra cadeira, a legislação é praticamente a mesma. O que parece um contrassenso. Eu me lembro de uma história no Amapá que eles iam comprar uma cadeiras e falaram eram cadeiras de metal e falaram “não vai comprar isso não, vamos comprar cadeiras de madeira das florestas manejadas do Amapá, porque isso vai fortalecer muito mais o estado”. Quer dizer, a gente compra tecnologia talvez pior do que alguns que comprar cadeiras por aí, isso é uma grande deficiência do estado brasileiro que a gente vai precisar avançar.
E, é claro, como eu falei pra vocês, a gente precisa avançar também nas formas de provimento de soluções tecnológicas e aprender a fazer coprodução com a sociedade. Já tem todo um setor, tem vários grupos de jovens desenvolvedores pressionando e dizendo olha nós estamos aqui, nós queremos fazer coisas, não dá pra deixar essa gente do lado de fora da porta mais, porque nós vamos ficar pra traz se fizermos isso. E precisamos, é claro, preparar os governos para acompanhar este ritmo. Como que a gente combina administração política com rigor técnico; como que a gente faz emergir novos modelos de atuação no campo que a gente precisa, que a própria tecnologia, de uma certa maneira, nos pressiona e como é que combina isto com logica burocrática e com o leviatã no controle que nós temos no Brasil? E acho que, no final das contas, o grande caminho é que a política tecnológica ela precisa estar alinhada à política de gestão de documentos e informações, isso não são duas coisas totalmente independente, elas vão ser cada vez mais gêmeos siameses. Muito obrigado!
- [*] Professor Doutor da Universidade de São Paulo, formado em administração, mestre em administração pública e doutor em administração de empresas sistema de informação tem experiência na área de administração pública e nos seguintes temas: governo eletrônica, atendimento ao cidadão, inovação e gestão pública, desenvolvimento local, planejamento estratégico, governança e transparência. E-mail: vaz@usp.br.
- [1] Transcrição do vídeo de palestra proferida no Seminário “Documentos Públicos na Era Digital: soluções e desafios da gestão, preservação e segurança da informação”, realizado em 25 de abril de 2017 pelo Arquivo Público do Estado.