Andréa França[*]
Nicholas Andueza[**]
Resumo:
Propomos a noção de camadas de ausência para lidar com a constância das lacunas no embate com as imagens de arquivo. A partir do curta Passeio público, feito com restos do filme A cidade do Rio de Janeiro (1924), de Alberto Botelho, exploramos momentos de ausência – de imagens, de informações, de dados históricos – de modo a revertê-los em produção de sentido. Entendemos a lacuna como elemento que não para de se modificar, que nunca se esgota no trabalho de montagem com imagens do passado. A noção de fotogenia (Jean Epstein) norteou o processo de montagem do curta e a reflexão aqui apresentada sobre a natureza e a história das imagens sobreviventes. Este processo prático-teórico só foi possível devido à acessibilidade e à maleabilidade do arquivo digital.
Palavras-chave:documentário; fotogenia; imagem digital.
Abstract:
We propose the idea of layers of absence to deal with the recurrence of gaps and oblivion in the contact with archive images. Through the short film-experiment Passeio público (Public Sidewalk), based on remains of the film A cidade do Rio de Janeiro (1924), by Alberto Botelho, we explore moments of absence – of images, information, historic data – reverting them towards creation of sense. We understand the gap as an element that keeps changing itself, that ¬¬never exhausts itself in the montage process with images of the past. The notion of photogénie (Jean Epstein) guided the editing of the short film and the thoughts we present here about the nature and history of the surviving images. Such practical-theoretical process was only possible because of the accessibility and malleability of the digital archive.
Keywords:documentary; photogénie; digital image.
Introdução
Este artigo revisita momentos em que, durante a realização de Passeio público[1] (2016), os vãos históricos provocados pela ausência de imagens (do cinema, sobretudo) e/ou de informações sobre filmes passados se fizeram particularmente sensíveis, e analisa de que maneira estas camadas de ausência afetaram a confecção do curta e se fizeram presentes. A hipótese que acompanha essas reflexões é a de que a lacuna abre espaço a um tipo específico de produção de sentido que não encobre a falta, mas joga explicitamente com ela, dando a ver de que são feitos os arquivos: de camadas de ausência e zonas de sombra. E esse gesto de “dar a ver” e relatar tais camadas, de fazer as imagens circularem a partir de sua natureza lacunar, conecta o cinema de arquivo a uma possibilidade de acessibilização não só dos arquivos, mas da própria ausência como motor de reflexão e possibilidade de inventar “outros lugares” – de fala, de entendimento, de percepção da história e da natureza da imagem. Trata-se de um gesto potencializado pela digitalização dos arquivos, que os torna mais acessíveis e maleáveis.
Durante a realização do curta que, sob a luz da teoria de Jean Epstein acerca da fotogenia[2], retoma antigas imagens da cidade do Rio de Janeiro feitas por Alberto Botelho, Silvino Santos e Augusto Malta, nos deparamos com uma série de lacunas nos arquivos audiovisuais brasileiros. Essa é certamente a experiência de qualquer um que entre em contato com os arquivos de imagem, seja como pesquisador, preservador ou realizador, dado que apenas sete por cento dos quase quatro mil filmes feitos no Brasil até 1930 sobreviveram.[3] Devido aos períodos de crise e de escassez de recursos para recuperação das obras sobreviventes, a Cinemateca Brasileira, por exemplo, inacessibiliza algumas cópias analógicas de filmes, mesmo para pesquisadores, de modo a retardar o processo de deterioração dos materiais fílmicos.[4] No caso da realização de Passeio público, a constatação de tal escassez, como veremos, permitiu experimentar as imagens do Rio antigo na sua forma precária, incompleta, uma história em construção cujo tecido não é jamais inteiramente capturado.
Frente ao interesse demonstrado por Hernani Heffner, Conservador-Chefe da Cinemateca do MAM-RJ, em relação à primeira versão do curta (feita em 2015, com apenas 3’35” de duração),[5] tivemos a motivação necessária para desenvolver a ideia do experimento cinematográfico. Para a segunda versão (que veio a ser a versão final), realizamos pesquisas mais extensas e contamos, também, com a contribuição da pesquisadora Patrícia Furtado (PUC-Rio) e de pesquisadores do cinema silencioso, tais como Eduardo Morettin (USP), Flávia Cesarino Costa (UFSCAR), Rosangela Sodré (CTAv) e Hernani Heffner (MAM-RJ). Foi então que a ausência como elemento constitutivo dos arquivos (audiovisuais, impressos) se fez mais sensível, passando a figurar neles como uma de suas principais questões.
Interessa-nos, inicialmente, descrever algumas camadas de ausência com as quais nos deparamos ao longo da confecção do curta. Em seguida, apontaremos de que forma lidamos com essas camadas no trabalho de montagem – como a lacuna se fez filme. Posteriormente, trataremos da problemática da memória e do esquecimento, da visibilidade e da invisibilidade, em relação à natureza específica da imagem cinematográfica como arquivo, e do seu processo de digitalização. Como trabalhar com arquivos nos momentos e nos lugares em que já deixaram de existir? Como trabalhar a falta constituinte do arquivo por meio da montagem (de temporalidades diversas, textos, imagens, depoimentos), de modo a tornar essa lacuna visível, sensível, no próprio “embate com a abundância de documentos” (FARGE, 2009, p.58)? Como lidar com imagens de outrora, das quais, se não são as próprias imagens que faltam, faltam informações ou mesmo os tempos e espaços que a integram, que há muito deixaram de existir? O que se perde e o que se ganha na digitalização de materiais analógicos?
Camadas de ausência
A partir do contato frequente com a Cinemateca do MAM-RJ e com o Centro Técnico Audiovisual (CTAv), tivemos acesso ao que restou do filme A cidade do Rio de Janeiro (1924), do cinegrafista Alberto Botelho, que era nosso objeto de pesquisa – teórico, metodológico, estético. Além da cópia digital desse filme, acessamos também outros dois filmes da mesma época: O que foi o carnaval de 1920! (1920), também de Botelho, e Terra Encantada (1923), de Silvino Santos e Agesilau de Araújo – usados de modo secundário no curta. Foi a partir dessas cópias digitais que baseamos a montagem do experimento – dado que nosso projeto não dispunha de recursos para realizar a digitalização apropriada.[6]
Nestes primeiros passos de pesquisa, a obtenção do material original (os filmes na íntegra) para a futura edição mostrou ser uma tentativa fadada ao fracasso e, portanto, uma das primeiras camadas de ausência com a qual nos deparamos. Boa parte dos filmes de Botelho não existe mais, são considerados “desaparecidos”, dentre os quais O Centenário da Independência (1922), O arrasamento do Morro do Castelo (1922) e Passeio público (1915). Mantivemos o título do nosso experimento como “Passeio público” em memória ao filme de 1915 que, provavelmente, exibia imagens do parque municipal homônimo situado no Rio de Janeiro, antiga Capital Federal. Esse mesmo parque aparece em A cidade do Rio de Janeiro (seriam imagens retomadas do filme de 1915?), e ganha destaque na montagem do curta.
Uma segunda camada de ausência se revelou, e nos surpreendeu, durante as investigações do percurso histórico do filme A cidade do Rio de Janeiro. Tudo leva a crer que o filme foi confeccionado para ser oferecido como presente a um membro da realeza italiana em visita ao Brasil, o príncipe Umberto di Savoia, em 1924. Um detalhe que evidencia o percurso do filme é que todos os letreiros estão em italiano. No final do século XIX e no começo do XX, era comum presentear autoridades políticas e artistas com cartões postais de cidades e lugares exóticos e/ou sedutores; filmes eram mais raros por seu custo de produção. Além disso, à época em que ocorreu a visita da realeza, desenrolava-se na capital e em São Paulo uma série de rebeliões militares que acabaram por modificar o roteiro do hóspede: impedido de conhecer o Rio de Janeiro, o príncipe vai para Salvador, na Bahia. Alberto Botelho integrou o grupo de autoridades e personalidades a acompanhar a visita de Umberto a Salvador.[7] A cidade do Rio de Janeiro teria sido ofertada ao nobre para cobrir essa falta: mesmo que o corpo do príncipe não tenha podido estar no Rio, o Rio-imagem estaria na sua memória. O cinema como meio de conhecer e recordar a antiga Capital Federal mesmo sem tê-la visto, de lembrá-la pela ausência. O filme deixa, portanto, o país, cruza o Atlântico e fica esquecido, permanecendo ausente dos arquivos brasileiros até ser recuperado na década de 1970.[8]
Há ainda uma terceira camada: a materialidade com que trabalhamos – e aqui frisamos a falta de recursos para executarmos um processo ideal de digitalização e preservação do material. Numa transmutação de imagem que acusa as disparidades entre a película e o suporte digital, a proporção da janela de A cidade do Rio de Janeiro foi alterada no processo de digitalização. De 4:3 (formato vigente à época de Botelho, anterior à televisão) para 16:9 (que é o formato digital HD mais comum), e o efeito produzido é uma espécie de “anamorfização” do material originalmente produzido por Botelho (além da perda de qualidade da imagem). Sintomaticamente, no entanto, a distorção não é sentida pelo espectador contemporâneo, já tão acostumado à janela mais comum do digital (16:9) – nas várias exibições que fizemos de Passeio público, ninguém comentava essa questão. [9] Trata-se de uma distorção que só fica evidente quando aparecem trechos de O que foi o carnaval de 1920! ou de Terra Encantada, cujos respectivos processos de digitalização e replicação não envolveram alteração da janela, mantendo-a em proporção 4:3. Além desse fator, há ainda outra camada de ausência que permeia a materialidade de tais imagens: a falta de som.


Por fim, o último elemento de falta que é substancial à presente discussão figura na própria imagem presente (aquela que não está perdida ou desaparecida), na sua condição intrinsecamente fantasmagórica, carregada de tempos e espaços desaparecidos. Essa camada de ausência talvez seja a mais fundamental por explicitar o próprio funcionamento do cinema de arquivo. As ruas do Rio, inclusive as que continuam existindo com outros nomes, já não são mais as mesmas, assim como a forma com que as pessoas se vestem, andam e se relacionam com a câmera – de cinema ou de fotografia. Ainda era novidade o traçado retilíneo de uma cidade recém-modernizada à força, o fervilhar de carroças, automóveis, mercadorias, passantes. Vemos uma cidade pulsante, uma cidade-imagem, filmada por uma câmera entusiasmada com essa nova cidade.
E mais que dizer respeito somente ao cinema de arquivo, essas camadas de ausência talvez digam respeito à própria natureza da imagem, apresentando-se ao espectador como a face visível de uma alteridade ausente (MONDZAIN, 2009, p.25-26): a imagem como imagem da falta – mas paradoxalmente presente, enquanto imagem. Neste ponto, assim como o Rio-imagem se fixou na memória do príncipe que não pôde vê-lo, nós, espectadores, compartilhamos a lembrança de um lugar que nunca vimos e nunca veremos. Como destaca Georges Didi-Huberman, a imagem é sempre não toda, não diz tudo de um evento e nem o todo desse evento, porque é de sua natureza ser lacunar, indecifrável e sem sentido enquanto não for trabalhada na montagem (2003, p.85).
Enfrentar essas camadas de ausência na relação com o arquivo audiovisual, embate já explicitado por historiadores e cineastas como Georges Didi-Huberman, Marie-José Mondzain, João Moreira Salles, Jean-Luc Godard, Rithy Panh, Harum Farocki, entre tantos outros, foi compreender que o trabalho de montagem opera não apenas com os achados, mas sobretudo com as lacunas: através da falta de imagens, nas imagens e em torno delas. Assim, quando observada com cautela, essa relação intrínseca entre presença e ausência, memória e esquecimento, visibilidade e invisibilidade se complexifica. Em nossa função de realizadores (e não de preservadores), não é suficiente ou produtivo colocar um sinal positivo na presença (na imagem que existe e que está lá) e um sinal negativo na ausência (na imagem desaparecida, que talvez nunca vejamos) – Andreas Huyssen nos alerta para a superficialidade dessa oposição historicamente mantida pela filosofia ocidental (2014, p.157). Certamente lamentamos o desaparecimento de tantas imagens e filmes do cinema silencioso brasileiro; no entanto, frente a tal constância de faltas, mais produtivo foi considerar, na montagem, as lacunas como elemento que não para de se modificar, que nunca se esgota porque acontece no próprio embate com outras imagens, documentos, textos e sentidos.
Da falta à imagem
Durante a montagem de Passeio público, um dos momentos mais marcantes em que experimentamos o elemento de ausência que habita o centro da imagem se deu quando nos deparamos com a passante desconhecida que encara a câmera de Botelho e vem em sua direção. Uma cena curta, de poucos segundos. Um corpo de outrora, que hoje é fisicamente ausente; um corpo anônimo, e, portanto, sem história, sem nome, que simplesmente passa ante o cinematógrafo, sai de quadro e some – para todo o sempre. Corpo-ausência, imagem incompleta. Trata-se de uma jovem acompanhada por uma mulher mais velha (seria sua mãe? Uma amiga?) que transita pela calçada; o caminho que fazem aproxima seus corpos da objetiva de Botelho e, nesse percurso, a jovem lança à câmera (e portanto ao espectador) um olhar dúbio que mistura dúvida e firmeza, pudor e curiosidade. O que se vê no plano é o cruzamento de olhares: da passante, da câmera, dos espectadores, dos montadores do curta. “Quando trabalhamos com imagens, nós olhamos repetidamente para elas – e elas nos olham de volta”, pontua a narração. No processo de montagem, perguntávamo-nos sobre a relação da noção de fotogenia de Epstein – da qual já tratamos em outro artigo (FRANÇA e ANDUEZA, 2017) – com o gesto de revisitar imagens do passado e retomá-las, remontá-las, e essa jovem passante foi a resposta mais potente que as imagens nos deram: presença intensa de um corpo e de um olhar, olhar e corpo de uma pessoa ausente, já ida.

A fotogenia, que segundo Epstein nomeia a especificidade do meio cinematográfico – sendo para o cinema “o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura” (EPSTEIN, 1974, p.145) –, viria como uma espécie de revelação. Uma abertura para a quintessência das coisas, abertura possível por meio do cinema (GUNNING, 2016, p.18-19). Há um forte tom animista nessa noção epsteiniana, como assume o próprio autor (EPSTEIN, 1974, p.390), e esse “excesso” foi evocativo e estimulante para o trabalho de montagem de Passeio público. O filme se inspira no arcabouço teórico relacionado à noção de fotogenia e, ao fazer isso, trata as imagens não somente como exemplos de eventos históricos, mas como imagens antes de tudo. Desse modo, há ressonância entre a nossa abordagem e o tom animista de Epstein: a imagem que cria vida própria e atravessa temporalidades distintas, a imagem que arrebata, que atinge, que revida. É nesse sentido que se delineia a fantasmagoria do cinema de arquivo: a passante desconhecida não é apenas uma jovem que deixou de existir; é também uma imagem que continua existindo e que nos confronta com o fato de que nós, espectadores, é que iremos envelhecer e passar diante da imagem. A imagem permanecerá – apesar de nós.
Assim, deparamo-nos com o trabalho de montar a partir da falta que constitui a própria imagem, de lidar com a imagem como superfície a ser lida (DOANNE, 2003, p.94), de observar a singularidade de cada frame, de evitar reduzir a ambivalência da imagem ao colocá-la como “ilustração” de uma época ou evento. Cada plano, seja de longa ou curta duração, é, em si, um evento singular e, como tal, não é redutível ao contexto histórico em que foi produzido – mesmo que certamente se vincule a esse contexto. É a essa irredutibilidade da imagem que Georges Didi-Huberman se refere quando defende o anacronismo das imagens (2000, p.16): elas são complexas, repletas de tempos distintos, misturados, impuros; as imagens são transtemporais e essa natureza afronta os limites históricos que lhes tentamos impor. Trata-se de uma irredutibilidade que, no campo do cinema ensaístico, foi explicitada por diretores como Agnès Varda e Chris Marker.
Há ainda outro tipo de ausência que habita a imagem: aquela que não se refere ao vão da materialidade do evento histórico (aquilo que um dia foi), mas sim aos processos de “visibilização” e “invisibilização” (aquilo que a imagem se esforça por exibir ou tirar do campo de visão). Em nosso experimento, lidamos com tais processos por meio da identificação de trabalhadores braçais pobres que lá estavam, quase invisíveis, no fundo ou nas bordas da imagem. A lírica visual de Botelho é baseada na exuberância e não na escassez, no fascínio pela cidade moderna e não nos remanescentes de outros tempos e classes sociais; no entanto, por conta da especificidade não somente icônica, mas indexical do cinema, algo do mundo fugiu ao controle do cineasta e sobrou nas imagens. Na montagem de Passeio público, logo depois de exibirmos três planos panorâmicos mostrando os espaços públicos cariocas (Passeio público, Quinta da Boa Vista e Avenida do Mangue, hoje Av. Francisco Bicalho), voltamos atrás e repetimos esses mesmos takes: dessa vez, porém inserimos uma máscara escura para destacar os trabalhadores pobres (pardos e negros). Eis a face libertária do realismo cinematográfico, como já propunha Siegfried Kracauer: mesmo que o realizador tente controlar o que está no campo da objetiva, o mundo não é efetivamente controlável – e o cinema é capaz de mostrar esse descontrole por meio de reminiscências e resquícios na imagem (1997, p.306); uma espécie de “risco de real” (COMOLLI, 2008, p. 169).


Esses processos tomam formas ainda mais dramáticas quando transpassam a produção de imagens para chegar à produção e modelação da própria cidade moderna. O caso da derrubada do Morro do Castelo é gritante no sentido de um processo físico (e não apenas simbólico) de apagamento. Trata-se da produção de ausências. O morro histórico, que abrigou o início da cidade do Rio de Janeiro, passa cada vez mais a ser considerado um “empecilho” à modernização do Rio desde antes do século XX, tendo sido derrubado por fim em 1922. Talvez, como no caso da passante desconhecida, o desaparecimento do Castelo o torne mais fantasmagórico em sua presença imagética. E além disso, a essa camada de ausência se acrescenta uma outra: o filme de Botelho sobre O arrazamento do morro do castelo está desaparecido. Há, como dissemos, ausência nas imagens e ausência das imagens. Para fazer de tais lacunas um motor de reflexão, convocamos as fotografias de Augusto Malta e excertos de jornais e revistas da época da destruição do morro. Na montagem, junto à inserção da primeira foto de Malta que utilizamos, a narração em off introduz a temática do Castelo: “dois anos antes, Alberto filmava a derrubada do Morro do Castelo...”. Informação conflitante: falamos que Botelho filmou a derrubada, mas exibimos fotos, e não filmes.
O trabalho de reenquadramento das fotografias de Malta foi fundamental assim como trechos de comentários sobre o arrasamento do morro reproduzidos pela mídia impressa da época (repetindo a grafia original). Ao fundo, inserimos o som digitalmente adulterado de obras, britadeiras (atuais), ruídos de cidades contemporâneas. Formam-se, com isso, contrapontos sonoros, visuais e verbais, sem que nenhum deles sirva de ilustração ao outro. É assim que o comentário de jornal sobre a população do morro ser um “populacho desordeiro” é seguido pelo reenquadramento da foto de crianças anônimas, brincando, com destaque para seus rostos. Crianças sem pais porque eles tinham descido o morro para trabalhar. Ao fim da sequência, num quarto contraponto (oral, verbal-sonoro), a narração volta: “o filme de Botelho sobre o Castelo está desaparecido”. Neste momento, entende-se por quê se assistia a fotografias e trechos escritos, e não ao filme que havia sido citado. Por meio de um breve comentário da narração, portanto, a presença daquelas fotos e excertos é revertida em ausência: em rastros da perda de um filme, da destruição do morro que abrigou parte importante da história da cidade.
A presença de imagens alheias às de Botelho, de Augusto Malta ou de Silvino Santos e Agesilau de Araujo, vem, portanto, não apenas diversificar o material tratado por Passeio público, mas escancarar uma falta. Esse é o mesmo procedimento que usamos para tratar as camadas de ausência material que mencionamos anteriormente (alteração da janela e ausência de som). Para o som, embora sempre tenha sido clara a ideia de ruídos de cidade na composição da trilha sonora, não queríamos inserir sons que aderissem facilmente à imagem de outrora. Ao contrário, buscamos uma tensão temporal à medida que escolhemos ruídos de cidades contemporâneas para sustentar a mudez das velhas imagens. Uma tensão estendida à textura sonora, dado que adulteramos digitalmente os sons para terem uma natureza sintética, computadorizada, que se contrapõe a uma idealização nostálgica do passado, cuja tendência é fetichizar o analógico.
Buscamos produzir uma sonoridade menos servil à imagem e ao senso comum, mais anacrônica do que sincrônica, de modo que a falta de som original nas imagens tornou-se um elemento produtivo e catalisador de novos sentidos. De modo semelhante, não alteramos a janela do material que tínhamos para recompor uma “janela original” baseada na proporção 3:4. Se a imagem é também uma superfície a ser lida, as informações dadas pela narração são uma mera fração daquilo que o curta proporciona ao espectador em termos de experiência estética e histórica. São as imagens que dizem ao serem remontadas e associadas com os contrapontos colocados. Nesse sentido, um filme de 1924 digitalizado com janela 16:9 expressa, por si mesmo, conflito e complexidade temporal.
Por fim, é importante ressaltar o caráter digital das imagens com que trabalhamos. O debate sobre a digitalização de arquivos fílmicos tende a enfocar a acessibilidade em dois sentidos: o digital viabiliza uma circulação de facilidade e eficiência impossíveis para a mídia analógica e também poupa o manuseio desta última, que poderia representar risco de desgaste ou deterioração. Trata-se de um debate relevante para a sobrevivência da memória do mundo: sem a possibilidade de visitá-la, ela perde a razão de ser. Nessa esteira, propomos uma expansão da noção de acessibilidade, já que todo o esforço prático e teórico que envolve Passeio público só foi possível porque obtivemos acesso a mídias anteriormente digitalizadas.
O suporte digital nos permitiu assistir e reassistir as imagens indefinidamente, procurando nelas detalhes que passavam desapercebidos. Além disso, possibilitou o manuseio ostensivo daquilo que víamos – uma montagem não só de cortes e encaixes, mas de transformações no interior da imagem (como o slow, o reenquadro, o congelamento ou a máscara). Ou seja, a acessibilidade viabilizada pela digitalização diz respeito não só a uma circulação extensiva (quantas pessoas acessam e em quantos lugares diferentes o acesso ocorre), como a uma circulação intensiva (quantas vezes é possível assistir à mesma imagem sem ferir sua integridade); diz respeito não só a poupar a mídia analógica de manuseio excessivo, como a permitir total maleabilidade da cópia digital pelo pesquisador.
A mídia digital traz ainda um hibridismo de suportes que multiplica suas possibilidades estéticas, potencializando cruzamentos diversos entre fotografias, vídeos, filmes, sons, narrações (FATORELLI, 2013, p.63). Por outro lado, ela pode excluir sutis gradações de cor e do estado físico da imagem analógica (LUNDEMO, 2014, p. 33), podendo também produzir ruídos e interferências inexistentes no original. Assim, se os meios de se catalisar momentos fotogênicos da imagem multiplicam-se com a digitalização, tese elementar de Passeio público, também importa considerar a seleção feita pelo próprio processo digital (LUNDEMO, p. 36): atentar portanto para continuidades, descontinuidades, acréscimos e exclusões na constituição desta nova imagem. Uma reflexão que se faz necessária porque o digital está no cerne da recente expansão do cinema de arquivo.
Ruínas de imagens, nostalgia e acessibilização da ausência
Em Passeio público, num dado momento, a voz off fala de “ruínas de imagens”, se referindo a tudo que desfila diante dos espectadores: fragmentos de filmes, trechos remanescentes, sobrevivências. Andreas Huyssen (2014, p.91) aponta que, “no corpo da ruína, o passado está presente nos resíduos, mas ao mesmo tempo não está mais acessível, o que faz da ruína um desencadeante especialmente poderoso da nostalgia”. Segundo Huyssen, a nostalgia é um sentimento comumente ligado à concepção de um passado glorioso e autêntico, superior ao presente, o que levaria a uma construção discursiva de tom regressista e reacionário. O autor aponta que essa abordagem perde de vista a dubiedade implícita em qualquer ruína: o da transitoriedade de toda forma de poder. Por isso o autor postula, contra a suposta autenticidade de um passado ideal, uma autenticidade da própria ruína como produto da modernidade, desviando a direção da nostalgia: “só podemos falar da autenticidade moderna das ruínas se olharmos para a ruína, estética e politicamente, como uma cifra arquitetônica das dúvidas temporais e espaciais que a modernidade sempre teve sobre si mesma” (2014, p.98).
A ruína-arquivo também é o corpo paradoxal em que se encontram memória e esquecimento. Quanto a estes dois conceitos, é importante entendê-los para além do maniqueísmo que comumente os relaciona. Huyssen aponta que o esquecimento, ao longo da história do pensamento ocidental, tendeu a ter um valor negativo de perda, de desconfiança moral, enquanto a memória tendeu a ser vista como esforço necessário e salutar para manter a coesão histórica e social (2014, p.91). Seria preciso ir além de reconhecer o esquecimento como elemento paradoxalmente constitutivo da memória: ele “precisa ser situado num campo de termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão” (HUYSSEN, 2014, p.158) – e aqui acrescentaríamos os termos seleção, predileção, invisibilização. Relacionado a esses tropos, o esquecimento traria “um espectro de estratégias tão complexo quanto o da memória” (idem).
Por meio da noção de camadas de ausência, convocamos ao campo do cinema silencioso brasileiro justamente o “espectro de estratégias” do esquecimento. Ao abordar o arquivo sob a ótica da ausência, do desaparecimento, do esquecimento, nosso objetivo é explicitar que modalidades de falta operam na produção de sentido, de acontecimento. Nessa esteira, o entendimento da imagem-arquivo como superfície a ser lida (e não somente como referência a algum evento histórico), conecta nosso ponto de vista à noção de “autenticidade da ruína” em seu teor autorreflexivo, viabilizando uma abordagem mais ampla e nuançada acerca dos processos de memória e esquecimento.
Além disso, foi na lacuna que encontramos a potência da fotogenia epsteiniana aplicada às imagens de arquivo. Dado que a lacuna favorece um trabalho de montagem do filme capaz de explorar problemas formais, históricos e técnicos, ela mobiliza relações de tempo jamais vistas na percepção ordinária. Epstein argumenta que a fotogenia é a possibilidade de experimentação do presente e, ainda, que ela se relaciona com a presença da imagem (CHARNEY, 2004, p.326). Ao convocarmos, portanto, os escritos de Epstein para pensar o cinema de arquivo, acreditamos que o elemento fotogênico está latente na imagem e que, quando ativado – via sobreposição, parada, desaceleração, reenquadramento etc. –, concretiza uma espécie de “presentificação” daquilo que vemos. A passante desconhecida que caminha na avenida pode então ser experimentada como documento e objeto de sonho.
A fotogenia se relaciona igualmente com a alteridade e com a transformação das formas de ver (AUMONT, 1998, p.102). A câmera lenta, por exemplo, produz mundos visuais e sensoriais desconhecidos até antes da invenção do cinema; a inversão temporal de um filme altera a ordem dos eventos no mundo. Assim, a fotogenia não viabiliza somente uma absoluta presença, mas a absoluta presença de uma alteridade que expande a percepção – formando uma ponte entre o estético e o epistemológico (GUNNING, 2012, p.17). É por isso que Tom Gunning (2012, p.18-19) aponta que, frente à divisão proposta por Bazin entre aqueles que acreditam na imagem e aqueles que acreditam na realidade, Epstein parece traçar uma terceira via: a de um realismo possível somente através da imagem cinematográfica, um realismo criativo que desafia as noções do senso-comum. Em suma, a fotogenia “presentifica” a dimensão ausente da imagem, sua latência, e, nesse sentido, favorece uma expansão perceptiva e sensorial. Presentificação da ausência. Um funcionamento que, como foi visto, é potencializado a partir do hibridismo e da maleabilidade da mídia digital. A imagem torna-se acessível em sentido amplo: não apenas relativo a quantas pessoas podem vê-la, mas a quantas vezes cada um pode revisitá-la e alterá-la via manuseio e montagem, apropriando-se dela e cruzando-a com outras fontes de imagem, texto e som.
Quando aborda o esquecimento, Huyssen cita o célebre personagem de Jorge Luis Borges, “Funés, el memorioso”, que tinha a patologia da memória total e, portanto, era incapaz de criar. Funés é uma parábola para se reconhecer que “esquecer não apenas torna a vida vivível, como constitui a base dos milagres e epifanias da própria memória” (HUYSSEN, 2014, p.158). Entre essas epifanias está, por exemplo, a imagem relâmpago descrita por Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de história: a real possibilidade de conhecer o passado viria no sobressalto da memória, no evento efêmero e singular de um vislumbre (BENJAMIN, 2012, p.243) – vislumbre esse, no caso do audiovisual, possibilitado pelo tratamento fotogênico do arquivo. E se os procedimentos de memória e esquecimento se tocam e se infundem, não há aqui nenhuma crítica ao gesto, necessário, de preservar e zelar pelo cinema silencioso brasileiro. Quanto mais arquivos tivermos, mais lacunas existirão, porque a lacuna é própria do arquivo e se multiplica junto com ele, assim como as perguntas na medida em que o conhecimento se amplia.
Notas
- [*] Andréa França Martins é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Realizou pós-doutorado na Universidade de Reading (Inglaterra), entre 2016 e 2017. É professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq. Tem artigos e livros publicados na área de Comunicação com ênfase em cinema contemporâneo, documentário, imagens de arquivo.
- [**] Nicholas Andueza é doutorando em Comunicação e Cultura na UFRJ, com pesquisa focada em cinema de arquivo e fotogenia. É mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio. É professor de cinema em cursos de curta duração em Nova Friburgo – RJ. Além de artigos na área de Comunicação, publicou também artigos e resenhas sobre artes plásticas na revista Dasartes. Email: nicholasandueza@gmail.com.
- [***]
- [1] Curta com duração de 14 minutos, dirigido por de Andréa França e Nicholas Andueza. Já foi recebido em alguns festivais em 2017, entre eles: 12ª CineOP (Ouro Preto – MG), FIDBA (Buenos Aires – Argentina), ISFF (Kolkata – Índia), Arquivo em Cartaz (Rio de Janeiro – RJ) Curta acessível em: <https://vimeo.com/176409696#at=5>.
- [2] Talvez o termo “teoria” seja inadequado devido à falta de sistematização dos escritos de Jean Epstein acerca da noção de fotogenia, como aponta Leo Charney (2004, p.324). Acreditamos, porém, que a falta de uma descrição definitiva torna a noção ainda mais potente para novos usos, como esse que propomos no artigo
- [3] Estimativa apresentada por Carlos Roberto Souza no libreto que contém a coleção Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro, editada pela Cinemateca Brasileira, s/a.
- [4] A preservação de filmes na Cinemateca tem como uma de suas ações a análise do estado de conservação dos materiais do acervo, a duplicação, a restauração e a guarda em depósitos adequados, respeitando os tipos de material e seu estado físico. Devido às frequentes crises econômicas vividas pela instituição, a análise desses materiais é descontínua.
- [5] Passeio público nasceu e se manteve como um experimento cinematográfico. Sua primeira versão veio a partir de uma dinâmica didática que se iniciou em sala de aula, na matéria de Teoria e Crítica realizada em 2015, no curso de Comunicação Social da PUC-Rio.
- [6] Uma telecinagem (filme) ou scan (fotografia) que levasse em conta as características materiais das mídias e preservasse a maior quantidade de informações possível.
- [7] Como mostram as imagens do filme de Botelho, O Príncipe herdeiro da Itália em terras do Brasil (1924), de 40 minutos de duração.
- [8] O filme é recuperado pelo pesquisador Cosme Alves Netto, na época diretor da Cinemateca do MAM-RJ, de acordo com Hernani Heffner.
- [9] Como apontado na primeira nota de rodapé, o curta foi exibido em alguns festivais, mostras e exibições em salas de aula.
Referências Bibliográficas
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