1. INTRODUÇÃO
Este ensaio tem o objetivo de apresentar breve reflexão quanto ao papel do arquivista no tempo presente e possui, como linha condutora, três textos de Bruno Delmas. O primeiro foi produzido para a abertura de evento realizado em 2007 no Instituto Fernando Henrique Cardoso, o segundo compõe coletânea desse mesmo Instituto que recebeu o título “Arquivos para quê?”, publicado em 2010, e o último, integra obra do mesmo órgão, “Dar nome aos documentos: da teoria à prática”, publicada em 2015.
No primeiro texto, Delmas (2007) destaca que, no curso da história da humanidade, as mudanças de suporte promoveram alterações na sociedade e que a produção dos documentos em codificação binária ocasiona uma tripla ruptura, que estão intrinsecamente conectadas: a) mudança da escrita, de seus suportes e da conservação da escrita; b) mudança do uso social da escrita; c) mudança dos Estados e de seus papéis.
No segundo, Delmas (2010, p. 93) inicia afirmando que a prática arquivista está contida entre o momento de produção de um documento e o que um usuário o acessa num arquivo para concluir, em síntese, que o arquivista é o profissional que “permite às sociedades atravessarem o tempo”. E o último trabalho que norteia este ensaio discorre sobre a diplomática e sua aplicabilidade para a identificação dos documentos de arquivo.
Considero relevante esclarecer que a eleição do autor e dos textos aqui elencados não é fruto do acaso, mas decorre do fato de que Delmas identifica claramente alguns pontos que são cruciais para o desenvolvimento deste ensaio, a saber: a) a quebra de paradigma advinda da produção dos documentos digitais, e em particular, para os documentos das instituições públicas; b) os limites para a atuação do arquivista; c) o uso da diplomática.
O que se pretende objetivamente ressaltar é a necessidade de se redefinir o que é ser arquivista em uma sociedade que cada vez demanda transparência dos órgãos públicos e que produz de forma acelerada documentos digitais. Destaca-se ainda a importância da diplomática para as novas atividades desse profissional.
O argumento central aqui apresentado é que o século XXI enseja a ampliação das atividades do arquivista, que além de se preocupar cada vez mais com a organização e acesso dos documentos do arquivo permanente e de envidar maiores esforços para efetuar a avaliação e destinação dos documentos já produzidos, independentemente do formato, deve também atuar junto aos sistemas informatizados de gestão arquivística de documentos para a produção de documentos arquivísticos autênticos, confiáveis e acessíveis ao longo do tempo, valendo-se da diplomática para dar conta destas novas atividades.
2. FUNDAMENTAÇÃO
É incontroverso dizer que o registro de informações em uma forma tangível e material como prova de ação – notadamente das práticas comerciais e das decisões estatais – guarda estreita relação com o desenvolvimento das civilizações e que, ao longo do tempo, é possível identificar a necessidade de organização dos registros produzidos e mantidos como prova de determinada ação e de criar meios eficazes para acesso ao seu conteúdo (SILVA ET AL. 1998).
Pode-se ainda afirmar que a profissão do arquivista, conforme destacado por Delmas (2010), confunde-se inicialmente com a figura do escriba do antigo Egito, que detinha duas atribuições específicas – a de escrita e guarda - e que, aos poucos, tais atribuições se separam para consolidar as práticas de organização e guarda dos documentos produzidos do arquivário do final da Idade Média e do commis d’ordre do século XIX.
Incontestável também é que, com a Revolução Francesa, os arquivos passam a ser identificados como fontes de informação em que se localizam referências à Arquivística como uma prática teórica, ainda que como “ciência auxiliar” da História, e como uma área profissional específica, a do arquivista. É ainda nesta mesma oportunidade que surge um organismo (normalmente o Arquivo Nacional) responsável pela elaboração de políticas de arquivo com abrangência nacional e que se formula, em 1841, o princípio de respeito aos fundos, basilar para a Arquivística, de autoria do arquivista francês Natalis de Wailly.
Sabe-se ainda que o crescimento exponencial da produção de documentos já identificado, em 1898, pelo “Manual de Arranjo de Descrição de Arquivos”, da Associação dos Arquivistas Holandeses, a eclosão de duas Guerras na primeira metade do século XX, os avanços tecnológicos e o crescimento exponencial da produção documental característico desse século ao mesmo tempo que consolidam uma área de conhecimento e que impelem a separação entre Arquivística e História, promovendo a primeira a uma ciência autônoma, ensejam nova ruptura, principalmente nos países anglo-saxões, que estabelecem mais um interesse da Arquivística, denominada records management, e outra área de atuação profissional, a que antecede a do recolhimento dos documentos ao arquivo.
Indolfo (2013) leciona que o norte-americano Philip C. Brooks é identificado como o primeiro profissional a fazer referência ao ciclo vital dos documentos, conceito que se materializou na criação de programas de gestão de documentos e na implantação de arquivos intermediários. De acordo com Jardim (1987, p. 35), Burnet traduz a gestão de documentos como o “processo de reduzir seletivamente a proporções manipuláveis a massa de documentos, que é característica da civilização moderna, de forma a conservar permanentemente os que têm um valor cultural futuro” e resulta não apenas do reconhecimento da incapacidade (espacial, econômica e técnica) de se assegurar tratamento adequado para toda a massa documental recolhida pelas instituições arquivísticas, mas também da necessidade de se tratar a documentação para acesso do interessado.
Delmas (2015) comenta que a disseminação dos computadores pessoais a partir da década de 1970 marca o início de uma era que se traduz na popularização de uma ferramenta tecnológica que auxilia na produção cada vez mais rápida e automatizada dos documentos. Somado a este, advém um novo fenômeno, o das redes de comunicação entre computadores, que enseja nova explosão documental e faz com que não se possa conceber, nos dias atuais, ambientes de trabalhos corporativos ou pessoais que prescindam de alguma forma de produção de documento digital.
Estamos diante, como dito no início deste ensaio, de uma ruptura profunda, decorrente não apenas da mudança da escrita, do suporte e de sua conservação, mas também que evidencia o aumento da demanda por transparência do Estado. Se a criação e organização do Arquivo Nacional francês promoveram a reunião de documentos que se encontravam em instituições diversas a fim de assegurar o livre acesso aos arquivos públicos que, conforme decreto de 25 de junho de 1794, deveriam ser entendidos como propriedade da nação, no caso do Brasil, o direito fundamental de acesso à informação, assegurado no art. 5o da Constituição Federal brasileira de 1988, fomentou a edição da Lei de Arquivos (Lei 8159/91), instigou medidas para a organização do até então denominado “arquivo morto”[1] das instituições públicas e ensejou a publicação da Lei de Acesso à Informação (LAI) que vem servindo de alicerce para iniciativas diversificadas de organização dos arquivos em fase intermediária e permanente.
Para dar respaldo às atividades de um arquivo no mundo atual, nunca se exigiu tantos conhecimentos e profissionais de arquivo para assegurar, como ressaltado por Delmas (2010, 85), “[...] de forma permanente, o acesso dos arquivos aos seus produtores ou a terceiros, segundo as leis e regulamentos em vigor, que ele deve conhecer perfeitamente”. Ainda de acordo com esse autor, o arquivista deve possuir vasto conhecimento cronológico dos documentos; dialogar com os produtores de arquivos; compreender os problemas administrativos inerentes ao arquivo; e deve possuir fundamentos em história e na história da instituição, no direito, na diplomática, na arquivística e em tecnologia da informação. Em sendo assim, além de uma gama diversificada de competências, o profissional de arquivo deve estar inteirado quanto às inovações tecnológicas e aos procedimentos necessários para a digitalização, descrição e acesso aos documentos de guarda permanente.
Neste particular, as políticas de arquivo vêm se mostrando verdadeiros basilares para a prática arquivística. Não somente o Conarq mas também os arquivos públicos vêm publicando normas que auxiliam as atividades diárias nos arquivos. São manuais que auxiliam na elaboração de ferramentas de gestão, como o plano de classificação e a tabela de temporalidade, os modelos de requisitos para sistemas informatizados de gestão arquivística de documentos, parâmetros para digitalização de documentos, diretrizes para implantação de repositórios digitais confiáveis, apenas para citar alguns.
Por outro lado, observa-se o aumento exponencial das iniciativas para encontrar soluções para as massas documentais acumuladas. Embora não seja o foco deste ensaio, não se pode deixar de enfatizar que nem todas as alternativas identificadas condizem com os princípios arquivísticos e que a escolha por descarte em massa e por procedimentos de digitalização descontrolados irão resultar em perdas maciças de informações geradas no último século. E quanto a este aspecto, o arquivista deve identificar argumentos, com base em todos os conhecimentos acima referidos, para que ocorram diálogos em prol de alternativas que minimizem o impacto para a memória da instituição a que se encontra vinculada.
Entretanto, o uso crescente de tecnologias digitais não enseja apenas a digitalização dos documentos produzidos em papel visando à redução da massa documental acumulada, mas incentiva a adoção de ferramentas que registrem as informações em codificação binária. Conforme destacado por Delmas (2015, p.45), os documentos digitais possuem vantagens consideráveis, principalmente na perspectiva do amplo e ilimitado acesso que o formato propicia e “cabe, desde já, ao arquivista, a todos, interessar-se profundamente por esses documentos” e esse interesse não vai reduzir a importância da Diplomática contemporânea.
Ainda segundo lição essencial de Delmas (2015), na realidade atual, a Diplomática analógica do papel e dos documentos tradicionais, que auxilia na descrição, análise, avaliação e destinação dos documentos, por meio do estudo da gênese e da tradição dos documentos, deve conviver com a Diplomática digital, que estuda os dados digitais. Conforme destacado com propriedade pelo autor,
O procedimento digital converteu o documento e seu suporte em dados digitais, em um objeto imaterial. Os dados não são mais ligados fisicamente a um suporte material. Essa imaterialidade apresenta grandes vantagens bem conhecidas, ela os converte em dados, e assim, facilita o tratamento e o acesso instantâneo. Face aos benefícios práticos dessa conversão, a imaterialidade apresenta também constrangimentos não menos conhecidos, especialmente a dependência do usuário de uma máquina para acessar o documento (DELMAS, 2015, p. 48)
Ainda segundo Delmas (2015), além da vulnerabilidade do documento digital e da dependência tecnológica ao seu acesso, este documento não deve ser produzido sem a intervenção de um arquivista diplomatista, que deve acompanhar o documento ao longo de sua gênese e difusão, visando à sua conservação e acesso. Para isso, deve assegurar a observância de normas padronizadas como as que descreve o Open Archival Information System (OAIS), as que asseguram a integridade e autenticidade do documento, as de identificação, validação, certificação e as de segurança da informação e também o uso de metadados que promovem uma forma rápida de localização do documento.
Em acréscimo ao defendido por Delmas (2015) e com respaldo nas atividades diárias que envolvem o controle de documentos produzidos em sistema informatizado de gestão de documentos, a reflexão aqui desenvolvida é no sentido de que o arquivista diplomatista não pode se limitar ao acompanhamento do documento digital ao longo de seu ciclo de vida, mas deve atuar junto ao próprio sistema para a produção de templates ou modelos de documentos que observem sua diplomática a fim de assegurar a produção de um documento arquivístico autêntico, confiável, único e acessível ao longo do tempo.
Com isso, a disciplina criada por Mabillon para comprovar a autenticidade de um documento a partir do estudo de sua gênese, forma e tradição e que serve como base para a avaliação dos documentos na fase intermediária, deve ser usada para a inserção nos sistemas os metadados que irão viabilizar a própria gênese de um documento que ainda não foi produzido, e com isso assegurar seu adequado controle, acesso e destinação.
3. CONSIDERAÇÕES
Sendo assim, a mudança de suporte desloca a atividade do arquivista para uma outra fase do ciclo de vida do documento, ao da produção do documento. Se a explosão documental impeliu o arquivista a antecipar sua atividade da fase permanente para tratar o documento na fase intermediária, a mudança de suporte promove nova mudança, desta vez deslocando a atenção do arquivista para a um momento anterior à própria gênese do documento e criando uma nova área de atuação do arquivista, que Delmas (2015) denominou de arquivista diplomatista e que prefiro identificar como arquivista digital que deve assegurar que o documento produzido em sistemas informatizados sejam classificados, descritos e produzidos de forma controlada em sua origem.
Desta forma, e como consequência dos avanços tecnológicos, o profissional de arquivo, responsável pela preservação e acesso dos documentos de guarda permanente, deve atuar antes mesmo de sua gênese, devendo acompanhá-lo em todo o seu ciclo de vida. Isso faz com que o arquivista digital se equipare ao escriba do antigo Egito, a partir do momento que assegura a produção, a guarda e o acesso ao documento institucional.
Mais do que nunca, a figura de Janus, deus romano das mudanças e tradições, porteiro celestial representado com duas cabeças e que remete ao passado e ao futuro é a representação compatível a este profissional do presente e do futuro da humanidade.
- [*] Bacharel em Direito, Arquivologia e Biblioteconomia, todos pela Universidade Federal Fluminense - UFF, especialista em Políticas Informacionais e Organização do Conhecimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e especialista em Gestão Pública pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá – FIJ, mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas, mestre em Justiça Administrativa pela UFF e doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV. É servidora concursada do Tribunal Regional Federal da 2a Região onde atualmente exerce o cargo de Assessora de Documentação, Informação e Memória da Secretaria Geral do TRF2.
- [1] Para fins deste ensaio, será utilizado o conceito de arquivo morto para “os documentos acumulados de forma aleatória em diferentes espaços da instituição. Esses documentos freqüentemente podem ser encontrados na biblioteca (quando a instituição possui uma), em quartos de depósito de materiais de limpeza, em ‘vãos’ de escadas, dentro de caixas em ‘cantos’ da sala de materiais utilizados em aulas de educação física, fanfarra e até mesmo em banheiros desativados”, conforme destacado por Zaia (2005, p. 159).
REFERÊNCIAS
- DELMAS, Bruno. Archives, Etáts et sociétés: les enjeux du XXIe siècle. 2007. Disponível em: <http://www.ifhc.org.br/ index.php? module=conteudo&class=acervo& event=ver& id_conteudo=396>. Acesso em 21 abr. 2011.
- ______. Arquivos para quê?: Textos escolhidos. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2010.
- ______. Por uma Diplomática contemporânea: novas aproximações. In: SEMINÁRIO “DAR NOME AOS DOCUMENTOS: DA TEORIA À PRÁTICA”. 2013. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2015.
- INDOLFO, Ana Celeste. Dimensões politíco-arquivísticas da avaliação de documentos na administração pública federal (2004-2012). Tese (Doutorado em Ciência da Informação). Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT, Rio de Janeiro, 2013.
- JARDIM, José Maria. O conceito e a prática de gestão de documentos. Acervo, Rio de Janeiro, v.2, n.2, p.35-42, jul./dez. 1987.
- SILVA, Armando Malheiro et al. Arquivística: Teoria e prática de uma ciência da informação. Porto : Afrontamento, 1998.