Artigo
Diplomática: dos diplomas aos documentos digitais
Natália Bolfarini Tognoli[*]

Resumo:
A Diplomática nasce na França, com o objetivo de estabelecer critérios para verificar a autenticidade de documentos solenes, os chamados diplomas. Com o passar do tempo, a disciplina tem seus estudos expandidos aos documentos do século XXI, quando seu método é aplicado aos documentos digitais, notadamente na América do Norte. O presente artigo busca elucidar as contribuições da Diplomática para os documentos arquivísticos digitais. Para tanto, recorre-se a uma revisão de literatura sobre os marcos teóricos da disciplina, traçando seu percurso histórico-conceitual, dos diplomas até os documentos digitais, quando se inicia um profícuo diálogo entre a Diplomática, a Arquivologia e a ciência forense digital.

Palavras-chave: Diplomática Contemporânea. Ciência forense digital. Arquivologia.

Abstract:
Diplomatics is born in France, with the purpose of establishing criteria to verify the authenticity of solemn documents, the so-called diplomas. Over time, the discipline has expanded its studies to the 21st century documents, when its method is applied to digital records, notably in North America. This article aims to elucidate the contribution of Diplomatics to digital records. In order to do so, a review of the literature on the theoretical framework of the discipline is made, tracing its historical-conceptual trajectory, from diplomas to digital records, when a fruitful dialogue between Diplomatics, Archival Science and Digital forensics.

Keywords: Contemporary Diplomatics. Digital Forensics. Archival Science.

Introdução

Os desafios impostos aos arquivistas nos últimos anos, face à crescente produção de documentos em meio digital, levou a Arquivística a repensar suas bases teóricas e suas relações entre disciplinas a fim de garantir não apenas a produção de documentos em ambiente digital, mas também a preservação a longo prazo desses documentos e de sua autenticidade.

Nesse contexto específico, a Diplomática, disciplina até então dedicada a verificar a autenticidade de diplomas da Idade Média, é chamada a auxiliar a Arquivística na identificação dos requisitos necessários à produção, organização e preservação dos documentos contemporâneos, chegando a configurar-se enquanto uma nova disciplina, ou uma nova abordagem, voltada exclusivamente aos documentos de arquivo, nomeada como Diplomática Contemporânea ou Diplomática Arquivística.

Nos contextos teórico e metodológico da Arquivística contemporânea, a Diplomática destaca-se como uma das três abordagens que emergiram no Canadá, em meados dos anos 1980, juntamente com a Arquivística Integrada e a Arquivística Pós-moderna, reconfigurando a prática arquivística tanto em âmbito nacional quanto internacional.

O presente artigo busca elucidar as contribuições da Diplomática aos documentos arquivísticos digitais. Para tanto, recorre-se a uma revisão de literatura sobre os marcos teóricos da disciplina, traçando seu percurso histórico-conceitual dos diplomas até os documentos digitais.

2. A Diplomática em sua origem: dos diplomas à forma do documento diplomático

Distinguir os documentos (urkunde, acte) falsos dos verdadeiros sempre foi o objetivo da Diplomática, e a razão da grande maioria de seus estudos. Tanto os diplomatistas clássicos, quanto os modernos tinham como objetivo analisar os documentos que serviam de testemunho para a verificação de fatos, ora com um objetivo prático-jurídico, ora com um objetivo de contar os fatos dos passados em uma perspectiva historiográfica. Para fazê-lo, ou seja, para compreender o documento enquanto autêntico ou falso faz-se necessário, primeiramente, o estudo de sua forma.

Nesse contexto, podemos entender a Diplomática como uma arte crítica, que busca, por meio da compreensão da forma documental, discernir a autenticidade e/ou falsidade do documento. Logo, a Diplomática é a arte que estuda a essência do documento, ou seja, sua forma.

A delimitação do objeto de estudo é um dos pilares do desenvolvimento de uma disciplina. Ao lado da teoria, o objeto confirma o status científico de uma área, especificando e delimitando seu campo de ação.

No âmbito dos estudos diplomáticos, a delimitação do objeto só veio anos após a anunciação da disciplina. Ao ser enunciada por Mabillon, no tratado De re diplomatica, de 1681, a disciplina diplomática, cujo nome tem origem em seu objeto de estudo, o diploma, não teve seu objeto explicitamente definido, ficando subentendido que limitava-se ao estudo dos documentos em seu sentido mais restrito, qual seja, instrumentos autênticos e atos solenes do poder exercido pelos soberanos. Esses instrumentos dividiam-se em quatro gêneros principais: documentos eclesiásticos (chartes eclésiastiques), diplomas reais (diplomes royaux), documentos públicos (actes publics) e documentos privados (cédules privée).

Somente em meados do século XIX, com as obras de Diplomática Moderna, começa-se a definir mais claramente o objeto de estudo da Diplomática, o documento diplomático, e destaca-se um aperfeiçoamento de sua crítica geral e especial, marcando um período de evolução da área.

Em 1867, é cunhada, pela primeira vez, a definição de documento, entendido como o objeto de estudo da Diplomática, segundo a palavra alemã Urkunde [1] Urkunden ist eine Schriftliche, in entsprechende Form gekleidete Erklärung über Gegenstande oder Vorgänge rechtlicher Natur" (SICKEL, 1867, p. 02).

A definição de Sickel restringe a análise diplomática aos documentos criados em decorrência de um fato de natureza jurídica – excluindo, portanto, todos os documentos que não possuem tal natureza, como alguns documentos de arquivo, por exemplo –, aceitando-se somente aqueles que possuem uma forma determinada, ou seja, uma forma que condiz com seu conteúdo jurídico, capaz de dar ao documento fé pública e valor de prova.

Especificamente no tocante à forma, pode-se dizer que esta estrutura o documento fornecendo os elementos necessários e as regras de composição para que um determinado negócio jurídico possa ser reconhecido como idôneo para a atuação de sua função. Assim, o documento diplomático terá a mesma forma quando houver a mesma problemática jurídica. Essa forma será determinada por regras estabelecidas pelo Direito.

Essas regras determinam os modelos aos quais os atos devem se conformar. Elas agem principalmente sobre o teor, propondo ao redator os termos técnicos, as expressões ou frases já feitas, os tipos de composição fornecidos por meio dos formulários. Elas ordenam também todo o aspecto exterior, determinam rigorosamente o tipo de suporte material da escritura, a tinta, a própria escritura, o modo de inserir os sinais de validação (DUMAS, 1932, p. 30, tradução nossa).

Ainda segundo o autor, a forma dos atos é tudo aquilo que é condicionado por regras. Essas regras determinam os elementos intrínsecos e extrínsecos do documento, ou seja, o texto propriamente dito, os caracteres aplicados aos documentos, que lhes conferem força probatória, assim como os meios para redigi-lo.

O método diplomático proposto por Mabillon consistia em analisar as partes internas e externas do documento (seus elementos) inserido em uma série cronológica ou em um conjunto específico de documentos de uma determinada época ou lugar. Seus elementos eram confrontados e analisados com base em um contexto pré-estabelecido.

A partir dos estudos de Sickel, o método diplomático é aperfeiçoado com uma maior ênfase no ato jurídico e na gênese do documento. Nesse contexto o método proposto por Mabillon evolui, e as fórmulas pré-estabelecidas dão lugar à forma do documento. Esta, determinante para a criação de um documento juridicamente válido e relevante, passa a ter uma importância muito maior, assim como sua análise. A partir disso, novos elementos são incorporados ao método diplomático, e novas definições aparecem.

É nesse cenário que surge, em 1867, pela primeira vez, a divisão entre texto e protocolo no documento, proposta na definição dos elementos de Sickel, quando este estudava as fórmulas dos documentos carolíngios. “Eu chamo texto a parte central do documento e formulário ou protocolo o conjunto de fórmulas inicias e finais. Texto e protocolos são, portanto, os caracteres intrínsecos documentos (SICKEL, 1867, p. 107).

Décadas depois, iniciam-se os movimentos de expansão do objeto de estudo da Diplomática para além das fronteiras europeias, jurídicas e medievais. Visando a delimitar claramente o domínio da Diplomática, Tessier recorre à distinção entre objeto material e objeto formal, entendendo o primeiro como aquilo que requer a observação do diplomatista, e o segundo como o ângulo sobre o qual o diplomatista considera o documento a ser examinado.

Tessier (1930, p. 258) define como objeto material da Diplomática os actes intrumentaires entendidos como “os escritos autênticos, ou sob autenticação privada, destinados ao conhecimento da realização de um ato jurídico, quer ele se refira ao direito público, quer ao privado” –, entendendo ato jurídico como aquele que pode produzir, modificar ou extinguir obrigações ou direitos.

Na concepção do autor, os actes intrumentaires deveriam englobar, também, os documentos preparatórios e os redigidos para constatar e constituir prova de fatos jurídicos, compreendido como “acontecimentos que levam ao nascimento, transmissão, transformação, extinção de direitos sem implicar a intervenção de uma vontade intencional” (TESSIER, 1930, p. 258).

A junção dos actes intrumentaires aos documentos preparatórios e àqueles que constituem prova de fatos jurídicos significa um grande passo em direção à expansão dos domínios da Diplomática, assim como de sua aproximação à Arquivística, uma vez que se define o conteúdo desta como parte dos estudos daquela, como o próprio Tessier destacou.

É possível constatar neste momento uma aproximação dos estudos diplomáticos aos documentos de arquivo, objeto de estudo da Arquivística, que nessa época já possuía um status disciplinar formado, notadamente com a enunciação do Princípio da Proveniência (1841) e a publicação de manuais importantes, como o Manual de Arranjo e Descrição da Associação dos Arquivistas Holandeses (1890), o Manual of Archival Administration (1922), de Sir Hilary Jenkinson, e o Manual di Archivistica (1928), de Eugenio Casanova.

3 Diplomática e Arquivologia: primeiras aproximações

Na década de 1960, estava claro que o campo de estudo da Diplomática deveria ser expandido para além dos documentos de natureza estritamente jurídica. Ao defender uma expansão da problemática da Diplomática a todos os documentos de arquivo, sem limitação cronológica, Bautier propunha uma ampliação do objeto para além daqueles testemunhos redigidos segundo a observação de formas determinadas que garantem ao documento natureza jurídica e força probatória.

Para o autor o documento deveria ser compreendido em função do fundo ao qual pertencia, advogando pela sua compreensão enquanto documento de arquivo – documentos que fazem parte de um mesmo fundo e que guardam relações orgânicas entre si –, o que garantiria ao diplomatista uma melhor compreensão do contexto no qual o documento foi gerado, uma vez que as fontes são claramente maiores.

Para Bautier, um documento não poderia ser verdadeiramente compreendido fora do contexto ao qual pertencia. Assim como os arquivistas têm muito clara essa relação, os diplomatistas também deveriam apoiar-se na perspectiva de fundo e conjunto, oferecidos pela Arquivística.

[...] A crítica dos documentos é surpreendentemente facilitada pela sua aproximação aos documentos anteriores e posteriores a eles, assim como pela reunião de peças de um mesmo dossiê [...] Nós estamos convencidos que os diplomatistas seriam muito mais conscientes deste aspecto se eles tivessem sempre acreditado na noção de que o documento diplomático é essencialmente um documento de arquivo, quer dizer, uma peça em um conjunto, um elemento em um fundo (BAUTIER, 1961, p. 212, tradução nossa).

A perspectiva de uma disciplina mais contemporânea, voltada aos documentos de arquivo, encontraram fulcro nas discussões que se seguiram sobre a produção, organização e preservação de documentos em um novo contexto tecnológico. Quando Bautier lançou as bases para uma disciplina mais “elástica”, na década de 1960, ele não poderia imaginar que o método, uma vez utilizado para a análise dos documentos medievais, passaria a fazer parte da Arquivística enquanto uma ferramenta tida como essencial para o estudo dos documentos contemporâneos.

Em 1987, o aporte teórico e metodológico da Diplomática à Arquivística encontra respaldo nos estudos da documentação contemporânea a partir das pesquisas da italiana Paola Carucci. Em sua obra, Il documento contemporaneo: diplomatica e criteri di edizione”, a autora extrapola os limites de estudo do campo da Diplomática, aplicando seu método e definições à documentação contemporânea da administração pública italiana.

Carucci destaca a tendência atual de dilatar o conceito de documento além dos limites da relação com a natureza rigorosamente jurídica de seu conteúdo. Segundo a autora (1987, p. 29), “tal tendência, que reconduz a uma ampliação dos fins da diplomática da análise do documento (e de seus procedimentos) para o estudo da instituição que o produz, encontra – paralelamente – uma justificativa na evolução teórica da arquivística”. A justificativa recai sobre o fato de que à Diplomática, ao contrário do que se estudara até então, não cabe mais o papel único e exclusivo de identificar os elementos do documento para a verificação de sua autenticidade. Com a evolução do Direito e uma diferente concepção de Estado, os princípios jurídicos foram modificados, assim como a relevância de certos elementos utilizados para legitimar os documentos. Em outras palavras, a Diplomática do documento contemporâneo não se limita mais ao estabelecimento das características de autenticidade e/ou falsidade documental, encontrando uma nova finalidade no campo dos estudos arquivísticos, ao propor a observação do contexto de criação dos documentos, a partir de uma análise da parte para o todo.

Mais uma vez, é possível observar o papel do objeto na mudança de foco da disciplina. Ao extrapolar os limites cronológicos e de natureza jurídica, a Diplomática amplia seu campo de atuação e encontra na Arquivística uma parceria de sucesso, especialmente no que tange aos documentos digitais.

Em 1989, Luciana Duranti propôs novos usos para a Diplomática, a partir da aplicação de sua crítica aos documentos contemporâneos na América do Norte. Assim como Carucci, a autora afirma que, para aplicar o método de análise dos documentos medievais aos contemporâneos, não é necessário reformular o conjunto de princípios e métodos da Diplomática estabelecidos nos manuais do século XIX, mas somente adaptá-los ao estudo dos conjuntos documentais contemporâneos, uma vez que a aplicação recai agora nos documentos arquivísticos, que mantêm uma relação direta do contexto com o conjunto.

A Diplomática, no contexto da Arquivística, permite que o arquivista chegue à compreensão do conjunto documental e de seu contexto a partir da crítica do documento. Desse modo, a análise do arquivista desloca-se desde o contexto documental imediato do material que examina até o amplo contexto funcional dos criadores de documentos e de suas relações. Essa análise, assim como a crítica de um documento medieval, é feita por meio do estudo da forma do documento, que se manifesta em seus elementos internos e externos (DURANTI, 2013).

A Diplomática Arquivística é, portanto, a integração da teoria arquivística e diplomática sobre a gênese, constituição interna e transmissão dos documentos; e sobre as suas relações com os fatos neles representados, com outros documentos produzidos no decurso das mesmas funções e atividades, e ainda com os seus criadores.

No entanto, as contribuições da Diplomática contemporânea aos estudos arquivísticos vão além da recuperação do contexto por meio da análise da forma. Desde 1999, os estudos sobre a criação e manutenção de registros digitais autênticos têm se beneficiado da Diplomática, seja no tocante às suas definições, seja no tocante à crítica do documento.

4 A Diplomática e os documentos digitais: uma nova abordagem da disciplina

Os estudos de Duranti sobre a Diplomática aplicada aos documentos de arquivo se destacam, especialmente, por fornecerem alguns conceitos e definições fundamentais aos estudos dos documentos eletrônicos, como é o caso do Projeto InterPARES.

O projeto InterPARES (International Research on Permanent Authentic Records in Electronic Systems), desenvolvido por Luciana Duranti em pareceria com a University of British Columbia, teve início em 1999, com o propósito de desenvolver um conhecimento teórico e metodológico essencial para a preservação permanente de documentos digitais autênticos, e para formular políticas, estratégias e padrões capazes de assegurar essa preservação.

O projeto de pesquisa usou conceitos e métodos de várias disciplinas, incluindo Diplomática, Arquivística, Direito, Ciência da Computação, Engenharia da Computação e Estatística, contando com um grupo de pesquisadores dos setores público e privado de diversos países: Canadá, Estados Unidos, Irlanda, Hong Kong, China, Suécia, França, Itália, Portugal, Austrália, Reino Unido e Holanda.

Os conceitos e as definições da Diplomática foram essenciais para determinar a características necessárias ao documento eletrônico. O grupo definiu primeiramente o documento, entendido como aquele que é criado (feito ou recebido e reservado para ação ou referência) por uma pessoa física ou jurídica no curso de uma atividade prática, como um instrumento e subproduto dela. Finalmente, um registro eletrônico foi definido como um registro criado em forma eletrônica.

Sob a perspectiva da Diplomática contemporânea, um documento eletrônico, como sua contrapartida tradicional, é um complexo de elementos e suas relações. Possui certo número de características identificáveis, incluindo uma forma documental fixa, um conteúdo estável, um vínculo arquivístico com outros documentos dentro ou fora do sistema, e um contexto identificável. Participa em, ou apoia, uma ação, de maneira procedimental ou como parte do processo de tomada de decisões, e pelo menos três pessoas (autor, escritor e destinatário) estão implicadas na sua criação (DURANTI, 2005, p. 33)

Um documento tem forma fixa quando seu conteúdo binário é armazenado de tal forma que a mensagem que ele carrega possui a mesma apresentação documental de quando salvo pela primeira vez. O conteúdo estável diz respeito à imutabilidade de sua mensagem, o que significa que os dados não podem ser alterados, deletados ou reescritos. No entanto, aos documentos digitais é permitida a chamada variabilidade limitada (bounded variability) quando há mudanças na apresentação do documento que são previstas, controladas e limitadas.

Tendo especificado as características necessárias de um registro, o grupo de pesquisa decidiu aceitar a suposição fundamental da Diplomática de que, independentemente das diferenças na natureza, proveniência ou data, todos os registros possuem uma forma documentária típica, que contém todos os elementos possíveis de um registro.

Como um dos principais objetivos do projeto era estabelecer exigências conceituais para assegurar a autenticidade dos registros eletrônicos, outro conceito discutido foi o da autenticidade, definida como a confiabilidade do registro como tal. “Em outras palavras, o termo refere-se ao fato de que um registro é o que se propõe a ser, não sendo falsificado ou corrompido” (DURANTI, s/d, p.9).

A partir da Diplomática o grupo de pesquisa do Projeto pôde identificar os elementos contidos em documentos eletrônicos, constatando que eles podiam ser encontrados nos documentos tradicionais. Logo, os elementos formais eram os mesmos. A partir disso, ficou mais fácil criar modelos de documentos eletrônicos que pudessem prover as características buscadas pelo projeto, a saber: autenticidade e confiabilidade de um registro.

Segundo o Glossário de documentos arquivísticos digitais, elaborado pela Câmara Técnica de documentos eletrônicos, do Conselho Nacional de Arquivos, em parceria com os resultados do Projeto InterPARES, “a autenticidade é definida como a qualidade do documento ser o que diz ser e que está livre de adulteração ou qualquer outro tipo de corrupção”, enquanto que a confiabilidade é “a credibilidade de um documento arquivístico enquanto uma afirmação do fato, ou seja, quando um documento pode sustentar o fato ao qual se refere” (CONARQ, 2016).

A primeira fase do projeto foi finalizada em 2001. Nesse período, os pesquisadores lidaram com registros criados em bases de dados ou por sistemas de gerenciamento de documentos, produzindo exigências e métodos para criação, manutenção, seleção e preservação de documentos digitais autênticos, em sua maioria, frutos de atividades administrativas.

Em 2002, teve início a segunda fase do projeto, cujo objetivo era o estudo dos documentos digitalmente produzidos em sistemas interativos, dinâmicos e experimentais, como subproduto das atividades artísticas, científicas e governamentais.

A segunda fase terminou em 2007, definindo padrões e métodos para a criação e manutenção dos registros autênticos nos ambientes propostos inicialmente.

Também em 2007, iniciou-se a terceira fase do projeto. Após identificar e definir os métodos e padrões, e o conhecimento necessário para que os profissionais da informação possam gerenciar o enorme fluxo informacional contido nos ambientes interativos, dinâmicos e experimentais, os pesquisadores do projeto colocaram na prática todo esse conhecimento, trabalhando com arquivos e documentos arquivísticos em organizações de pequeno e médio porte, desenvolvendo programas de treinamento ao redor do mundo. O objetivo dessa terceira fase foi dar vazão a todo o conhecimento gerado nas duas primeiras fases do projeto, e teve duração de 5 anos, terminando em 2012.

Em 2013, os pesquisadores do InterPARES iniciaram um novo projeto, intitulado InterPARES Trust (ITrust 2013-2018) que consiste em gerar conhecimento teórico e metodológico para desenvolver políticas locais, nacionais e internacionais, procedimentos, padrões e legislação para assegurar a segurança de documentos digitais e dados confiáveis na Internet, a fim de garantir a memória digital daqueles dados salvos na nuvem, por exemplo.

O sucesso de aplicação das definições e do método da Diplomática aos documentos contemporâneos, notadamente no Canadá e nos países que fazem parte do Projeto InterPARES, levou Duranti a definir uma nova abordagem de estudos da Diplomática intitulada Diplomática digital.

Segundo Rogers (2015), o que a Diplomática Digital tenta fazer é identificar todos os elementos necessários dos metadados que devem ser criados, gerenciados e preservados para identificar singularmente um documento e mostrar sua integridade através do ciclo de vida, da criação ao uso, reuso e preservação.

Essa nova abordagem busca contribuir para a criação e manutenção de registros digitais autênticos desenvolvendo-se em duas linhas: digitalização de fontes históricas e o uso de ferramentas digitais que apoiam a crítica diplomática através da análise dos elementos internos e externos da forma, ou seja, dos metadados (OCR – Reconhecimento ótico de caracteres); e a aplicação da teoria e de princípios da Diplomática na análise de documentos nascidos digitais.

Mas como a Diplomática, uma disciplina do século XVII, pode subsidiar o estudo dos documentos digitais?

A aplicação da Diplomática pode ser feita de duas formas: a primeira é por meio da análise dos elementos externos e internos do documento, ou seja, do estabelecimento dos metadados necessários a serem capturados, gerenciados e preservados para que o documento possa ter sua autenticidade preservada ao longo do ciclo vital; e a segunda é a partir de uma aplicação conceitual da disciplina, notadamente na definição do que é um documento autêntico e confiável, por exemplo.

É importante lembrar que, assim como nos documentos em papel, os atributos dos documentos digitais (forma fixa, conteúdo estável, organicidade) também devem ser estabelecidos e mantidos.

No entanto, estabelecer esses atributos em um ambiente digital pode não ser tão simples quanto parece. Como defini-los se a forma de um objeto digital pode não ser nem fixa e nem estável em um sentido tradicional? Se ela pode resultar tanto de uma atividade humana ou administrativa quanto de um processo tecnológico? Se os objetos digitais podem ser infinitamente reproduzidos, e seu significado e a determinação de sua confiabilidade e autenticidade dependem do conhecimento de seu contexto e proveniência? Se eles existem em uma rede fluida e horizontal onde a autoria e propriedade podem ser difíceis ou impossíveis de determinar? E os elementos intrínsecos e extrínsecos de uma forma não dependem e nem estão ligados a um meio físico? (Rogers, 2015).

De fato, tudo isso pode não estar facilmente visível, uma vez que o que costumávamos ver em um documento, agora está escondido de nós. Não se trata de reconhecermos os elementos internos e externos do documento em sua forma conceitual, tal como é visto na tela mas de reconhecê-los, também, em sua forma física – enquanto uma inscrição de sinais – e lógica – enquanto um objeto reconhecido e processado por hardware e software.

O reconhecimento dos elementos internos e externos, portanto, se dá nas três camadas do documento (conceitual, física e lógica), o que demanda um conhecimento ainda mais especializado da Diplomática, uma vez que muitos dos elementos não estão visíveis. Segundo Rogers (2015), no ambiente digital eles podem ser visíveis no documento conceitual, mas eles também existem na representação lógica do documento. Dessa forma eles podem estar explícitos nos dados do documento (conteúdo) ou capturados manualmente ou automaticamente como metadados associados ao documento conceitual. Esses metadados podem ser imediatamente visíveis (ex. nome do arquivo, pasta), visíveis através de ferramentas disponíveis aos usuários do sistema que armazena os documentos (ex. tamanho do arquivo, datas de criação ou modificação), ou visíveis apenas por meio de uma investigação mais complexa que usa ferramentas especializadas como a ciência digital forense, por exemplo.

Quando os objetos entram em contato uns com os outros, deixam traços deles mesmos. Esses traços podem ser observados a olho nu, ou estarem “disfarçados” e serem observáveis apenas através de ferramentas específicas (por exemplo, um microscópio). Esses traços são a base de estudo da ciência forense.

Com o aumento do uso dos sistemas digitais, o sistema legal teve que lidar com a evidência na forma de traços de atividades dentro e entre esses sistemas. O estudo dessas atividades em forma de traços digitais relacionados em um sistema legal é conhecido como ciência digital forense (digital forensics) que, assim como a Diplomática é uma ciência investigativa (Cohen, 2015).

O investigador forense busca em um hard drive ou em qualquer outro aparelho de armazenagem digital, peças individuais de informação (traços) que têm ou possam ter valor probatório para reconstruir eventos.

Em 2001, o Digital Forensics Research Workshop definiu a disciplina como

[...] a utilização de métodos cientificamente derivados e comprovados para a preservação, coleção, validação, identificação, análise, interpretação, documentação e preservação da prova digital derivada de fontes digitais, com o propósito de facilitar ou promover a reconstrução de eventos considerados criminosos, ou auxiliar na antecipação de ações não autorizadas consideradas prejudiciais a operações planejadas (DIGITAL FORENSICS RESEARCH WORKSHOP, 2001, p. 15).

Nos últimos anos, observa-se uma tentativa de aproximação entre ambas as áreas no tratamento da documentação digital. Enquanto a Diplomática é uma ciência antiga, com definições e método centenários, a ciência forense digital é uma disciplina relativamente nova, com apenas algumas décadas de existência. No entanto, esta última possui metodologias e um corpo de práticas bem estabelecidos em um melhor entendimento do contexto investigativo do ambiente digital, o que seria complementar para os estudos diplomáticos dos documentos digitais.

Ao combinar o método e conceitos da Diplomática com as ferramentas da ciência forense digital, os arquivistas se aproximam de soluções para os problemas de identificação e análise de documentos em ambientes digitais.

Considerações

Desde o início do desenvolvimento da Diplomática, observa-se uma consistência metodológica cuja prática consiste em investigar um documento em sua essência, ou seja, em sua forma, abstraí-lo e sistematizá-lo.

Tal investigação tem seu objeto de estudo transformado ao longo do tempo – dos diplomas aos documentos digitais -, o que garante à disciplina abordagens distintas, variantes de acordo com a época e o lugar, mas que mantêm em seu núcleo um método analítico-comparativo estável e confiável.

Ao realizar a crítica diplomática o arquivista desconstrói o documento para identificar e localizar elementos que revelam sua proveniência, relações, confiabilidade e autenticidade (Rogers, 2015). A identificação desses elementos precede qualquer processo de organização arquivística, o que demonstra a importância dos estudos diplomáticos pelos arquivistas, seja para sua aplicabilidade aos documentos medievais, seja aos documentos digitais, como se pretendeu demonstrar neste trabalho.

Notas

Referências