EDITORIAL
Há, com frequência, uma dose de narcisismo da geração em como as novas mídias e as tecnologias de comunicação são avaliadas por contemporâneos; em outras palavras, há uma forte tendência de pensar que nossa geração é aquela que tem o tipo certo de tecnologias que fará tudo mudar[1].
Marko Ampuja
Os arquivos mais organizados, em geral, apropriam-se de técnicas e tecnologias para fins de exercício de suas funções. Os afazeres em arquivos estão vinculados às esferas da comunicação; da movimentação, acondicionamento e guarda de grandes volumes (em geral, documentos e caixas de documentos); e também de tudo o que diz respeito à localização, transporte e disponibilização de documento. Há, ainda, conhecimentos aplicados à preservação de diversos tipos de suportes documentais. Lembremos dos enormes mecanismos de geração de cópias por meio de equipamentos fotoelétricos, de fitas magnéticas, das técnicas para empreender desinfestações ou mesmos dos robôs usados para localizarem e disponibilizarem documentos em grandes depósitos “inteligentes”.
Entretanto, nenhum dos avanços tecnológicos impactou de forma tão decisiva na formação dos profissionais de arquivo quanto aqueles ligados à chamada tecnologia da informação. Na mal chamada “era da informação”, esperar-se-ia que os arquivos recebessem o reconhecimento de sua função estratégica. Afinal, o saber-fazer dos arquivistas não é senão o tratar as informações (e seus suportes) para que estas estejam preservadas e acessíveis a todos.
Mas, não é bem assim o que ocorre. Se, desde a década de 1980, a área dos arquivos parece florescer na prática e na teorização sobre os mesmos, é no âmago dessa chamada “era da informação” que se percebe aqui e ali o desprestígio ou mesmo possibilidades de retrocesso de políticas de arquivos no Brasil. É do alto de sua reconhecida competência técnica que Vanderlei dos Santos conclui em seu artigo, que as instituições vêm repetindo o comportamento dicotômico de afirmar que as informações são recursos estratégicos e, ao mesmo tempo, não investir em programas de gestão de documentos e informações, quer sejam ou não digitais.
De fato, assistir ao desempenho de um autômato ou um sistema automatizado operando costuma causar-nos espanto, sensação de estranhamento e de vulnerabilidade, ou de encantamento. Porém, isso está na base da fetichização da tecnologia no mundo atual. É necessário, no entanto, o esforço para enxergar que por detrás de todo o mecanismo há a imprescindível ação da inteligência e da mão humanas. De elaboradores e de operadores. É o que nos alerta o mesmo Vanderlei Santos: “o certo é que o fator humano é um dos principais responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso de qualquer mudança institucional em que precise ser considerado e, sobremaneira, na execução de políticas de gestão de documentos arquivísticos”.
Tecnologia é a expressão permanente e acabada da relação do ser humano com o seu ambiente e se vincula à incessante busca pelo fim do sofrimento causado pelo esforço penoso do trabalho. Entretanto, a evidência é historicamente comprovada: a tecnologia aprisionada para atender aos interesses de uma minoria que a controla e a explora significará a aniquilação humana e não a sua libertação como muitos apregoam.
Por outro lado, a visão equivocada fundada no determinismo tecnológico obscurece o papel estruturante daqueles que detêm o poder de decisão, inclusive sobre as escolhas de equipamentos a serem usados. Conforme afirma José Carlos Vaz, em vídeo disponível nesta edição, a tecnologia é também uma construção social.
Encerro este singelo editorial com as certeiras palavras de Alicia Barnard Amozorrutia:
Para lidar com o imensurável número de dados que se encontram nos servidores das instituições, cujas características, como unicidade, suporte de uma ação ou atividade, a inter-relação com outros documentos e o valor probatório que cumprem ou o qualificam como um documento de arquivo digital, requer profissionais da arquivística, e estes ainda não têm preparo para lidar com esse ambiente, pois é fato que apenas esses profissionais sabem tratar de contextos, conhecem planos de classificação e de temporalidade documental, fatores imprescindíveis para a produção, gestão e preservação de documentos de arquivos digitais. Essa falta leva a consequências desastrosas, tanto para a prestação de contas, quanto para a transparência ou preservação desses materiais a longo prazo.[2] [tradução livre minha].
Boa leitura!
Marcelo Chaves
Cremos ser dispensável justificativa para a opção dos editores da Revista do Arquivo pelo tema desta edição. Mas, ainda assim, vale lembrar que a nossa instituição tem sido desafiada a buscar solução tecnológica de sistemas com perfil arquivístico para uso na administração pública paulista. Em decorrência, temos realizado eventos para estimular a reflexão e troca de experiências a respeito de sistemas de gestão de documentos e de processos eletrônicos. Esse não é desafio apenas do APESP, sabemos.
Por outro lado, entendemos ser agora o momento mais oportuno para ampliar e acelerar esse debate. E a Revista se alinha a esse esforço coletivo.
Nesta edição, estão publicados 1 ensaio e 9 artigos.
ENSAIO
Lenora Schwaitzer nos brinda com um ensaio que é um primor. Ela discorre sobre o papel do arquivista na era do documento digital, em diálogo com o arquivista francês Bruno Delmas. Vale muito a pena conferir.
ARTIGOS
Vanderlei Batista dos Santos é uma das maiores autoridades no tema do dossiê desta Revista. O seu artigo aqui publicado é um instigante convite ao debate na área da arquivologia. Repensar os fundamentos da arquivística, questionar a “tradição”, preservar informação e não o suporte; forma fixa do documento de arquivo está em cheque? Não é suficiente que o documento tenha sido acumulado pela instituição no exercício de suas funções para ser considerado arquivístico; “documento arquivístico potencial”; ciclo vital com três idades do documento? Distância entre o que preceitua a teoria arquivística e a prática nas instituições públicas e privadas na gestão de documentos digitais. Eis algumas das belas polêmicas trazidas por Vanderlei nesse artigo, originalmente publicado pela Red Nacional de Archivos de Instituciones de Educación Superior y el Archivo Histórico Universitario de la Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, sob coordenação de Alicia Barnard Amozorrutia.
Natália Tognoli com o seu Diplomática: dos diplomas aos documentos digitais, em narrativa didática e esclarecedora nos explica como os conhecimentos da Diplomática são cruciais para aferir a autenticidade de documentos desde a Idade Média aos atuais nato digitais, e revela o necessário diálogo dessa disciplina com a arquivologia e a ciência forense digital.
Já o trio de autores Érika Maria Nunes Sampaio, Jorge Phelipe Lira de Abreu e Raquel Dias Silva Reis faz um giro por conceitos implicados na preservação digital, para nos apresentar o Arquivemática, solução tecnológica adotada pelo Arquivo Nacional para preservação do acervo permanente. Artigo apresentado no XII CAM/2017, em Córdoba.
As autoras, Karina Veras Praxedes e Kíssila da Silva Rangel, também cariocas, refletem sobre a identificação do vínculo arquivístico e seu registro à luz da definição de metadados mínimos como imprescindível para a presunção da autenticidade em documentos nato digitais. Também este artigo consta nos anais do XII CAM/2017, em Córdoba.
Outra colaboração para o dossiê da nossa Revista que vem do Rio de Janeiro relata a experiência da Fundação Casa de Rui Barbosa no uso da tecnologia para propor atividade de difusão (exposição virtual). Assinam o artigo Lúcia Maria Velloso de Oliveira, Leandro Jaccoud e Priscila Vaisman.
Dois outros estudos de caso relatam experiências de renomadas instituições especializadas em arquivos privados, com a adoção de Sistemas de Gerenciamento de Acervos (SGA). Assinam pelo Instituto Hercule Florence Roberto Fray da Silva, Francis Melvin Lee & Edson Satoshi Gomi e pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Denise de Almeida Silva.
Primando pela pluralidade de abordagens que tangenciam o tema da tecnologia aplicada aos arquivos, esta Revista apresenta o cinema de arquivo veiculado por envolvente discurso de epistemologia da história produzido por Andréa França e Nicholas Andueza. O cinema também é foco no artigo de Ingrid Rodrigues Gonçalves que reflete sobre os efeitos da digitalização do filme no Brasil.
O nosso entrevistado da seção INTÉRPRETES DO ACERVO é dos Estados Unidos. Trata-se do historiador brasilianista Jonh French que nos concedeu belo depoimento em que narra suas experiências pelos arquivos, de lá e de cá. Emília Viotti, a importância dos profissionais dos arquivos, seu amor pelo nosso país, além de outros interessantes assuntos aparecem na entrevista com French.
O intenso e dinâmico serviço de certidões de imigração realizado pelo Núcleo de Assistência ao Pesquisador (NAsP), dirigido por Aparecido Oliveira da Silva, é o PRATA DA CASA desta edição.
Fotografias que flagram o movimento de Imigração no início do século XX em São Paulo é também o tema que inspira o ARQUIVO EM IMAGENS.
Por fim, a seção VITRINE traz belo texto de Estevão Luz sobre suas experiências com o acervo digitalizado da Biblioteca Nacional, enquanto que Adelia Atas, Elsa Machado Maglio e Nidia Reis de Paiva nos apresentam a interessantíssima filmoteca da Emplasa. Não deixem de ler.
ESPECIAL
Esta especial seção renova a oportunidade para assistirmos as palestras que compuseram o 1º seminário Documentos públicos na era digital, organizado pelo DG/SAESP, realizado em abril do ano passado. Além dos vídeos, disponibilizamos a apostila completa desse seminário e três textos que discorrem sobre o tema do dossiê da Revista. Atente-se para o texto de Ieda Bernardes (DG-SAESP/APESP) que propõe denso apanhado sobre política de gestão e preservação de documentos digitais na administração pública e seus aspectos legais; em seguida, transcrição da palestra do Prof. José Carlos Vaz (USP) que apresenta desafios da administração pública em adotar padrões sustentáveis de incorporação de tecnologia da informação e de modernização da gestão; por fim, o relato do Grupo de Trabalho SIGA-Doc, do APESP, assinado por Alexandre R. Alves, Camila G. Ribeiro, Elisângela M. Queiroz, Igor B. Marangone, Letícia G. Bacalhau e Rogério F. G. de Andrade.
IN MEMORIAM
A Revista do Arquivo rende singela homenagem à historiadora Emília Viotti da Costa e à nossa querida colega Maria Rita Rosa Rodrigues Alves.
Notas
- [1] Marko Ampuja, A Sociedade em rede, o Cosmopolitismo e o “Sublime Digital”: reflexões sobre como a História tem sido esquecida na Teoria Social Contemporânea. Disponível em: http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/ index.php/ recicofi/ article/ view/ 295/ 311
- [2] Trecho extraído da apresentação do livro Archivos electrónicos: textos y contexto II. 1ed. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2013, v. 1, p. 111-133. Serie Formación Archivística, organizado por Alicia Barnard Amozorrutia.