Artigo
Perspectivas da preservação da memória digital brasileira a partir da experiência do Arquivo Nacional[1]

Érika Maria Nunes Sampaio[*]

Jorge Phelipe Lira de Abreu[**]

Raquel Dias Silva Reis[***]

Resumo:

O presente artigo tem por objetivo problematizar a preservação de documentos arquivísticos com o advento da tecnologia digital, revisitar conceitos fundamentais para a preservação digital, apresentar as iniciativas do Arquivo Nacional brasileiro no desenvolvimento de condições de infraestrutura organizacional e tecnológica capazes de preservar e dar acesso aos documentos digitais recolhidos em cumprimento às suas atribuições, especialmente no que diz respeito à adoção do Archivematica, repositório arquivístico digital confiável de código aberto e livre, para a manutenção de objetos digitais a longo prazo.

Palavras-chave: Preservação digital. Documento arquivístico digital. Repositório arquivístico digital confiável. Arquivo Nacional.

Abstract:
The present article aims to problematize the preservation of records with the advent of digital technology, to revise fundamental concepts for digital preservation, to present the initiatives of the Brazilian National Archive in the development of organizational and technological infrastructure conditions capable of preserving and giving access to digital documents collected in fulfillment of their assignments, especially with regard to the adoption of Archivematica, a reliable, open source and free digital archival repository for the maintenance of digital objects in the long term.

Keywords: Digital preservation. Digital record. Reliable digital archive repository. National Archives.

Introdução

Preservar documentos nunca foi tarefa fácil. A degradação resultante do manuseio, do passar do tempo e das características do suporte utilizado, evidenciam a necessidade de ações de prevenção, conservação e restauração que atendam às necessidades de permanência do documento em longo prazo. Essa permanência deve seguir critérios arquivísticos estabelecidos que envolvem, dentre outros, critérios de segurança, armazenagem, preservação e acesso. É essencial que os documentos de arquivo, desde sua produção, atendam às recomendações arquivísticas estabelecidas para que estes documentos estejam tal como foram produzidos quando chegarem à fase permanente.

Com o passar do tempo, o suporte no qual as informações eram registradas passou por muitas transformações. O que antes se registrava em pedra, pergaminho ou papiro passou a ser registrado em papel, fita magnética, microfilme, e é o que conhecemos como documento tradicional, convencional ou analógico. Hoje, o documento também pode ser digital devido aos avanços tecnológicos na área de Tecnologia da Informação.

As técnicas de preservação convencionais não davam mais conta da realidade digital. A preservação digital apresenta-se como um novo paradigma que enfrenta questões acerca do tratamento do suporte e, consequentemente, do documento cuja informação encontra-se registrada. São materiais novos, documentos novos, novas questões. O que fazer para preservar documentos digitais, levando em conta desafios como obsolescência tecnológica, fragilidade dos suportes, questões acerca da autenticidade e manutenção dos documentos digitais em ambiente seguro, por exemplo? Como garantir que esses documentos mantenham suas características tal como foram produzidos?

A preocupação da comunidade arquivística nacional e internacional com o tema foi se intensificando, de acordo com a crescente e permanente evolução tecnológica. A revisitação de conceitos já consagrados na Arquivologia foi necessária, bem como a formulação de novos conceitos que se apresentavam frente às características concernentes ao documento digital e ao seu tratamento, tais como: documento arquivístico digital, repositório arquivístico digital confiável – RDC-Arq, normalização de formatos, componente digital, dentre outros, contribuindo para a ampliação do campo teórico da Arquivologia (LACOMBE; RONDINELLI, 2016).

No Brasil, algumas instituições têm trabalhado com a questão da preservação digital tendo em vista o tratamento técnico dos acervos arquivísticos digitais. A adoção de procedimentos, políticas, rotinas e repositório digital vem ganhando destaque, e a implementação de sua prática nas instituições públicas no país vem crescendo.

Preocupado com as questões de preservação dos documentos arquivísticos digitais produzidos pelos órgãos e instituições públicas, o Arquivo Nacional brasileiro assumiu o desafio e o pioneirismo nas ações de preservação digital no país. Os trabalhos neste sentido vêm sendo desenvolvidos seguindo critérios estabelecidos na Política de Preservação Digital elaborada por este órgão, que orienta o recolhimento de acervos arquivísticos digitais da Administração Pública Federal. Tal Política é um dos produtos do Programa Permanente e Preservação e Acesso a Documentos Arquivísticos Digitais – AN Digital, iniciado em 2010. O programa é dividido em linhas de ação nas quais se baseiam a execução de projetos pré-definidos, seguido de cronograma de execução e previsão orçamentária.

A iniciativa do Arquivo Nacional mostrou-se oportuna e necessária, pois a crescente produção da documentação arquivística digital nas instituições e órgãos governamentais evidenciou a necessidade da abordagem arquivística para tratamento técnico destes documentos. Segundo o art. 42, do Decreto nº 9.150, de 04 de setembro de 2017, é missão do Arquivo Nacional o recolhimento dos documentos permanentes da Administração Pública Federal. Isto posto, preservar a memória, que agora também é digital, também é sua responsabilidade. É imprescindível, portanto, o planejamento, a implementação e a manutenção de uma rotina de ações que garantam que esses documentos estejam preservados e disponíveis permanentemente. Dessa forma, o Arquivo Nacional continuará cumprindo com sua missão, garantindo que os documentos arquivísticos digitais recebam tratamento técnico adequado, pois estes documentos serão disponibilizados aos cidadãos. Como o próprio Arquivo Nacional descreve, “Sem um programa permanente de preservação e acesso a documento arquivísticos digitais, não haverá Arquivo Nacional no futuro.” (ARQUIVO NACIONAL, 2010, p.6)

Neste sentido, este artigo abordará a questão da preservação em relação aos documentos arquivísticos digitais, tendo como base as atividades desenvolvidas no Arquivo Nacional para preservação e acesso aos documentos permanentes digitais da Administração Pública Federal Brasileira.

ASPECTOS CONCEITUAIS

Os computadores saíram do domínio exclusivamente militar para compor os cenários das organizações públicas e privadas, num processo desencadeado no final da Segunda Guerra Mundial. Os registros, até então em suportes convencionais, alteram-se essencialmente e assumem novas características. Produzidos em ambientes eletrônicos, são registrados em suportes magnéticos e ópticos, em formato digital (CONARQ, 2011). Se por um lado, a produção de documentos em ambiente digital apresenta uma série de vantagens no que diz respeito à facilidade de produção, transmissão e acesso, por outro lado, implica em documentos altamente sensíveis e manipuláveis, além de sujeitos à rápida obsolescência tecnológica e à fragilidade do suporte. O documento arquivístico digital, segundo Rosely Curi Rondinelli consiste numa

“Unidade indivisível de informação constituída por uma mensagem fixada num suporte (registrada), com uma sintática estável”, “produzido e/ou recebido por uma pessoa física ou jurídica, no decorrer das suas atividades”, “codificado em dígitos binários e interpretável por um sistema computacional”, em suporte magnético, óptico ou outro (RONDINELLI, 2013, p. 235).

Para Rondinelli (2013, p. 231), a novidade ultrapassa a peculiaridade do suporte; o documento escapa por completo dos padrões conhecidos, tanto “a linguagem alfabética registrada no papel de leitura direta, bem como sua relação inextricável com o suporte”. No universo digital tudo é escrito em códigos binários e para que os documentos sejam compreensíveis aos olhos humanos necessitam da interação entre hardware e software, numa “sofisticação tecnológica que passa despercebida à maioria dos usuários”. Segundo a autora, o cenário se torna mais complexo com as tecnologias de rede, com sua elevada capacidade comunicacional.

Para compreender a complexidade apresentada pela produção e preservação de documentos em ambiente digital, torna-se fundamental apreender as características do documento arquivístico digital segundo a Diplomática. De acordo com Luciana Duranti (2010, p. 10), a Diplomática identifica a necessidade das seguintes características no documento arquivístico digital: 1) forma fixa; 2) conteúdo estável; 3) ligações explícitas a outros documentos dentro ou fora do sistema digital, através de um código de classificação ou outro identificador único (relação orgânica); 4) um contexto identificável da produção; 5) o envolvimento de cinco pessoas identificáveis: autor (pessoa responsável pela emissão do documento), destinatário (pessoa para quem o documento é destinado), redator (pessoa responsável pela articulação do conteúdo), originador (pessoa responsável pelo espaço de onde o documento é enviado ou no qual ele é gerado e salvo) e produtor (pessoa em cujo fundo ou arquivo o documento existe); 6) uma ação em que o documento participa ou que o documento apoia tanto processualmente quanto como parte do processo decisório. Para Duranti

Com sistemas digitais complexos, as características que criam mais problemas são as duas primeiras: forma fixa e conteúdo estável. Podemos dizer que um registro digital tem uma forma fixa se seu conteúdo binário é armazenado para que a mensagem que transmite possa ser renderizada com a mesma apresentação documental que tinha na tela quando foi salva pela primeira vez, mesmo que sua apresentação digital tenha sido alterada, como, por exemplo, do Word para pdf. Podemos também dizer que um documento digital tem uma forma fixa se o mesmo conteúdo pode ser apresentado na tela de várias maneiras diferentes, mas em uma série limitada de possibilidades pré-determinadas: nesse caso, teríamos diferentes apresentações documentais da mesma (por exemplo, dados estatísticos vistos como um gráfico circular, um gráfico de barras ou uma tabela) (2010, p. 11, tradução nossa). [2]

A discussão da autenticidade emerge com mais intensidade com a chegada da tecnologia digital, uma vez que documentos produzidos no computador são mais suscetíveis a alterações, legais ou ilegais e a supressões voluntárias ou involuntárias. Conforme Rogers

Os documentos arquivísticos digitais diferem significativamente dos registros em papel. Eles são voláteis e estão sujeitos a perda, alteração intencional ou não intencional, contaminação ou corrupção, mesmo quando eles ainda estão sob a custódia de seu criador. Sua autoria, procedência ou cadeia de custódia pode ser difícil ou impossível de determinar. Eles podem ser transmitidos, compartilhados e copiados com facilidade. Sua acessibilidade está sujeita a obsolescência e incompatibilidade de hardware e software. Mesmo que o criador se baseie em um documento arquivístico digital no curso dos negócios e mantenha sua cadeia de custódia ininterrupta, a fragilidade e a vulnerabilidade dos documentos arquivísticos digitais exigem ações explícitas para proteger a autenticidade do documento. Além disso, a confiabilidade e a acurácia não estão mais diretamente ligadas à autenticidade e podem ser comprometidas em conjunto ou separadamente (Duranti, 2005; Duranti; MacNeil, 1997; Duranti; Thibodeau, 2006; MacNeil, Gilliland-Swetland, 2005). Quando os produtores usam serviços baseados em nuvem, esses desafios são multiplicados (ROGERS, 2016, p. 17, tradução nossa).[3]

Nesse sentido, os estudos de preservação digital, na medida em que investigam a natureza dos documentos arquivísticos digitais e seus atributos, apoiam a presunção de autenticidade. Segundo Eastwood (apud ROGERS, 2016, p. 20, tradução nossa), as contingências que dão autenticidade aos documentos "são observáveis não no próprio documento, mas nos procedimentos de criação, manutenção e preservação”. Assim, a preservação configura-se apenas em parte como uma questão técnica, mas “é um componente de uma ampla agregação de serviços, políticas e partes interessadas interligadas, que, juntas, constituem um ambiente digital” (LAVOI; DEMPSEY apud ROGERS, 2016, p. 32, tradução nossa).

Para Rogers (2016, p. 25), a confiabilidade de um documento arquivístico é de responsabilidade exclusiva do seu produtor, por meio da forma e modo de produção do documento e da credibilidade dos atores envolvidos em sua produção. Por outro lado, a autenticidade, segundo Duranti e MacNeil (1996, p. 56, tradução nossa), se relaciona à maneira, à forma e ao estado de transmissão do registro, ao modo de sua preservação e custódia e “é protegida e garantida pela adoção de métodos que garantem que o registro não seja manipulado, alterado ou de outra forma falsificado após a sua criação, ou seja, o registro é precisamente tão confiável como era quando feito, recebido e retido”.

Portanto, Duranti e MacNeil (1996, p. 57) afirmam que no que diz respeito à preservação e à custódia, a maior diferença entre documentos arquivísticos tradicionais e digitais consiste no fato da autenticidade em arquivos tradicionais ser mantida com a preservação da mesma forma e do mesmo estado de transmissão em que foram produzidos, recebidos e retidos, enquanto que os arquivos digitais necessitam de migração contínua, tendo em vista a sua vulnerabilidade e a rápida obsolescência de hardware e software.

Nesse cenário, há uma separação entre as funções do produtor de documentos, primeiro responsável pela confiabilidade e autenticidade, e o preservador de documentos, responsável pela autenticidade em longo prazo (ROGERS, 2016, p. 26). Desse modo, a presunção de autenticidade é inferida com base nas evidências sobre como os documentos foram criados e mantidos. Essa evidência pode ser fornecida pelo produtor ou por meio de uma análise mais profunda, como a comparação de documentos com cópias preservadas em outros lugares (redundância), análise forense, testemunho de terceiros ou análise de trilhas de auditoria (MACNEIL; GILLIANDSWETLAND apud ROGERS, 2016, p. 28).

Sendo assim, os metadados se constituem em recurso fundamental para a análise do documento arquivístico digital. São eles “dados estruturados que descrevem e permitem encontrar, gerenciar, compreender e/ou preservar documentos arquivísticos ao longo do tempo” (CONARQ, 2016, p. 29) e surgem da necessidade imposta pelo uso das tecnologias da informação de registrar outras informações, além das descritivas, para garantir sua compreensão e acessibilidade ao longo do tempo. Segundo Jordan Bass (2012, p. 36), sem metadados, os documentos são simplesmente dados desprovidos de estrutura e significado contextual. Os metadados servem, portanto, para atestar e avaliar a autenticidade.

Os metadados são declarações legíveis por máquinas e por humanos sobre os recursos de informação que permitem o controle físico, intelectual e técnico sobre esses recursos. Os usuários criam e anexam e, em seguida, mantêm e preservam metadados, automaticamente e/ou manualmente, ao manter seus documentos arquivísticos digitais, documentos e dados. Esses metadados podem ser técnicos, administrativos ou descritivos. Eles codificam e acompanham a identidade e a integridade do material ao longo do tempo e em toda a mudança tecnológica (ROGERS, 2016, p. 31, tradução nossa).[4]

Pelo panorama exposto, a autenticidade tem sido a principal preocupação dos estudos sobre a natureza e preservação dos documentos arquivísticos digitais. Segundo Rogers (2016, p. 32), os estudos podem ser classificados de acordo com seu foco, que pode ser o desenvolvimento de padrões, estruturas e sistemas de repositório; definição e utilização de esquemas de metadados; a natureza dos objetos digitais; as tecnologias de preservação; e os formatos de arquivo. Para a autora todos os projetos que se dedicam às questões mencionadas compartilham um objetivo comum, a preservação de documentos arquivísticos digitais confiáveis, embora nem todos abordem a autenticidade de maneira explícita.

A preservação de arquivos digitais se constitui numa iniciativa urgente em virtude da rápida obsolescência da tecnologia digital no que diz respeito a suportes, formatos e plataformas. Preservar documentos arquivísticos digitais constitui-se em tarefa complicada, segundo Josep Lluis de la Rosa i Esteva e José Antonio Olvera Cañizares

Preservar um objeto digital não é o mesmo que preservar, por exemplo, um livro ou uma fotografia, nem é muito menos como preservar um certificado, um diploma ou um documento assinado em papel. Assim como se pode colocar um livro em uma estante, uma foto em uma caixa, um diploma emoldurado em uma parede ou uma escritura de uma propriedade em um arquivo e (se se mantém secos e seguros) olhá-los 50 anos depois, não ocorre o mesmo com um objeto digital porque, em muitos casos, os materiais digitais são considerados mais frágeis que os materiais físicos (ROSA I ESTEVA; CAÑIZARES, 2014, p. 135, tradução nossa).[5]

Assim, define-se preservação digital como o “conjunto de ações gerenciais e técnicas exigidas para superar as mudanças tecnológicas e a fragilidade dos suportes, garantindo acesso e interpretação dos documentos digitais pelo tempo que for necessário” (CONARQ, 2015, p. 7), bem como a manutenção de seus atributos de identidade e integridade para apoiar a presunção de autenticidade. Flores e Machado expõem as medidas que devem ser tomadas para a preservação arquivística dos documentos digitais como a adoção de políticas e a adoção de plano de preservação.

Preservar documentos digitais é uma atividade diferente de preservar documentos analógicos devido às complexidades e especificidades dos digitais, porém de igual relevância social, cultural, informativa e histórica. Inicialmente a preservação de documentos digitais deverá ser a definição de políticas, e a partir destas, elaborar o plano de preservação contendo as estratégias de preservação com eficácia comprovada, e que sejam de conhecimento do acervo. Durante a elaboração do plano de preservação deve-se ter em mente as propriedades significativas dos documentos que se queiram preservar, da mesma forma, deve-se atentar para os conceitos de forma fixa e conteúdo estável (FLORES; MACHADO, 2015, p.204-205).

Conforme mencionado no documento do CONARQ sobre o Repositório Digital Confiável (RDC-Arq) “a preservação dos documentos arquivísticos digitais, nas fases corrente, intermediária e permanente, deve estar associada a um repositório digital confiável” (CONARQ, 2015, p. 4). Numa definição mais detalhada, um repositório consiste em “um complexo que apoia o gerenciamento dos materiais digitais, pelo tempo que for necessário, e é formado por elementos de hardware, software e metadados, bem como por uma infraestrutura organizacional e procedimentos normativos e técnicos” (CONARQ, 2015, p. 9).

Conforme o Conarq (2015), um repositório arquivístico digital confiável (RDC-Arq) deve gerenciar documentos e metadados seguindo princípios e práticas da arquivística no que tange à gestão documental, descrição multinível e preservação. O RDC-Arq será responsável por proteger características do documento arquivístico, como a autenticidade e a organicidade, possibilitando o acesso em longo prazo destes documentos. Além disso, é preciso estar em conformidade com a ISO 16.363:2012, que trata de um conjunto de critérios para mensurar a confiabilidade do repositório digital (FLORES; ROCCO; SANTOS, 2016, p. 122).

Segundo Flores, Rocco e Santos (2016, p. 122), é fundamental que, quando do desenvolvimento de um repositório digital, sejam considerados os requisitos abordados no modelo de referência Open Archival Information System (OAIS), um modelo conceitual desenvolvido pelo Consultive Committee for Space Data Systems – CCSDS, que culminou na norma ISO 14721:2003. O modelo OAIS, preocupado com a confiabilidade e preservação a longo prazo dos documentos, “descreve as funções de um repositório digital e os metadados necessários para a preservação e o acesso dos materiais digitais gerenciados pelo repositório, que constituem um modelo funcional e um modelo de informação” CONARQ (2015, p. 8).

Desse modo, como instrumento para as práticas de preservação digital, aponta-se como solução tecnológica o “Repositório Digital” que, conforme Rocha (2015), pode ser compreendido a partir de várias definições que abordam seus diferentes aspectos, e que a autora define como

[...]um ambiente tecnológico complexo para o armazenamento e a gestão de materiais digitais. Este ambiente é composto por uma solução informatizada na qual se captura, armazena, preserva e se provê acesso aos objetos de informação digitais. Um repositório digital é, então, um complexo formado por elementos de hardware (dispositivos de armazenamento), software, serviços, coleção de informação digital e metadados associados a esses objetos de informação. Todo este conjunto tem como objetivo apoiar a gestão de materiais digitais pelo tempo que seja necessário (ROCHA, 2015, p.183)

No que se refere, especialmente, à manutenção da autenticidade, à adoção de procedimentos arquivísticos e aos requisitos de confiabilidade, o uso de um Repositório Arquivístico Digital Confiável é imprescindível, pois é a solução tecnológica que se apresenta para garantir que os documentos preservarão suas características tal como foram criados, além de permitir a integração com outros sistemas e repositórios.

Embora o aprofundamento teórico e o desenvolvimento das ações de preservação digital nos acervos arquivísticos tenham crescido no Brasil, ainda há muito a se avançar. Recentemente, tem-se iniciado diálogos entre algumas instituições públicas que intentam em utilizar repositórios para tratamento dos seus arquivos digitais, visando à aplicação efetiva da tecnologia. Destaca-se que, para isso, é imprescindível o investimento em infraestrutura tecnológica e capacitação constante de recursos humanos nessa área.

A preservação dos documentos arquivísticos digitais, sejam eles nato-digitais – originalmente criados e mantidos em ambiente digital – ou representantes digitais, – cópias digitais de documentos arquivísticos analógicos – deve obedecer aos procedimentos e padrões definidos em instrumentos orientadores, bem como na observação de boas práticas desta atividade. Só assim um efetivo programa de preservação poderá ser desenvolvido plenamente.

Apresenta-se na próxima seção aspectos do gerenciamento de documentos arquivísticos digitais em RDC-Arq no Arquivo Nacional do Brasil.

O USO DO ARCHIVEMATICA NO ARQUIVO NACIONAL

O Programa Permanente de Preservação e Acesso a Documentos Arquivísticos Digitais – AN Digital, iniciado em 2010, é composto de quatro linhas de ação - Prospecção, Modelos de Negócios, Sistema de Preservação e Acesso e Gestão do Programa – que, juntas, compreendem treze projetos.

O Projeto 07 - Desenvolvimento do Sistema abrange a implementação do repositório arquivístico digital confiável, para o qual, após estudos e análises realizados, foi escolhida a ferramenta Archivematica[6] . A decisão do Arquivo Nacional do Brasil referente ao Archivematica se justifica, basicamente, por esta ferramenta estar em conformidade com o modelo OAIS e ser capaz de atender a demanda desta instituição enquanto custodiadora final dos documentos arquivísticos digitais da Administração Pública Federal.

Os pacotes para admissão no repositório - SIP (Submission Information Package) - são preparados para serem inseridos no repositório. A partir de então, são realizados diversos micro-serviços que originam outros dois tipos de pacotes: o AIP (Archival Information Package), que contém os arquivos normalizados em formatos adequados para preservação, e o DIP (Dissemination Information Package) que contém os arquivos que serão disponibilizados para a disseminação, normalizados em formatos adequados para tal.

No momento, estão sendo realizados testes no Archivematica, na versão 1.6, nos quais são observadas as rotinas de admissão (ingest), a execução da normalização prevista na política de preservação do repositório e a configuração do ambiente. Está prevista para 2018 a entrada em produção do repositório, que atenderá os representantes digitais do Arquivo Nacional, e os acervos digitais já recolhidos.

Para orientar os procedimentos de entrada da documentação digital no Arquivo Nacional, foram publicadas a Política de Preservação Digital do Arquivo Nacional e a Instrução Técnica nº 01/2016, produtos do desenvolvimento do Projeto 05 - Abordagem de gestão e preservação digital - que indicam, dentre outras orientações, os formatos de arquivo que deverão ser encaminhados para admissão no Archivematica.

Embora os esforços empregados no desenvolvimento do programa AN Digital e o desenvolvimento do repositório arquivístico digital confiável ainda estejam em curso, o Arquivo Nacional atualmente já disponibiliza acesso aos documentos digitais, sejam originais digitais ou representantes digitais. A partir de 2009 os representantes digitais começaram a ser disponibilizados na internet através do SIAN – Sistema de Informações do Arquivo Nacional, em um processo contínuo de alimentação dessa plataforma. Desde 2010 o Arquivo Nacional também disponibiliza, de forma presencial, a consulta a todos os representantes digitais, incluindo os que ainda não foram inseridos no SIAN. A organização desses representantes digitais segue critérios estabelecidos, previstos no Manual de Procedimentos para Organização dos Representantes Digitais do Arquivo Nacional, atualizado e publicado em sua segunda versão em 2017, que visa orientar as áreas técnicas do AN com relação a notação final dos arquivos digitais de acordo com seu arranjo pré-estabelecido pelas áreas de custódia do acervo.

Para atender a demanda dos usuários para acesso aos documentos digitais e facilitar a disponibilização destes no SIAN, foi preciso estruturar um ambiente de rede que atendesse aos objetivos propostos, tendo em vista a particularidade de cada contexto e a identificação dos fundos de forma multinível.

Os representantes digitais e natos-digitais estão armazenados em ambientes específicos no storage organizados em uma área onde é armazenado todo o acervo permanente digital do Arquivo Nacional: “Ambiente Principal”, “Ambiente Principal – Fundos em Tratamento”, “Área de Trabalho”, “Natos Digitais” e “Representantes Digitais de outras Entidades”.

O “Ambiente Principal”, onde se armazenam os representantes digitais de séries documentais tratadas, possui a estrutura de fundo de acordo com os critérios estabelecidos na Norma Brasileira de Descrição Arquivística, baseada na ISAD (G). As matrizes dos representantes digitais armazenadas nesse ambiente serão migradas para o repositório digital quando este entrar em produção, para garantir sua preservação e acesso de longo prazo. Caso o acervo de determinado fundo ainda não tenha recebido o tratamento técnico definitivo, os representantes digitais ficam armazenados no “Ambiente Principal – Fundos em Tratamento” aguardando o momento de seu tratamento técnico. É na “Área de Trabalho” onde as áreas técnicas organizam o acervo digital antes da transferência definitiva para o “Ambiente Principal” e posterior associação no Sistema de Informação do Arquivo Nacional para acesso irrestrito via web. É nesse ambiente que as áreas técnicas “buscam” o acervo que saiu da área de quarentena para seu devido tratamento técnico. Os outros dois ambientes que completam o ambiente macro de acervo permanente do Arquivo Nacional são: “Natos Digitais”, que recebe o recolhimento de acervo digital, e “Representantes Digitais de outras Entidades”, que armazena estes representantes nos casos em que, após projeto de digitalização conveniado com o Arquivo Nacional, a instituição custodiadora não possui condições de guarda digital. É importante salientar que qualquer documento digital que seja produzido fora da rede interna da Instituição, antes de entrar nos servidores do Arquivo Nacional, passa obrigatoriamente um período na quarentena para checagem de possíveis vírus.

No Arquivo Nacional os representantes digitais estão identificados em três categorias: matriz digital - o representante digital produzido em alta resolução para fins de preservação, que deve refletir integralmente o original; Matriz processada digital - resultante do processamento técnico de uma matriz original que tem por finalidade oferecer uma melhor qualidade para reprodução e geração de derivadas; e derivada digital - que é o representante digital em baixa resolução para fins de divulgação e acesso. A derivada é gerada a partir da matriz ou matriz processada.

As matrizes e matrizes processadas ficam armazenadas no mesmo diretório, separadamente das derivadas. O Arquivo Nacional tem, considerando dados de maio de 2017, um volume de 451,2 terabytes de documentação arquivística digital, compreendendo 40.216.587 itens.

De acordo com o Manual para Organização dos Representantes Digitais do Arquivo Nacional, todos os documentos digitais devem ser identificados com a notação que reflete seu arranjo, iniciado pelo CODEARQ da instituição, seguido dos códigos de fundo, seção/subseção (quando houver), série/subsérie (quando houver), dossiê, item (quando houver), o identificador de categoria e o número indicando a posição do componente digital dentro do dossiê ou item.

Os formatos de arquivo estabelecidos para os representantes digitais produzidos no Arquivo Nacional a partir de documentos em papel foram TIF para matrizes e em PDF para derivadas. Salvo exceções para documentos de imagem em movimento e sonoro, conforme a Política de Preservação Digital.

A entrada de acervo digital no Arquivo Nacional é regulada pela Política de Preservação Digital e normatizada pela Portaria nº 252 de 30 de dezembro de 2015 e pela Instrução Técnica nº 01/2016. O processo de entrada é realizado em 4 etapas: submissão (ou envio), verificação, validação e aceitação/rejeição. Deverá haver uma etapa preliminar onde os órgãos custodiadores da documentação a ser recolhida e o Arquivo Nacional assinam o termo de entrada estabelecendo responsabilidades das partes, ara que se faça um acompanhamento do tratamento técnico preparatório do acervo.

O envio do acervo pode ser realizado por transmissão on-line, mídias de transporte ou mídias de armazenamento móveis originais, quando os documentos arquivísticos digitais são mantidos pelo produtor em mídias de armazenamento móveis e não há possibilidade de o custodiador fazer a atualização do suporte.

Em caso de discos ópticos e similares, as mídias serão destruídas. Em caso de HD’s e pendrives, as mídias serão formatadas e devolvidas ao produtor após a emissão do atestado de validação. Após o recebimento, o acervo é colocado em quarentena. Decorrido este período, realiza-se a verificação de conformidade dos formatos com a Política de Preservação Digital, a conferência com a listagem descritiva que acompanhou os documentos na entrada, a verificação da integridade dos arquivos e conferência quanto a restrição de acesso. Somente após esse processo é emitido o atestado de validação, configurando que a partir de tal data os originais passam à custódia do Arquivo Nacional e o produtor tem apenas cópias, que devem ser eliminadas definitivamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Arquivo Nacional Brasileiro é o órgão central do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivos - SIGA da administração pública federal do Brasil e exerce um papel singular e estratégico dentro da esfera governamental, no que se refere às atividades de gestão de documentos, acesso, disseminação e preservação do patrimônio documental arquivístico. O órgão tem como uma de suas atribuições garantir ao cidadão o acesso a documentos probatórios para assegurar seus direitos, bem como servirem de fontes para a pesquisa histórica e científica. Para isto, em se tratando de documentos digitais, é necessário o uso de repositório arquivístico digital confiável a fim de garantir presunção de autenticidade, a preservação e acesso a longo prazo desses documentos, tanto no que diz respeito aos representantes digitais produzidos na instituição como forma de preservação dos originais em suportes tradicionais, quanto aos originais-digitais recolhidos.

Desde 2010, o Arquivo Nacional do Brasil, através do Programa Permanente de Preservação e Acesso a Documentos Arquivísticos Digitais – AN Digital, vem desenvolvendo estudos e ações para solucionar dilemas que afligem os profissionais de arquivo que lidam com documentos digitais: a obsolescência tecnológica, segurança, armazenagem, preservação e acesso a longo prazo. Inicialmente, foram padronizados procedimentos e configurado um ambiente na rede local que atendessem às especificidades dos acervos, natos-digitais e representantes digitais, a fim de garantir o controle e possibilitar o acesso aos documentos nos espaços de armazenamento (storages). O próximo passo é a entrada em produção do repositório digital confiável, que apoiará a preservação de longo prazo e dará garantias mais robustas na manutenção da autenticidade desses documentos.

Muito já se avançou, mas o caminho é longo e o esforço coletivo. O repositório arquivístico digital confiável tem sido apontado na comunidade internacional como a solução mais eficiente, e traz esperança para as instituições brasileiras e de outros países que correm contra o tempo em busca de soluções para preservação e acesso de seu crescente acervo arquivístico digital. Neste cenário, a troca de conhecimento entre colaboradores tem sido fundamental para o alcance de progressos significativos.

Notas

Referências bibliográficas