A seção VITRINE publica uma carta de autoria de Osório Pimentel, datada de 23 de maio de 1932, em que relata à sua mulher, que se encontrava em Santos, os acontecimentos do dia: as agitações que ocorriam na cidade de São Paulo, em função das manifestações que antecederam a Revolução Constitucionalista.
O interessante conteúdo da carta está acessível pela versão transcrita[1] , mas o leitor poderá ter acesso a cópia digitalizada do original manuscrito, bastando clicar nos colchetes que aparecem destacados no corpo da transcrição.
O documento é composto por 12 folhas, num total de 24 páginas, com o verso em branco.
A transcrição foi feita de forma corrida, respeitando a grafia, pontuação e divisão original de parágrafos.
As mudanças de páginas estão indicadas entre colchetes, no meio do texto (fls. 2; 3; 4; 5; 7; 10; 11) e no início da página (fls. 1; 6; 8; 9; 12).
O original foi doado ao APESP por familiares de Osório Pimentel, autor da carta.
São Paulo, 23 de Maio de 1932
Minha saudosa “namorada” !
Em continuação á minha carta de hoje (ás 4 horas) escrevo mais esta para contar o que fiz depois daquella hora até este momento 7,30 ⸺ em que acabo de chegar da cidade.
O commercio fechou completamente as portas, sem exceptuar os cafés e restaurantes, que se mantiveram solidarios com os outros.
Como já lhe disse na outra carta, receiei ficar sem condução para a casa, em vista do crescente movimento de protesto que se accentuava por [fl. 2] todos os lados, ⸺ intensificando-se a cada momento a multidão que procurava o centro da cidade. Assim sendo, escrevi rapidamente a você, com tempo ainda de apanhar o portador para o correio ⸺ pois, diante da expectativa alarmante em que estavamos todos, receiei não poder mais tarde fazer seguir a carta. Em seguida, sahi á procura do bonde, que justamente passava em frente ao escriptorio. Vi logo que eu tinha razão em não contar muito com esse meio de condução. Logo ao chegar no Largo de São Bento, o bonde teve o trajecto interrompido, pois a agglomeração na Praça Patriarcha impedia a passagem, e todos os bondes da Villa Marianna, faziam [fl. 3] ponto final em S. Bento, cujo largo contornavam para voltar á ponte Grande.
E eu, que no almoço me esquecera de trazer a valise, tive de trazel-a no múque ao longo da Rua Líbero, e José Bonifacio até a Praça da Sé, ⸺ onde felizmente o trafego estava normal e um “camarão” já se mexia com destino á nossa pittoresca vivenda dos Eucalyptos, ⸺ onde cheguei ás 5 horas. [espaço] Tendo feito hoje um parenthesis na minha quisilia com os jornaes, comprei os da tarde, ancioso por saber em que pé andavam estas encrencas irritantes e interminaveis.
Pelos recórtes que junto a esta, você verá que as manifestações de agora são já bem mais eloquentes e violentas, esperando-se mesmo que [fl. 4] [[que]] desta vez a coisa se resolva de um modo mais positivo.
Não tendo eu visto jornaes antes das 4 horas (quando sahi do escriptorio) e não os tendo podido lêr senão depois de aboletado no “camarão”, ⸺ tambem não sabia que havia preparado para ás 2 horas um grande comicio popular de protesto.
E então, lendo o convite trazido nos jornaes, fiquei até impressionado com os termos decisivos com que a “Commissão” convocava os Paulistas para reagir até pelas armas, se fosse necessario! ⸺ [espaço] O movimento é mesmo empolgante e merecia que todos nós, sem excepção de ninguem, corressemos a auxilial-o de armas na mão, ⸺ se não tivesse elle na frente, ⸺ para [fl. 5] desmoralizal-o completamente a figura dolorosamente antipathica do Sylvio de Campos, ⸺ que foi a alma dannada do regimen passado, a figura repugnante e sinistra do tartufo ignobil, que teria vendido São Paulo inteiro (e talvez o Brasil) se a morte do Carlos de Campos não lhe tivesse interrompido os seus longos e gigantescos vôos de ave de rapina! Pois é esse individuo, ⸺ que a revolução devia fusilar logo que triumphar, é esse politiqueiro réles e cafajeste, que agora se arvora em regenerador de costumes políticos e vem gritar hypocritamente contra aquillo mesmo de que elle foi o creador e maior responsavel !
Assim pensando, não me impressionou o epitheto de “covarde” com que a convocação dos estudantes taxou os Paulistas que não lhes attendesse ao appello, ⸺ pois no fundo, toda essa corja de politicos resa pela mesma cartilha, e só brigam para proveito proprio. [espaço] Portanto, deixei que o movimento corresse á minha revelia, e vim tranquillamente para casa.
Mas, apezar de tudo, fiquei afflicto por saber o que teria havido. Porisso, apressei o jantar e fui para a cidade, ¬‹‹espiar ›› o que havia. Tudo fechado, muita gente em toda a parte, todos com um ar curioso, a procurar por todos os lados as noticias de sensação.
Da Praça da Sé, desci pela Rua 15, [fl. 7] fazendo a volta pelo ‘triangulo’.
A cada momento passam nas ruas, em todas as direcções, grupos de manifestantes, empunhando a bandeira de São Paulo, cantando o Hymno Nacional, e obrigando todo o mundo a tirar o chapéo..
Ao me approximar desses grupos, senti a mesma decepção que tive no dia 30 de Outubro de 1930 ! Gritam todos como Paulistas e em nome de São Paulo. Mas que corja! É a mesma multidão de cafagéstes e desclassificados, que se servem do pretexto para fazer arruaças, pouco se importando com a finalidade desses movimentos. São os mesmíssimos pé-rapados que em 30 de Outubro ativaram as nossas ruas com o celebre ‹‹Nós queremos! ››
Tive uma impressão desoladora desse barulho. ⸺ Não quer isto dizer que sejam só elles que estão clamando contra o caso‶ [sic] de São Paulo. Ha muita gente bôa nessa reacção, e nós não podemos julgar todos no mesmo nivel. Mas, essa canalha fedorenta que sáe comettendo desatinos pelas ruas, esses compromettem o exito do movimento, ⸺ pois, assim como eu, muitos, muitissimos outros se encolhem, alheiando-se delle, com repugnancia de luctar ou protestar, lado a lado e solidariamente com uma gentalha ignobil, muito abaixo de qualquer classificação ! ⸺⸺⸺
(Chega de politica ! )
Estou escrevendo este relatorio, agora á noite, tendo começado ás 8 horas. Eu não tinha obrigação de o fazer, pois ainda hoje lhe falei no telephone e mandei-lhe uma carta rapida, de ultima hora.
Mas... como eu sou ‹‹tão bonzinho›› e o ‹‹exemplo dos maridos›› ... varonicos, ⸺ [em] vez de ir no cinema, para me vingar da ausencia da mulher, ⸺ enfiei burguezmente as chinellas, jantei o meu [f riscado] bife com salada de agrião, e aqui estou rabiscando estas folhas, ⸺ no que não pretendo parar enquanto não completar a duzia de paginas que projectei. Enfim, como você ahi não tem nada para encher o [fl. 10] tempo, além do tratamento e as manhas de Maria, forneço-lhe estes elementos, ⸺ que tambem lhe poderão servir de narcotico, nas suas insomnias...
Você me diz que já está applicando em Maria o remedio do Dr. Margarido. Muito bem. A receita está aqui: É como eu lhe disse: 1 colher de sopa em 100 cc de água fervida, morna.
Que faça bom proveito para a nossa purunguinha, e que ella se liberte desses bichinhos tão importunos, é o que espero.
No bonde, no famoso 1 H dahí, viajou ao meu lado um casal, muito meus amigos de Ribeirão Preto, e que [fl. 11] actualmente moram ahi, em Santos.
Conversando sobre Maria, aconselharm-me logo, ⸺ e isto por terem experimentado com os proprios filhos ⸺ o uso local da pomada mercurial, tal qual eu já tinha falado com você.
Portanto, não percámos de vista este tratamento, afim de que o tentemos mais uma vez, caso a medicação actual não dê os resultados que desejamos.
O Naur acha que tanto você, como Maria e Benedicta, aproveitariam muito mais essa temporada de beira-mar, se estivessem localisadas em um ponto mais apropriado, como por exemplo, no Guarujá (Pensão Svéa), sendo que nesta época não ha maleita.
⸺⸺ Espero que os 2 garrafões de Agua da Serra Negra tenham ahi chegado com tempo de não interromper o tratamento do Sr. Vicente.
⸺⸺ O “Rocambole” que você aqui deixou está uma delicia. Mandei a metade delle, bem como uma porção de balas, para d. Candida.
Nada levei para Clelia, pois na atropelação da sahida, não me lembrei ainda de levar. ⸺
⸺⸺ Tem feito um frio nestas 2 noites, que não ha cobertor que me esquente ! A Vi... i ... i...i...da!...
⸺⸺ Dê lembranças ao seu pae e á Benedicta. ⸺ A Você, minha muié, muito querida, e á nossa bólótinha, as minhas saudades, beijos e abraços.
( São 10 horas! – Vou dormir! ) Zó (feio)
- [1] Transcrição de documento manuscrito, a partir de cópia fotográfica e digitalizada, feita por José Heleno Barbosa, aluno do curso de Introdução à Arquivologia, ministrado por Ana Maria de Almeida Camargo no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 2016.