Exposição Virtual: A Revolta da Chibata

A situação dos marinheiros no Brasil

O descontentamento dos marinheiros com a organização e com as leis da Marinha brasileira não foi um sentimento que se expressou somente no ano de 1910, no qual ocorreu a Revolta da Chibata. Alguns estudos1 mostram que essa insatisfação por parte deles já havia se manifestado em 1866, quando 268 praças da marinha – incluindo marinheiros, grumetes, cabos e sargentos – encaminharam um requerimento para o Imperador do Brasil, D. Pedro II, solicitando a revogação do Decreto publicado em 1854, que aumentava, de 12 para 20 anos, o tempo de serviço obrigatório dos marinheiros.

Esse aumento do tempo de serviço era justificado pelas autoridades devido à dificuldade de encontrar pessoas interessadas em servir a Marinha. Assim, em 1855, por meio do Decreto nº 1.591, eram publicadas as instruções para o alistamento de voluntários e de recrutas para o serviço da Armada. Visando solucionar esse problema, o artigo primeiro do Decreto dizia:

O governo fixará annualmente o numero de voluntários e recrutas com que cada Provincia deve contribuir para manter-se o effectivo da Força Naval que o Poder Legislativo houver decretado, attendendo-se nessa distribuição à população e mais circumstancias de cada Provincia.2

Além disso, era oferecida uma gratificação para aqueles que cuidavam do alistamento nas Províncias (normalmente eram pessoas designadas pelos presidentes das Províncias, pelos comandantes das Estações Navais e capitães dos Portos): quanto maior o número de pessoas recrutadas, maior era o pagamento recebido.

Menores, entre 10 e 17 anos, também poderiam servir às Forças Armadas. Eles eram encaminhados para a Escola de Aprendizes Marinheiros e a gratificação era paga aos pais. Crianças menores de 10 anos também eram aceitas, desde que tivessem capacidade psíquica para o aprendizado.

Aos que ingressavam na Armada por meio de alistamento voluntário era reservada uma gratificação, porém o número de interessados era muito pequeno. Desta forma, o recrutamento forçado era uma medida comum. Na época de recrutamento, as ruas das Províncias se transformavam em “palco de caça” das presas “ociosas” e aptas ao serviço da Armada.

Segundo as instruções de 10 de julho de 1822, “Ficam sujeitos ao Recrutamento todos os homens brancos solteiros, e ainda pardos libertos de idade de 18 a 35 anos [...]”3, exceto donos de estabelecimentos, casados, irmãos de órfãos, filhos únicos, feitores e administradores de fazenda, tropeiros, boiadeiros, estudantes, entre outras profissões. Entendemos que todos aqueles que não possuíam um emprego formal ou aqueles que não possuíam ofício eram tidos como recrutáveis.

Assim, na visão de uma parcela da sociedade, o recrutamento forçado retirava das ruas pessoas indesejáveis à ordem: capoeiras, mendigos, vadios, desordeiros, crianças desvalidas e ex-escravos. Tendo em vista o quadro de recrutados, os castigos tinham como objetivo disciplinar essa “massa arruaceira” para que não representasse dentro da Marinha a mesma “ameaça” que representava nas ruas.

Até a Proclamação da República, os Artigos de Guerra, aprovados pelo Alvará de 26 de abril de 1800, regulamentavam os castigos empregados na Armada brasileira. O Artigo 80 determinava a forma de punição e o número de chibatadas:

Todos os mais delitos, como embriaguez, jogos excessivos, e outros semelhantes, de que os precedentes artigos não façam particular menção, ficarão ao prudente arbítrio do superior para impor aos deliquentes os castigos que lhes for proporcionado, o uso da golilha, prisão no porão, o perdimento da ração de vinho, é o que deve aplicar a oficiais marinheiros, inferiores e artífices; assim como à marinhagem e soldados, que podem ser corrigidos por meio de pancadas de espada, e chibata, não excedendo ao número de 25 por dia; isto é, em culpas que não exijam Conselho de Guerra.4

Passados 83 anos, estabeleciam-se os graus de punição por meio da publicação de duas tabelas, uma que se referia aos castigos e outra às faltas cometidas5. Para a desobediência às ordens recebidas, os marinheiros receberiam de vinte a vinte cinco chibatadas; caso se embriagassem ao mar, poderiam receber as seguintes punições: de seis a dez chibatadas, prisão solitária por quatro dias ou prisão com ferros na “coberta” durante seis dias.

Com a Proclamação da República em 1889 e com a promulgação do decreto nº 3, de 16 de novembro do mesmo ano, eram abolidos os castigos corporais na Armada brasileira. Porém, após cinco meses da promulgação do decreto, criou-se, em abril de 1890, um novo instrumento disciplinar: a Companhia Correcional.

Considerando que há necessidade da criação de uma companhia correcional cujo fim seja agregar as praças de conduta irregular e mau procedimento habitual das morigeradas e cumpridoras de seus deveres, em benefício de segurança e garantias destas, como também em prol da disciplina, ordem e boa marcha do serviço, tanto nos navios como nos corpos de dependências da Marinha; considerando ainda que o restabelecimento do castigo severo, abolido por ocasião do advento da República e aplicável unicamente às praças arroladas na referida companhia dentro de um limite restrito, é uma necessidade reconhecida e reclamada por todos os que exercitam autoridade sobre o marinheiro, tanto mais quanto não é possível corrigir e melhorar pelos mesmos processos benévolos por que são as praças que compreendem a sua nobre e alta missão. Decreta: é criada uma companhia correcional.6

Como podemos notar, a insatisfação dos marujos não surgiu somente em novembro de 1910. Tal sentimento foi sendo despertado ao longo de muitos anos. Também podemos avaliar que o tempo de serviço obrigatório e os castigos empregados como forma de correção na Marinha brasileira foram dois dos aspectos que geraram descontentamento no corpo de marujos. Entretanto não podemos esquecer que os baixos pagamentos, a má alimentação e a impossibilidade de ascender hierarquicamente, de marinheiro para oficial, colaboraram na busca por mudanças.


1 ARIAS NETO, José Miguel. Violência sistêmica na organização militar do Império e a luta dos imperiais marinheiros pela conquista de direitos. História: questões e debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 35, p. 81-115, 2001.

2 BRASIL. Instrucções para o alistamento de voluntários e de recrutas para o serviço da Armada. In: Coleção Leis e Decretos do Império do Brasil. Rio de Janeiro: APESP, 1855. p. 326-336.

3 BRASIL. Decreto n°. 67, de 10 de julho de 1822. In: Coleção Leis e Decretos do Império do Brasil. Rio de Janeiro: APESP, 1822. p. 56-58.

4 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 41.

5 BRASIL. Decreto n. 8.898, de 3 de março de 1883. Regula os casos em que cabe a applicação dos castigos de que faz menção o art. 80 dos de guerra da Armada, e estabelece os graus da punição. In: Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: APESP, 1893. p. 391-397.

6 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 118.